Arroz e feijão dos tempos de crise: os hábitos alimentares do brasileiro durante a pandemia

Do consumo de ultraprocessados ao uso de aplicativos de delivery e aderência às dietas de caráter ético-político, a relacionamento da população com a comida tem passado por reviravoltas no período de isolamento social

Item 1 of 4

Rotina em família

A jornalista e pesquisadora Isabel Colucci acompanhou a rotina de sua família mudar durante o isolamento social. A pandemia da Covid-19 desestabilizou várias frentes de organização que ela, o marido e as duas filhas realizavam de forma diferente. Para conciliar com a rotina de trabalho e estudos, a família acabava fazendo muitas refeições fora de casa, consumindo alimentos mais saudáveis e nutritivos. Antes, a dieta era baseada em legumes, frutas, carnes e alimentos integrais, tendo certa flexibilização durante os finais de semana, quando pediam delivery e liberavam o consumo moderado de doces para as crianças. 

No entanto, após o decreto que determinou o fechamento de serviços não essenciais devido ao vírus da Sars-Cov-2, todos do núcleo familiar passaram a ficar 24 horas isolados –– Isabel e o marido trabalhando em home office e as filhas em ensino remoto. A partir desse momento, a jornalista cita que a alimentação foi impactada negativamente, pois o consumo de ultraprocessados e pedidos por aplicativos passaram a ser mais frequentes por conta do desgaste causado pelo isolamento. “Resolvemos o problema com delivery”, conta Colucci. 

Antes da pandemia, a família tinha uma alimentação planejada por uma cozinheira, consumindo frutas e verduras diariamente. Porém, com o risco de contágio, resolveram interromper os serviços. Depois disso, Isabel explica que ela e o marido Daniel se desorganizaram em relação à alimentação. De acordo com a jornalista, eles passaram a consumir mais alimentos ricos em farinha e gorduras, como, por exemplo, empadões, lasanhas e tortas. O café da manhã das crianças, que era repleto de frutas como manga, abacate, melão e banana, junto com pratos à base de ovo, como omeletes, tapiocas, crepiocas ou ovo frito na chapa, se modificou para o consumo diário de cereal infantil e pão na chapa com queijo e presunto. A flexibilização em relação a alimentação foi determinada por conta da praticidade, cita. O casal possui muitas reuniões de trabalho durante todo o dia, então procuram opções mais rápidas e fáceis na hora de se alimentar. O alto consumo de café entre eles também foi um ponto destacado. 

Para a jornalista e pesquisadora, Isabel Colucci, aplicativos de delivery de comida foram a solução para a falta de tempo e ajuda na cozinha. | Créditos: Acervo pessoal

Para a jornalista e pesquisadora, Isabel Colucci, aplicativos de delivery de comida foram a solução para a falta de tempo e ajuda na cozinha. | Créditos: Acervo pessoal

Assim como Isabel e a família, parte da população brasileira adquiriu o hábito de consumir mais delivery e alimentos não saudáveis. O estudo publicado pelo Datafolha e encomendado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) mostra que os brasileiros, principalmente entre as faixas etárias de 45 e 55 anos, estão consumindo mais alimentos ultraprocessados durante a pandemia. Segundo os dados, em outubro de 2019 o consumo desses produtos era de 9% e saltou para 16% em junho de 2020. A pesquisa abordou pessoas entre 18 e 55 anos pertencentes a todas as classes econômicas e de todas as regiões do Brasil. O levantamento aponta que os produtos campeões de consumo foram os salgadinhos em pacote e os biscoitos salgados.

De acordo com Anice Milbratz de Camargo, doutoranda em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vários fatores podem influenciar no comportamento alimentar de um indivíduo. A nutricionista cita que é importante observar as mudanças no consumo de alimentos da população nos vários momentos da pandemia, pois vivenciamos fases diferentes de um mesmo período. O isolamento social alterou a rotina da população e impactou diretamente no modo das pessoas se relacionarem com a comida. Muitos grupos estão sem acesso a alimentos nutritivos, outros não possuem tempo disponível para escolher e preparar as refeições ou não possuem habilidades culinárias no manuseio e conservação da comida.

A nutricionista afirma ainda que é necessário visualizar o recorte de classes sociais e regiões do país. Em 2020, muitos trabalhadores puderam manter suas rotinas em home office, mas não foi uma realidade para todos. Consequentemente, as populações mais vulneráveis devem acabar consumindo alimentos mais práticos e menos saudáveis pela falta de tempo. No entanto, isso não é uma regra e varia de indivíduo para indivíduo, cita. “No começo as pessoas poderiam se sentir mais dispostas a cozinhar e manter uma relação saudável com a alimentação. No entanto, este período se prolongou mais do que o esperado e essa relação passou a se modificar ao longo do tempo”. 

O Estudo NutriNet Brasil, executado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), analisa a relação entre a alimentação e doenças crônicas da população brasileira. Em pesquisa publicada em julho de 2020, com cerca de 10.000 participantes, aponta que os indicadores de alimentação não saudável se mantiveram estáveis, com leve crescimento de 80,0% para 80,3%, se repetindo entre homens e mulheres, de todas as faixas etárias, nas macrorregiões Sudeste, Sul e Centro-oeste e nas categorias intermediária e superior de escolaridade. No entanto, na região Nordeste, observou-se o aumento significativo na frequência de consumo de alimentos ultraprocessados, de 77,9% para 79,6%. Ainda que sem alcançar dados significativos, a macrorregião Norte do país demonstrou aumento de 2,2 para 2,4% no consumo de alimentos industrializados. Na categoria de inferioridade de escolaridade a percentagem foi de 2,5 para 2,7%. 

Pode-se concluir com o estudo que, em regiões menos desenvolvidas economicamente, o aumento de alimentos industrializados e processados foi maior. A nutricionista destaca também que os preços dos alimentos oscilaram muito durante o isolamento, tornando os alimentos ultraprocessados opções mais práticas e baratas. Por isso, a população mais vulnerável  acaba sendo mais afetada pela pandemia no quesito alimentação. 

Apesar da estabilidade no estudo da NutriNet Brasil em relação à alimentação não-saudável, Anice cita que acompanha estudos indicando um aumento no sobrepeso da população brasileira. A nutricionista esclarece que nenhum alimento sozinho pode causar grandes alterações no corpo do indivíduo. No entanto, o excesso de açúcares e estimulantes, como é o caso da cafeína, podem causar mais ansiedade e irritabilidade caso o consumo seja diário. Alinhar uma alimentação pobre em nutrientes como delivery e ultraprocessados pode causar uma série de problemas para o corpo e o sistema imunológico. “No isolamento social, as pessoas tendem a ficar em casa, comendo mais e se mantendo no sedentarismo. A prática contínua de uma alimentação não equilibrada a longo prazo pode ocasionar uma série de doenças crônicas não transmissíveis, incluindo hipertensão, diabetes, obesidade e doenças cardiovasculares”, explica. 

De forma geral, os nutricionistas orientam que uma alimentação baseada em produtos in natura e minimamente processados como frutas, verduras, legumes, arroz, feijão, laticínios sem aditivos e produtos orgânicos são essenciais para manter o bom funcionamento do sistema imunológico e do corpo. “Esses alimentos são ricos em nutrientes, fibras e minerais que auxiliam no funcionamento de todo o corpo”, cita Anice. A nutricionista ainda aponta que deve-se evitar o consumo de açúcares, gorduras, aditivos químicos e alimentos ultraprocessados. 

Para manter uma dieta balanceada e consumir alimentos mais saudáveis é necessário planejar as refeições. Organizar um cardápio com as refeições da semana e cozinhar em grandes porções economiza tempo de preparo e limpeza dos alimentos. Todos os alimentos podem ser congelados e consumidos ao longo da semana.

No Brasil, o percentual de pessoas obesas em idade adulta dobrou em 17 anos, indo de 12,2% entre 2002 e 2003 para 26,8% em 2019. Os dados são da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. De acordo com o levantamento, o grupo de 18 anos ou mais estava 25,9% mais obeso há dois anos, representando 41,2 milhões de pessoas. O estudo aponta também que cerca de 96 milhões de pessoas, ou 60,3% da população da mesma faixa etária, estavam com excesso de peso no mesmo ano. 

A nutricionista aponta que os dados tendem a aumentar, pois boa parte da população brasileira está em insegurança alimentar. Anice cita que as populações mais vulneráveis estão sem acesso a alimentos nutritivos e podem estar satisfazendo calorias comendo alimentos pobres em nutrientes, normalmente recheado de carboidratos e gorduras. Frutas e legumes passaram a ser considerados itens supérfluos por conta da alta nos preços dos alimentos. As consequências podem estar relacionadas à deficiência de energia em termos nutricionais e doenças crônicas. 


Insegurança alimentar no Brasil

Segundo o estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenado por um grupo de pesquisa de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília, a insegurança alimentar já atinge metade dos lares brasileiros. O levantamento realizado via ligação telefônica com 2.004 pessoas, entre os dias 21 de novembro e 19 de dezembro de 2020, concluiu que mais de 59% dos lares entrevistados passaram por situação de insegurança alimentar no último trimestre de 2020, o que representa 125,6 milhões de pessoas. A pesquisa constatou também que houve uma redução de 85% no consumo de alimentos considerados saudáveis durante a pandemia entre os entrevistados. Alimentos como carnes, legumes, hortaliças, frutas e queijos passaram a ser consumidos de forma irregular, ou seja, menos de cinco vezes por semana. Além disso, o estudo indica marcadores de desigualdade de gênero, renda, raça e localização regional, apontando que, na região Nordeste, há maior frequência de pessoas em situação de insegurança alimentar (71,3%). 

De acordo com os dados do IBGE, o percentual de famílias que viviam com déficit de alimentos nutritivos em 2013 era de 23%. Entre 2017 e 2018, o número saltou para 36%, demonstrando um aumento significativo ano após ano. Com a pandemia do novo coronavírus e seus efeitos econômicos, o Brasil caminha para voltar ao Mapa da Fome. Segundo estudos do Banco Mundial, estima-se que 5,4 milhões de brasileiros estão em situação de extrema pobreza. A inflação no preço dos alimentos tende a causar insegurança alimentar e nutricional nas populações mais vulneráveis, podendo desencadear uma série de doenças e deficiência de energia, tornando-se um problema cíclico. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a insegurança alimentar atinge mais a população negra, nordestina e rural. O levantamento mais recente revela que um em cada três domicílios com pessoas de referência negras (29,8%) estava em insegurança alimentar.


Aderência às dietas ético-políticos

De acordo com a pesquisa da NutriNet Brasil, quatro indicadores de alimentação saudável evoluem favoravelmente –– porcentagem de pessoas que consumiram hortaliças (de 87,3% para 89,1%); fruta (de 78,3% para 81,8%); feijão ou outra leguminosa (53,5% para 55,3%); e todos os três itens anteriores (de 40,2% para 44,6%). Os participantes responderam ao estudo duas vezes –– a primeira, ao ingressar na pesquisa, entre 26 de janeiro e 15 de fevereiro de 2020, antes da Covid-19 chegar ao Brasil, e a segunda em maio do mesmo ano, durante a pandemia. Entre os respondentes, o estudo contou com o predomínio do sexo feminino (78,0%), de adultos jovens em anos de escolaridade (51,1%), de residentes na macrorregião Sudeste (61,2%) e de pessoas com 12 ou mais anos de escolaridade (85,1%).

A maior permanência das pessoas em casa devido às limitações sociais impostas pela pandemia, como o fechamento de bares, restaurantes e outros negócios, influenciou na maior proporção de refeições caseiras –– que tendem a ser mais saudáveis do que as consumidas fora de casa. Guilherme Tomazoni, de 21 anos, estudante de graduação e assessor de comunicação do Governo de Santa Catarina, foi um dos casos que viveu mudanças benéficas na alimentação em razão da nova dinâmica social criada no último ano. Depois de começar a passar seus dias em casa, o vegetarianismo se tornou uma opção mais palpável. Em 14 de janeiro de 2021, foi quando adotou uma dieta ovolactovegetariana, retirando qualquer tipo de carne da alimentação. “Ano passado tiveram dois fatores que contribuíram muito e de vez no jeito que eu me relaciono com a comida: meu irmão, que mora comigo, descobriu que é diábetico e a pandemia começou. Então, eu tive muito mais tempo para ficar em casa e cozinhar, porque às vezes eu me acomodava em fazer alguma coisa pronta ou carne mesmo, que é muito mais rápido, ou almoçar no Restaurante Universitário. Eu me deixava levar por esse comodismo, até porque não tinha muito tempo. Eu estudava, trabalhava, não tinha como cozinhar nesse meio tempo para eu conseguir almoçar e jantar”, explica Tomazoni. A relação com a comida se tornou mais íntima para muita gente, mesmo para aqueles que continuam trabalhando presencialmente alguns dias.

Uma pesquisa inédita feita pelo Ibope e encomendada pelo Good Food Institute Brasil revelou que quase metade (47%) dos brasileiros reduziram a carne em 2020. Ao que tudo indica, mesmo o Brasil sendo um dos países que mais ingerem carne, com um consumo per capita médio de 78 kg por ano, a pandemia fez com que mais pessoas aderissem ao veganismo em 2020. Globalmente, dados do Google Trends mostram que a popularidade do veganismo está agora em seu ponto mais alto, ultrapassando o recorde anterior, registrado em 2019. 

Antes da pandemia, Tomazoni mantia sua rotina predominantemente fora de casa. Acordava, tomava café da manhã –– geralmente um fatia de pão e um ovo mexido ––, ia para a faculdade às 8 horas, comprava algum lanche na cafeteria da universidade, almoçava no Restaurante Universitário e ia para o trabalho às 13 horas, ficando no expediente até às 19 horas e meia. À tarde, comia algo com bastante proteína para ir direto do trabalho à academia. Até às 21 horas estava de volta em casa, tendo o período das 21 horas às 23 horas para estudar e fazer as demandas da faculdade –– não restava tempo para cozinhar.

Hoje, seu dia a dia mudou drasticamente. Em razão do isolamento social, não vai mais para a academia e cursa apenas duas matérias na faculdade, de forma online. Se mudou para uma casa mais perto da feira e agora consegue conciliar o bem-estar com as tarefas de trabalho, graduação e casa –– algo que só aconteceu após o surgimento da pandemia. Ao redor das 10 horas e meia, Tomazoni já tem a agenda livre para fazer o almoço e as refeições do dia. Morando há cinco minutos da feira, os vegetais pararam de estragar e o prato ficou mais verde. Apesar do aumento no consumo de doces nesse período, a preocupação com o desmatamento e a tortura animal causadas pela indústria da carne o fizeram adotar práticas mais saudáveis.


Passar mais tempo em casa foi o empurrão principal para que o estudante e assessor de imprensa, Guilherme Tomazoni, passasse a consumir mais alimentos frescos. | Créditos: Acervo pessoal

Passar mais tempo em casa foi o empurrão principal para que o estudante e assessor de imprensa, Guilherme Tomazoni, passasse a consumir mais alimentos frescos. | Créditos: Acervo pessoal

Restrições e transtornos alimentares 

Do outro lado, para quem já trabalhava em casa antes do novo coronavírus a alimentação não sofreu grandes mudanças –– mas a organização na cozinha sim. Foi o caso da alérgica alimentar Sarah Soares, de 28 anos, que trabalha com internet desde 2019 e mora com o companheiro. “Era raro nós não cozinharmos todo dia antes, mas sempre mantínhamos os esforços no preparo do jantar. O que mudou foi a gestão com o Gabriel, que agora também trabalha e come em casa. A limpeza e a divisão da comida estão muito mais presentes no nosso dia a dia agora. Não tem mais como viver de restos no almoço como eu fazia antes, porque agora são dois que querem comer”, conta Soares.

Quando descobriu a alergia ao leite, ao trigo e à soja quatro anos atrás, Sarah foi de uma alimentação baseada em ultraprocessados, onde lasanha pronta e miojo eram as atrações das refeições, para reaprender a comer e cozinhar do zero. Para alguém que teve que enfrentar mais cedo que o resto do mundo o impacto das limitações sociais, já que as restrições alimentares afetaram a forma com que se relacionava com outras pessoas, as transformações que a pandemia trouxe ao convívio social não foram novidade. “Descobrir minhas alergias foi muito pesado no quesito social, porque eu não conseguia ficar na mesa com outras pessoas que estavam comendo o que eu não podia comer. Não podia ir nos restaurantes, nem comer na casa dos amigos. Então, consequentemente, eu acabei investindo em fazer comida em casa e em, também, trazer pessoas para para cá. Tudo mudou”, conta. “As pessoas não entendiam e não entendem que a alimentação também é social. Tudo em nossa vida em sociedade gira em torno da mesa”, complementa. A nutricionista Anice Milbratz concorda: “O alimento tem um papel muito importante que vai muito além de só servir nutrientes, ele possui uma questão cultural. Para muitas pessoas a comida serve de conforto também”.

Até julho de 2020, só havia o registro de um único estudo sobre o comportamento alimentar durante a pandemia da Covid-19 no Brasil –– a ConVid Pesquisa de Comportamentos, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Entre 24 de abril e 8 de maio de 2020, o trabalho, de natureza retrospectiva e realizado através da internet, avaliou uma amostra não probabilística de 44.062 brasileiros. Na época, os resultados indicaram uma deterioração na qualidade da alimentação, evidenciada tanto pela redução na frequência habitual do consumo de frutas, hortaliças e feijão quanto pelo aumento no consumo de ultraprocessados, como salgadinhos de pacote, biscoitos, chocolates, e pratos congelados.

Estudos de natureza retrospectiva: Nesses estudos os indivíduos avaliados são acompanhados do “efeito” para a “causa”, ou seja, para trás. É quando o processo a ser pesquisado já ocorreu. Nos estudos prospectivos os indivíduos são seguidos da ''causa" para o “efeito”, ou seja, para frente, acompanhando o processo a ser pesquisado neles. 

Amostra não probabilística: É quando não há aleatoriedade para a escolha de um elemento da população. Alguns cientistas alertam que não há formas de se generalizar os resultados obtidos nesse tipo de método como representantes de toda a população.

Susana Kuster, jornalista de 34 anos, é outra mulher que entende bem sobre o impacto social da alimentação. Em 2016, foi diagnosticada com a doença celíaca, após passar seis anos no escuro sobre a condição que tinha. Limpar alimentos e objetos para descontaminá-los, hábito que nasceu entre a população junto ao coronavírus, sempre fez parte da rotina dos celíacos –– já que o glúten impregna em diversos materiais, como plásticos, teflon e cerâmica. As medidas impostas no último ano, como o uso da máscara e o distanciamento social, facilitaram drasticamente a sua vida. “A máscara me ajuda a não sentir o cheiro do glúten em ambientes como o supermercado e o distanciamento social restringiu meu contato com as pessoas, o que ajudou também na questão do cheiro. Às vezes eu comprimentava alguém que estava com forte cheiro de cerveja e acabava passando mal”, explica. 

Por causa de sua doença, Kuster sempre precisa levar marmita para todos os lugares que vai e planejar seu itinerário e refeições com antecedência –– como para onde vai, em que ambientes vai ter que entrar no caminho e quantas horas vai ficar fora de casa. Por isso, não ter mais tantos eventos para ir foi algo bom para o seu dia a dia, apesar da falta que sente do contato humano com os amigos. Nunca sai de casa sem comida na bolsa e tem a mente sempre pensando nos alimentos que come. A dieta não mudou com a pandemia, continua evitando ultraprocessados e não adere a febre dos deliverys, que não atendem sua restrição alimentar. 

De manhã, amassa duas bananas com cravo em pó, frita dois ovos e faz uma panqueca para comer com mel. No almoço, ingere carboidrato: batata, arroz ou feijão, alguma carne (bife, bisteca ou frango assado) ou quirera. À tarde, no trabalho, escolhe levar uma banana ou um pedaço de bolo. Na janta, repete o que comeu ao meio dia. A horta em casa garante couve, rúcula e radiche para cada prato e de sobremesa mantém o chocolate, às vezes substituindo por uma fruta, como manga, morango ou suco de frutas. Os dois litros de água que ingere diariamente, intercalados durante a rotina.

A professora de psicologia, Joselma Tavares Frutuoso, explica o porquê de um cenário como a pandemia impactar de formas tão diferentes cada um. “As pessoas podem apresentar quadros totalmente reversos. Se eu sou um empresário ou de um setor que ofereça algo necessário em um contexto como o atual, o momento poderia gerar uma sensação de realização e sucesso profissional, repleto de bons sentimentos. Já as emoções e percepções daqueles que ficaram muito empobrecidos ou que tiveram prejuízos, por exemplo, serão completamente diferentes do primeiro grupo”, diz Tavares. Porém, algo que está sendo compartilhado entre a população são as perdas afetivas, seja pelo novo coronavírus ou por outras doenças. “Isso afeta qualquer ser humano e com a pandemia a passagem pelo luto foi muito agravada”, esclarece. 

A mesma dinâmica acontece quando falamos na mudança de alimentação vivida por diferentes pessoas. Aqueles que sofrem de quadros intensos de ansiedade e que vivenciam emoções negativas podem comer demasiadamente ou agir de forma totalmente contrária, apresentando perda de apetite. “Qualquer evento que seja considerado agressivo na nossa vida e que não temos controle sobre ele irá desencadear várias emoções. Não dá para pensarmos o comportamento humano de forma linear", conta a psicóloga. No caso de pessoas com distúrbios alimentares, onde é ausente uma relação recreativa ou prazerosa com o alimento, o comportamento tende a permanecer estável no contexto da pandemia, podendo aumentar a frequência dos episódios. 

Ana Luísa Schmidt, engenheira mecânica de 25 anos, é uma dos casos que enfrentou a crise do último ano com transtorno de anorexia purgativa. De Curitiba (PR), Schmidt teve um choque de rotina com o começo da Covid-19. Morando com a mãe e com a irmã, passou de uma agenda mantida majoritariamente fora de casa para uma em que nunca saía, aprendendo a conviver com toda a família estando dentro de casa o dia inteiro. Ser constantemente vigiada foi um dos motivos que a empurraram a comer mais, já que não tinha como fugir dos almoços preparados pela mãe. “No início, fiquei tranquila, porque achava que a pandemia logo ia acabar e eu poderia voltar com tudo para meus hábitos”, conta. Ao decorrer do tempo, foi percebendo que tinha subestimado a situação –– e o prazer que havia desencadeado ao voltar a comer foi dando espaço ao medo. 

“Por causa da pandemia eu voltei a fazer refeições que eu não fazia há muito tempo, e também mantive as que eu já fazia. Então, a quantidade de comida aumentou e recuperei peso, só que minha relação com a comida fez o caminho oposto”, explica a engenheira. Ao mesmo tempo em que a alimentação ficou mais saudável, também ficou menos prazerosa. O sentimento em relação à comida e sua relação com o corpo pioraram drasticamente durante a pandemia, assim como o medo de comer e nunca mais parar. “Eu penso que se eu comer tal refeição, eu vou comer o resto da minha vida e nunca mais vou parar de comer e ganhar peso”, conta.

Há um mês morando sozinha em Londrina para trabalho, já cortou novamente as refeições que havia voltado a fazer por causa da família. Porém, agora sozinha, é muito fácil cair em comportamentos prejudiciais. “Por mais que eu queira cortar tudo e voltar com tudo para o transtorno, eu sei que tenho que ficar saudável, se não eu vou ter que voltar pra casa. Então, eu faço um esforço para jantar. Se eu passar mal, eu posso morrer, porque ninguém vai ver o meu estado”, explica Schmidt.

Nunca teve o hábito de pedir delivery, mas às vezes, no fim de semana, pedia pizza ou hambúrguer –– alimentos que ainda tinham presença na sua vida. Com a pandemia, essas comidas saíram por completo do seu cardápio, já que o desejo alimentar diminuiu. “Faz tempo que eu não tenho desejo. Às vezes vou atrás de comer algo gostoso pra ver se volto a sentir algo bom, mas só acabo tendo culpa”. Outra mudança foi passar a jantar ou o que sobrava do almoço (arroz, feijão e outros legumes) ou misto quente. Por isso, em questão de nutrientes, sua alimentação passou por uma melhora –– principalmente pelas novas refeições feitas em casa. O que antes era apenas um sanduíche passou a ser feijão e carne. “No geral, as mudanças impostas por esse período foram benéficas para mim. Entrei em 2020 muito mal de saúde, saindo do meu pior episódio do transtorno, em que perdi muito peso e massa magra, e agora estou relativamente melhor no âmbito do que eu como. Só tenho medo de que tenha sido rápido demais. Que eu tenha dado um passo maior que eu possa aguentar”, finaliza Ana.

 

De juntar esforços só na janta para cozinhar todas as refeições do dia, a alérgica Sarah Soares sentiu que o maior impacto da pandemia foi na gestão das tarefas de casa. | Crédito: Acervo pessoal

De juntar esforços só na janta para cozinhar todas as refeições do dia, a alérgica Sarah Soares sentiu que o maior impacto da pandemia foi na gestão das tarefas de casa. | Crédito: Acervo pessoal

As mudanças impostas pela pandemia foram positivas na alimentação da celíaca Susana Kuster, que pode chegar a ter reações até ao cheiro do glúten. | Créditos: Acervo pessoal

As mudanças impostas pela pandemia foram positivas na alimentação da celíaca Susana Kuster, que pode chegar a ter reações até ao cheiro do glúten. | Créditos: Acervo pessoal

Os aspectos psicológicos e nutritivos que Ana Luísa Schmidt enfrentou após o surgimento da pandemia não foram os mesmos. Ao mesmo tempo que a engenheira mecânica passou a se alimentar de forma mais saudável, sua relação emocional com a comida decaiu drasticamente. | Créditos: Acervo pessoal

Os aspectos psicológicos e nutritivos que Ana Luísa Schmidt enfrentou após o surgimento da pandemia não foram os mesmos. Ao mesmo tempo que a engenheira mecânica passou a se alimentar de forma mais saudável, sua relação emocional com a comida decaiu drasticamente. | Créditos: Acervo pessoal