Das batalhas cotidianas à conquista do sonho: surfar entre os melhores 

Conheça as histórias por trás das conquistas dos atletas de surfe no Brasil

bird's eye view of ocean waves

Foto: Unsplash

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Para um atleta, poder viver do que gosta e ser recompensado por seu talento são alguns de seus principais objetivos. No surfe, não é diferente. A  meta partilhada entre os surfistas se resume à conquista do lugar mais alto do pódio e se auto sustentar através da profissão. Wesley Leite, surfista profissional  nascido e criado em Ubatuba, São Paulo, revela que ser um atleta remunerado no Brasil não é uma tarefa fácil. O caminho traçado para seguir com a profissionalização no surfe é sinônimo de luta e persistência dentre os atletas nacionais.

“Fui conquistar meu primeiro patrocínio só com 25 anos”, diz Wesley. Hoje, com 26 anos, o atleta possui três primeiras colocações no Circuito nacional, fechou o ano de 2020 em 11° no ranking Sul-Americano e com a 3° posição na classificação geral do Circuito Brasileiro.

Em 2022, se classificou ao WQS (World Qualifying Series), divisão que concede acesso ao mundial de surfe. Mesmo com títulos importantes no currículo, o surfista é a prova de que só o talento não basta. 

Atualmente, mesmo com o suporte de patrocínios, o surfista destaca que no final do mês as “contas não batem". O valor recebido por seus apoiadores não é suficiente para seguir carreira. Os custos de ida aos torneios totalizam cerca de R$ 3500 por etapa. As despesas envolvem traslados, alimentação e inscrições. Já quando as competições acontecem fora do país, o valor quadruplica. Apesar das dificuldades, Wesley evidencia que desistir de seus objetivos nunca foi uma alternativa.

“Eu sinto que eu tenho talento suficiente para poder fazer parte dos melhores do mundo.”

Foto: divulgação pessoal

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Foto: divulgação pessoal

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Uma das explicações para a carência de suporte aos atletas não é a falta de talento, mas sim a escassez de investidores. O presidente da Confederação Brasileira de Surfe (CBS), Teco Padaratz, explica que a dificuldade na conquista de patrocínio é um dos maiores desafios vivenciados pelos surfistas. “Essa grande dificuldade de arrumar patrocínio é antiga e ainda carece no Brasil. Ao modo que o surfe evoluiu, a indústria de surfwear não conseguiu acompanhar financeiramente. Hoje em dia você encontra apoiadores, só que em empresas diferentes”.

Wesley Leite surfando em Fernando de Noronha. | Foto: Nino Catro

Wesley Leite surfando em Fernando de Noronha. | Foto: Nino Catro

Foto: WSL

Foto: WSL

Mulheres no surfe e o preconceito por trás das ondas

A brasileira Tatiana Weston-Webb conquistando a primiera nota 10 da categoria feminina em evento na ilha Teahupo'o, Polinésia Francesa |Foto: divulgação World Surf League (WSL)

A brasileira Tatiana Weston-Webb conquistando a primiera nota 10 da categoria feminina em evento na ilha Teahupo'o, Polinésia Francesa |Foto: divulgação World Surf League (WSL)

Tita Tavares na  etapa do Circuito Mundial no Havaí em 2004 | Foto: arquivo pessoal

Tita Tavares na  etapa do Circuito Mundial no Havaí em 2004 | Foto: arquivo pessoal

Tita Tavares conquistando o título de campeã brasileira em 2002 | Foto: Nilton Santos

Tita Tavares conquistando o título de campeã brasileira em 2002 | Foto: Nilton Santos

Assim como na categoria masculina, as mulheres também vivenciam dificuldades em se manterem como atletas profissionais.  Além da falta de suporte, elas enfrentam também o preconceito. Segundo a Associação Brasileira de Surf Profissional (Abrasp), atualmente o país totaliza 219 atletas profissionais no masculino, enquanto na categoria feminina são apenas 30.


Tita Tavares é tetracampeã brasileira, ocupou a quarta posição no ranking mundial em 1996, foi a primeira mulher a ganhar uma nota dez unânime dos juízes. Ela carrega o prestígio de surfar a onda de Teahupoo,Tahiti, um dos spots mais desafiadores pelas ondas na escala dos 2 a 4 metros. A surfista é de origem nordestina, natural da praia do Titanzinho, em Fortaleza. Tita conta que deu suas primeiras remadas por volta dos seus cinco anos, após o falecimento da mãe. “A única forma de tirar aquela angústia foi indo pra praia se divertir”. Nessa época, seu irmão entregou a ela uma porta de madeira. “Ele me empurrava na espuma formada pelas ondas e com aquela tábua retangular aprendi a me equilibrar”.


Mesmo com as conquistas e o destaque mundial, a surfista enfrentou situações em que foi desrespeitada por ser mulher e persistir na carreira.

“Na minha época eu cheguei a enfrentar vários preconceitos. Costumavam dizer que lugar de menina era ajudar a mãe em casa e não surfando. Até mesmo aqui no meu bairro ,na época ,foi um pouco difícil para o povo aceitar e se acostumar a ter uma menina surfando  junto deles.” 

Atualmente, com 47 anos, Tita já não surfa  profissionalmente, os 20 que passou na elite mundial a tornaram como  fonte inspiração para as mais novas. A surfista aponta que foi um grande avanço para uma atleta negra, humilde e nordestina alcançar os lugares em que ela esteve, foi um grande avanço. Passados cerca de 15 anos desde a aposentadoria de Tita, a realidade do surfe feminino obteve mudanças positivas. Em 2019, a WSL (World Surf League), passou a premiar igualmente ambas as categorias a cada evento do circuito, o que  representou um aumento de 153% por etapa.

“Fico feliz com essa nova conquista. Se quando comecei já fosse assim, acho que teríamos muitas mais meninas animadas para seguir carreira, pois a falta de incentivo desestimula muito a nova geração.”


Nalanda do Nascimento é um dos exemplos dessa nova geração. A jovem de 19 anos também é nordestina, natural de João Pessoa, na Paraíba. A surfista está colocada entre as 24 melhores atletas do país, no entanto, segue a carreira sem o suporte de patrocinadores. “Venho buscando ajuda no Instagram por meio de rifas”. As redes sociais se tornaram sua principal aliada, pois a cada evento busca por apoio nas redes sociais. Na legenda, está em destaque: “Ajude uma atleta a ser campeã brasileira”. Mesmo frente às turbulências, ela persiste na carreira e almeja grandes conquistas no futuro.


“Eu quero poder mudar a vida da minha família e competir o mundial”, revela  Nalanda. 

Estimulada por essas vivências, a jornalista Érica Prado criou o movimento “Surfistas Negras”, com o objetivo de dar suporte às surfistas brasileiras. “A ideia surgiu de uma reflexão que eu fiz diante dessa realidade. Infelizmente, as meninas dessa geração estão sofrendo os mesmos obstáculos que a Tita Tavares sofreu há 25 anos, conta Érica. A jornalista considera  que há uma carência de oportunidades para as surfistas, por isso sentia que necessitava “fazer algo para as meninas serem vistas”.


A iniciativa começou em 2019 no formato virtual, com a criação do site e a página no Instagram com conteúdos que exaltassem o surfe feminino. A proposta inicial foi criar um movimento para mostrar  que as surfistas mulheres e negras só estavam buscando seu espaço, mas resultou em uma discussão que vai além das ondas e do surfe.  “Nossa mensagem apertou uma ferida. Trouxemos um tema  pouco discutido no universo do surf: o local ocupado por essas figuras femininas negras no esporte.”


Foto: Ana Catarina

Foto: Ana Catarina

Surfista brasileira Nalanda Carvalho | Foto: divulgação pessoal

Surfista brasileira Nalanda Carvalho | Foto: divulgação pessoal

Atleta Julia Santos | Foto: Wherter Santana

Atleta Julia Santos | Foto: Wherter Santana

Ao dar continuidade com as ações do “Surfistas Negras”, Érica percebeu que em exceto a Silvana Lima, as últimas campeãs brasileiras, Monique Santos, Larissa dos Santos, Ianca Costa e Júlia Santos tinham fatores em comum: mulheres negras e sem patrocínios. “Eu acho que é um reflexo da sociedade racista e infelizmente também se propaga no surfe. Ela reforça que a luta dessas meninas por suporte e visibilidade é antiga.

“Estamos conquistando nosso espaço aos poucos.” 

O trabalho desenvolvido por Érica busca apoiar ao máximo histórias similares às de Nalanda e promover a imagem das meninas no cenário nacional. A jornalista enfatiza que ainda falta o cuidado, acolhimento e apoio financeiro das marcas do surfe feminino.  Assim como Tita, ambas reforçam a ideia de que, só a partir do estímulo, o desenvolvimento e o talento das surfistas irão “desabrochar”.

Slogan surfistas negras | Foto: divulgação Érica Prado

Slogan surfistas negras | Foto: divulgação Érica Prado

Atleta brasileira Silvana Lima | Foto: Ana Catarina

Atleta brasileira Silvana Lima | Foto: Ana Catarina

Projeto Surfistas Negras

De atletas “estranhos” a campeões mundiais

ítalo Ferreira conquitando a etapa do circuito mundial de surfe no Havaí | Foto: divulgação IF15

ítalo Ferreira conquitando a etapa do circuito mundial de surfe no Havaí | Foto: divulgação IF15

“Uma modalidade só é reconhecida quando se tem ídolos para idolatrar”, acredita Bira Schauffer, secretário administrativo da Confederação Brasileira de Surfe (CBS).

Ídolos no surfe brasileiro já tem vários. Nomes como o de Italo Ferreira, Tatiana Weston Webb, Gabriel Medina, Silvana Lima e Filipe Toledo são conhecidos entre os brasileiros pelo talento e conquistas. Ainda assim, as histórias de Tita, Wesley, João e Nalanda  mostram que garantir bons resultados nem sempre é o suficiente para atrair  apoiadores. O esforço, a luta contra o preconceito e o reconhecimento como profissão foram recorrentes desde o surgimento da modalidade. 

Surgimento do Surfe no Brasil

Há muitas  explicações  sobre o início do surfe no Brasil. De acordo com Teco Padaratz, presidente da Confederação Brasileira de Surfe (CBS), tudo começa na década de 60 em Santos, litoral norte de São Paulo

O surfe já era uma prática comum nos Estados Unidos, país que carrega o prestígio de ser o pioneiro da modalidade. Por isso,  lembra Teco, o primeiro contato de brasileiros  com o esporte surgiu em uma viagem a lazer de  amigos  ao Havaí e à Califórnia.

No retorno do passeio, o grupo desembarcou no Porto de Santos com as primeiras pranchas em território nacional. A partir dali, relata ele, novas técnicas e formas de fabricação se instauraram no Brasil.

Teco destaca o nascimento de "tribos atrás do surfe”. Os principais praticantes da época eram os de classe mais elevada, capazes de comprar materiais, viajar e se conectar com surfistas de outros países. 

Uma nova onda de praticantes surgiu na década de 80 nas praias cariocas. Teco explica que foi um movimento isolado, sem muita explicação por parte da comunidade do surfe. O que não se perde na memória, recorda ele, é a imagem atribuída aos atletas. “Os surfistas eram apenas figuras que se divertiam, tidos pela sociedade como pessoas bem estranhas. Os treinos eram vistos como uma mera diversão e não como profissão.” Bermudas coloridas, parafinas para clarear as mechas e cortes raspados nas laterais dos cabelos faziam parte da estética dos atletas.  Teco considera que este período sinalizou um avanço no reconhecimento como uma modalidade esportiva.

A indústria têxtil teve um papel fundamental, segundo ele, porque passou a investir nessa “figura surfista”, através da promoção de comerciais e inserção de capital nas competições. “Ali o olhar passou a mudar. Logo após vieram a criação de associações e circuitos nacionais, o que começou a dar uma visão mais profissional ao esporte, graças a esse incentivo”.

  O avanço sobre a imagem do esporte na sociedade se entrelaça com os meios de comunicação, que passaram a valorizá-lo também após o surgimento da "Brazilian Storm”. A "Tempestade Brasileira do Surfe” é um termo surgido internacionalmente em 2011, para traduzir a performance dos novos atletas brasileiros estreantes na World Surf League (WSL), associação que comanda o Circuito Mundial.  Eles inovaram nas técnicas  estreando como a própria tempestade, agitando o cenário do surfe mundial e desmontando o monopólio das conquistas que se dividiam entre americanos e australianos.

Depois de uma década, o cenário é outro. Em 2022, a visibilidade alcançada pelos brasileiros levou a Rede Globo a transmitir todos os eventos da temporada do Circuito Mundial nos canais da Sport TV. As transmissões contam com um grupo de surfistas, Breno Dias e Cláudia Gonçalves,  além dos narradores Bruno Bocaiuva, Luiz Prota e Sergio Arenillas.

O site do Globo Esporte também passou a falar da modalidade. Diogo Mourão,  jornalista que começou a carreira na cobertura de eventos de surfe, escreve semanalmente para o blog “Boas Ondas com Diogo Mourão” sobre o desempenho dos brasileiros nas competições mundiais e nacionais.  O jornalista  comemora que o esporte vive em seu auge. “O surfe não deu um passo e sim um salto em termos de reconhecimento, popularização e ascensão na sociedade”. 

Surfista Teco Padaratz, atual presidente da Confederação Brasiliera de Sufe | Foto: divulgação pessoal

Surfista Teco Padaratz, atual presidente da Confederação Brasiliera de Sufe | Foto: divulgação pessoal

Capa do Jornal O Globo, com o surfista Gabriel Medina em destaque | Fonte: Jornal O Globo

Capa do Jornal O Globo, com o surfista Gabriel Medina em destaque | Fonte: Jornal O Globo

Nem sempre foi assim. Diogo recorda de um momento marcante em sua carreira no início dos anos 90, quando o atual presidente da CBS, Teco Padaratz, foi campeão de um evento sediado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Uma edição que contou com mais de 400 mil espectadores nas areias cariocas. “Quando algum brasileiro conquistava o primeiro lugar era um acontecimento histórico, comemoravam como um título de copa do mundo”. Neste período, Diogo trabalhava no jornal “O Globo”, na sessão de esportes. Naquele evento, capturou uma foto do brasileiro no pódio, erguendo o troféu e a levou ao editor chefe da redação. A esperança era que a imagem fosse publicada na primeira página do veículo, afinal, a vitória era relevante ao cenário esportivo nacional. Como resposta, o editor afirmou que os "surfistas não liam jornais”, assim a conquista de Teco não merecia a capa. 

Já em 2011, cerca de 20 anos após esse relato, o surfista Adriano de Souza, conhecido como “Mineirinho”, foi campeão no mesmo evento na praia da Barra e assumiu a liderança do ranking mundial pela primeira vez, outro acontecimento inédito. Nesta competição em particular, Diogo era assessor de imprensa do campeonato e tudo o que mais desejava era a primeira página do “O Globo”. A matéria sobre a vitória do brasileiro saiu na capa do jornal sem questionamentos, conforme ele, pois foi classificada como assunto obrigatório para destaque. “Em 20 anos, a mudança de olhar  para o surfe em um veículo é nítida e pode ser replicada para muitos outros da grande imprensa”.

Segundo o jornalista, um dos principais motivos para essa ascensão é a influência das grandes conquistas. Ele brinca ao dizer que o esporte número um no Brasil é o futebol e o  segundo continua sendo o futebol. O que vem após é o que estiver ganhando um maior número de títulos e é nesse momento que o surfe começa a ganhar destaque. Isso porque nos últimos 10 anos do Circuito Mundial, a categoria masculina conquistou seis títulos. Dos 80 eventos desse período, 39 vitórias foram de surfistas brasileiros. Diferente do futebol, diz Diogo, o surfe já conquistou o hexa e “rema” para mais vitórias no ano de 2023.