Biodiversidade catarinense
É possível equilibrar a utilização dos recursos naturais e a preservação da natureza?
A biodiversidade ou diversidade biológica está relacionada às riquezas naturais. No estado de Santa Catarina, ela está ameaçada pela destruição de habitats, sobre exploração dos recursos naturais, invasão por espécies exóticas, além das mudanças no clima. Em meio a um cenário de perda de biodiversidade e serviços ecossistêmicos, formas de preservação e mitigação de danos aos ecossistemas tornaram-se uma necessidade. Animais, plantas, fungos e microrganismos fornecem alimentos, medicamentos e subsídios indispensáveis para a sobrevivência da humanidade.
Diante desse cenário, as pesquisas científicas têm papel crucial. O Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração (PELD) - Biodiversidade de Santa Catarina liderado por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) faz parte de uma rede nacional de pesquisas e é apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC). Atualmente, o projeto “Biodiversidade de Santa Catarina: Investigando a ecologia histórica e os efeitos de manejo para restauração e conservação da Mata Atlântica do Sul do Brasil”, coordenado pelo professor Selvino Neckel de Oliveira, busca entender os efeitos de distúrbios na biodiversidade e encontrar formas de mediar e equilibrar o uso dos recursos naturais aliado à conservação da natureza.
Manejo por fogo e gado nos campos de altitude
Será que o fogo pode fazer bem para a biodiversidade? Pode ser que sim, dependendo de alguns fatores. Isto é o que uma das frentes da pesquisa liderada pela UFSC com o título: “Biodiversidade de Santa Catarina: Investigando a ecologia histórica e os efeitos de manejo para restauração e conservação da Mata Atlântica do Sul do Brasil”, está buscando compreender. Então, ao contrário do que se pensa sobre o fogo, ele pode, sim, beneficiar um ecossistema.
O estudo está contando com a participação direta de 50 pessoas entre pesquisadores e bolsistas, além da colaboração de proprietários rurais que são fundamentais para o sucesso da pesquisa. Os resultados serão compartilhados com a comunidade, periodicamente, por eventos. O objetivo é compreender a influência do manejo com fogo e pastejo nos campos de altitude de Santa Catarina, nos altiplanos do Parque Nacional de São Joaquim em Urubici e Bom Jardim da Serra.
Desenvolvido na UFSC, tem parceria com a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb), Universidade do Estado de Santa catarina (Udesc), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR).
Há milhares de anos uma tradição
Desde 2014, quando concluiu o mestrado, Rafael Barbizan Sühs participa dos estudos no Parque Nacional de São Joaquim. Em anos de dedicação às pesquisas na unidade de conservação, hoje é pós-doutor e acompanha de perto, todos os meses, as várias pesquisas desenvolvidas nos campos de altitude de Santa Catarina – faça chuva, sol ou neve.
O fogo é um fenômeno natural nos campos de altitude há mais de 50.000 anos, segundo pesquisas de referência. No entanto, a frequência dele aumentou a partir de 2.500 anos atrás, o que também data a chegada dos povos Kaingang e Xokleng. Estes provavelmente utilizavam técnicas com fogo para fins de mobilidade, renovação dos campos ou mesmo para rituais.
Ferramenta antiga aliada da agricultura e pecuária, ainda não tem substituto equiparável, seja em custo ou eficiência. “Embora o fogo consuma a parte aérea da maioria das plantas, o sistema radicular de várias espécies de campo sobrevive e é extremamente complexo e rico em espécies”, descreve. Segundo ele, “estas raízes também são importantes no controle da erosão, por exemplo, ajudando os rios a ‘ficarem no lugar’, evitando o assoreamento.”
Atualmente, os proprietários rurais ainda utilizam o fogo. Nerilso do Nascimento, morador da região, diz ser nascido e criado nos campos de Santa Bárbara, aprendendo a lida do campo muito cedo. “Eles sempre fizeram esse manejo com o gado e com o fogo”, ele diz, “veio do meu bisavô, que é de onde eu conheci, passou para o meu avô, para meu pai, e hoje eu sempre sigo ainda esse caminho deles, desse tipo de manejo.”
Rafael atesta que este método tradicional pode contribuir para aquele ecossistema, pois, é eficaz em manter a paisagem campestre. “Os proprietários rurais que utilizam o manejo tradicional com fogo geralmente fazem isso com um conhecimento que vem de gerações, onde seus pais, avós e bisavós já faziam. Então eles normalmente têm domínio e conhecimento de quando, onde e por que queimar”, explicou. Nerilso descreve o manejo tradicional: o gado faz o pastejo até o pasto secar no inverno, no final de julho a agosto é a época da queima. Então eles passam o fogo, queimando a palha seca e, em trinta dias, está tudo verde de novo. O gado já estará pastando.
No entanto, se deixar o campo sem gado por muito tempo e pegar fogo, irá queimar tudo o que tiver. “Com este manejo, o pasto vai estar baixinho. Seco, mas baixo. O fogo vai queimando o campo e quando ele chega no mato, por conta ele se apaga”. “Então os aceiros, nesse tipo de manejo, são o próprio mato. Quando ele chega no mato, ele se apaga”, ele conta. “Se você tirar o gado, quando o fogo chegar no mato, ele vai ter muito combustível pois o campo está alto, aí ele avança no mato.”
A intensidade e frequência adequadas para estas queimas serão aferidas pela pesquisa através do trabalho de campo da seguinte forma: as áreas, que são de 70m², serão manejadas com fogo de baixa intensidade em diferentes intervalos de tempo (em anos). O método é realizado de forma controlada, estando as áreas cercadas. Algumas das áreas manejadas com fogo recebem gado para pastejo, outras não, e ainda outras não serão manejadas com fogo nem gado. Neste método misto, vai-se verificando quais as diferenças de cada técnica, então os pesquisadores podem recolher e aferir amostras para os estudos históricos, químicos, ecológicos e biológicos do ecossistema.
Impacto nas políticas públicas
Atualmente, a Unidade de Conservação do Parque Nacional de São Joaquim segue a legislação brasileira, e a pesquisa é uma forma pela qual é possível dar subsídios a uma revisão nessas políticas públicas de gestão dos campos. A preservação da biodiversidade tem impacto positivo para as atividades econômicas da comunidade. Um dos exemplos é que a atividade mais comum, criação de gado extensiva, é possível por causa da nutrição proporcionada pelos campos. Ao mesmo tempo, os campos podem se beneficiar da interação com o gado.
Compreender o manejo, seus efeitos e o que é bom ou ruim, pode até mesmo ajudar a elaborar ou aprimorar a nova legislação existente. “A geração de conhecimento sobre os fatores mantenedores da biodiversidade, como o fogo, pode contribuir com novas políticas públicas que aproximam a população do entorno ao parque”, afirma o pesquisador.
Proteger e conservar o meio ambiente para que ele se mantenha diverso, vivo e equilibrado beneficia toda uma cadeia de ecossistemas, não apenas o local. O pesquisador Rafael Sühs também destaca a importância dos campos de altitude: “Os campos aqui do planalto de Santa Catarina são fundamentais para a absorção e infiltração de água para o aquífero Guarani e formação de rios importantes. Muitas cidades dependem desta água para seu abastecimento”.
Com o objetivo de compreender o impacto do manejo tradicional dos campos com gado e fogo na biodiversidade, a pesquisa pretende demonstrar a importância do equilíbrio entre as relações. Para isso, é necessário conhecer. A partir do conhecimento, será possível embasar e aprimorar as formas de preservação de todo um ecossistema único. “Também esperamos aprimorar essa técnica de manejo secular, de modo que a produção possa estar conciliada com a conservação, gerando um benefício máximo para a sociedade”, concluiu.
Uma pesquisa sem precedentes
A pesquisa interrelacionando o manejo tradicional que utiliza o fogo e o gado com a biodiversidade é rara no Brasil. Há estudos sobre fogo e gado, mas separadamente. As principais referências para este estudo têm sido as pesquisas com fogo para o bioma do Cerrado e as pesquisas sobre pastejo no Rio Grande do Sul. Mundialmente, no entanto, as savanas têm mais tradição de estudos com fogo, como é o caso da Austrália, que apresentou bons resultados em produtividade ao alinhar métodos de manejo aprimorados por pesquisa.
Porém, nas pradarias dos Estados Unidos, viu-se que há impacto negativo na relação do manejo por fogo com insetos, podendo ser amenizado ao deixar áreas sem fogo, que abrigam as espécies mais sensíveis. No entanto, de forma geral, a falta de fogo levou à descaracterização do ecossistema: “o extermínio dos búfalos e a retirada do fogo levou a uma homogeneização dessas pradarias, isto é, estes campos perderam diversidade”, conta Rafael.
Confira a entrevista com o pesquisador Rafael Barbizan Sühs, biólogo nos campos de altitude. Ele conta mais sobre a pesquisa com fogo nos Campos de Santa Bárbara, o vínculo com a comunidade e a sua relação com o campo.
Há benefício do fogo para a biodiversidade?
Esta é a grande pergunta que pretendemos responder com nosso projeto. O fogo é normalmente tido como um grande vilão mundo afora, porque geralmente está associado a eventos que prejudicam a biodiversidade e os ecossistemas, como o desmatamento ou catástrofes. Porém, em ecossistemas não-florestais, o fogo e outros distúrbios podem ser importantes. É o caso das savanas (como o Cerrado, no Brasil), e os campos de altitude, onde nosso projeto está sendo desenvolvido. Nestes ambientes, o fogo sempre esteve presente (anterior à chegada dos primeiros povos humanos) e muitas espécies evoluíram com eventos de fogo. No entanto, tendo em vista que o fogo é frequentemente tido como um vilão, pesquisas experimentais que envolvem o fogo ainda são escassas aqui no Brasil. Por isso, para entender como funcionam esses ecossistemas, precisamos de pesquisas experimentais, de longa duração, para verificar se e como a biodiversidade e os ecossistemas mudam com (e sem) estes distúrbios. Para isso acontecer, contamos com a colaboração de diversos professores, pesquisadores e alunos, de diversas áreas, que trabalham em conjunto, com o apoio de diversos órgãos públicos e da comunidade.
Qual o papel do fogo no manejo de campos?
Em situações específicas, o fogo basicamente consome a matéria orgânica seca e incentiva o rebrote dos campos. Menos de um mês após o fogo, os campos já estão verdes e podem servir de alimento para inúmeros animais. Já sabemos que no Cerrado, o fogo é fundamental para o florescimento e a germinação de diversas espécies. Acreditamos que por aqui não seja diferente.
Quais eram os povos que utilizaram o fogo no manejo dos campos de altitude em SC?
O fogo existia nos campos muito tempo antes da chegada dos primeiros humanos. Já sabemos que o fogo ocorria nos campos há pelo menos 50.000 anos antes do presente, ao passo que os primeiros humanos chegaram só recentemente, há cerca de 11.000 anos. Porém pesquisas científicas demonstraram que com a chegada dos povos Kaingangs e Xoklengs, há cerca de 2.500 anos antes do presente, a frequência do fogo nos campos aumentou. Então muito provavelmente esses povos utilizavam o fogo nos campos por algum motivo, seja para facilitar o deslocamento; ou de forma ritualística ou ainda para rebrotar os campos e assim atrair mais animais para a caça.
Por que é importante repensar as políticas públicas ou restrições legislativas quanto à conservação da biodiversidade?
É importante repensar as políticas públicas e restrições legislativas em ambientes nos quais ainda não entendemos completamente como funcionam. Justamente porque, no caso dos campos de altitude, já sabemos que a ausência do fogo e do pastoreio fazem com que a paisagem mude. Esta mudança na paisagem é uma mudança onde os campos são substituídos por arbustais e muito provavelmente toda a biodiversidade dos campos também seja substituída. Além disso, com essa substituição ou mesmo perda de espécies, é provável que as funções ecossistêmicas dos campos também sejam alteradas. A mudança nestes aspectos legislativos provavelmente poderá ocorrer se as pesquisas demonstrarem isso. Por isso é tão importante desenvolvermos essas pesquisas por aqui.
Quais são as características dos campos de altitude com relação ao fogo? É difícil o controle?
Quando falamos do fogo utilizado no manejo tradicional dos campos, estamos falando de um fogo controlado, de baixa intensidade e com frequência de a cada dois anos em média. Os proprietários rurais que utilizam o fogo, geralmente fazem isso com um conhecimento que vem de gerações, onde seus pais, avós e bisavós já faziam. Então eles normalmente têm domínio e conhecimento de quando, onde e por que queimar. Podemos considerar o fogo como uma ferramenta. No entanto, se utilizado de maneira errada, o fogo pode se tornar perigoso em locais onde ele foi impedido de ocorrer por alguns anos. Campos que estão há alguns anos sem queimar tornam-se perigosos, pois há muito combustível (matéria seca), e também muitos arbustos, que deixam o campo mais alto. Quando o fogo atinge esses locais, ele pode se tornar descontrolado, ter uma intensidade muito alta e prejudicar a biodiversidade, o solo, as nascentes e também as pessoas, tanto de forma direta como indireta.
Quais são os impactos da pesquisa na sociedade mais geral, na vida das pessoas que não têm relação direta com o campo?
Compreender como os distúrbios com fogo e com o pastejo afetam os campos tem implicações na sociedade, pois os campos são ecossistemas ricos em espécies e de grande importância. Há muitas espécies que só existem nos campos e que dependem dele para sobreviver – muitas das quais que nem conhecemos ainda. Existem espécies com potencial medicinal, por exemplo, que podemos descobrir compostos que poderão contribuir para a cura de doenças. Além disso, os ecossistemas são formados por uma rede de espécies e interações, e suas funções dependem disso. Por exemplo, os campos aqui do planalto de Santa Catarina são fundamentais para a absorção e infiltração de água para o aquífero Guarani e formação de rios importantes como o Canoas e o Pelotas. Muitas cidades e seus habitantes dependem desta água para seu abastecimento. Grande parte da absorção e infiltração de água ocorre graças às turfeiras, que são um tipo de musgo que ocorre nesses campos, e funciona como esponjas, que absorvem água e a liberam lentamente. Os campos também são importantes para a regulação climática, pois estocam uma grande quantidade de carbono, especialmente nas raízes. Embora o fogo consuma a parte área da maioria das plantas, o sistema radicular das espécies de campo sobrevive e é extremamente complexo, rico em espécies. Estas raízes também são importantes no controle da erosão, por exemplo, ajudando os rios a ‘ficarem no lugar’ evitando assim o assoreamento. Além disso, sabemos que os campos são importantes economicamente. A atividade de pecuária extensiva desenvolvida nos campos, onde há um baixo número de animais por hectare que vivem livremente, só é possível porque os campos (devidamente manejados) atuam na nutrição destes animais. Ou seja, os campos também geram renda e alimento para a sociedade. Dessa forma, nossa pesquisa visa entender o papel do manejo (com o fogo e o com o pastejo pelo gado) na biodiversidade e nas funções ecossistêmicas dos campos. Também esperamos aprimorar essa técnica de manejo secular, de modo que a produção possa estar conciliada com a conservação, gerando um benefício máximo para a sociedade.
Quais são as referências no estudo com fogo e pastejo? Há casos globais?
Sim, na Austrália por exemplo, onde foi possível melhorar a produtividade ao estudar qual o melhor manejo. Há estudos nos Estados Unidos, onde foi demonstrado que o extermínio dos búfalos (um grande herbívoro, como o gado bovino) e a retirada do fogo levou a uma homogeneização dos campos, isto é, os campos perderam diversidade. Também há estudos nas pradarias norte-americanas demonstrando os diferentes efeitos do fogo e do pastejo na comunidade de insetos… e é bem complexo, pois pode haver impactos negativos nesses grupos, dependendo do manejo que é utilizado, do tempo sem fogo, da carga animal, etc. Nos pampas do Rio Grande do Sul, há estudos envolvendo pastejo que demonstram qual é a carga ideal de animais por hectare, de modo que a produção pôde ser otimizada e os campos melhor conservados. Porém, cada sistema tem sua particularidade e precisa ser devidamente estudado. Mas algo que já se sabe é que manter manchas de campos sem queimar ajuda bastante a manter as espécies e essa prática também é muito utilizada por aqui. Dificilmente o produtor vai queimar todo o seu campo. Um ano ele coloca fogo em uma parte, no outro ano em outra parte… assim as espécies mais sensíveis, que não são tão tolerantes ao fogo, têm refúgio. A melhor fórmula que temos, a qual sabemos que mantém a paisagem dos campos de altitude, é esta usada por proprietários rurais, o manejo tradicional, que utiliza o fogo a cada 2 anos e a criação de gado bovino de maneira extensiva. O que pretendemos é verificar se conseguimos melhorar a gestão dos campos, especialmente em unidades de conservação, onde o fogo e o pastejo por gado são frequentemente banidos.
Você passa muito tempo no Parque. Como foi parar aí?
Todos os meses eu venho para cá, pois temos outras pesquisas em andamento, algumas que integram os dois projetos PELD (programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração) que existem aqui e outras que faço por conta própria, mas sempre com apoio do projeto PELD, dos professores, com auxílio de alunos e com autorização do ICMBio. Sou biólogo, mestre em geoecologia e doutor em ecologia. Comecei as pesquisas no Parque Nacional de São Joaquim em 2014, após concluir o mestrado. Trabalhei por um ano como pesquisador de um projeto que já se encaixava como PELD, mas era mais voltado às florestas. Em 2015, entrei no doutorado no programa de pós-graduação em ecologia da UFSC. Minha tese foi toda feita aqui no parque, e envolveu a araucária e os campos. Comecei a trabalhar com campos especialmente após as conversas com alguns moradores, que eram servidores contratados como vigilantes aqui no alojamento. Com eles aprendi muito sobre 'a lida' no campo e me encantei pela história que eles têm com os campos. Isso me motivou a tentar continuar por aqui. Depois do doutorado, eu consegui aprovar um projeto com financiamento árabe para trabalhar com a araucária, e isso me ajudou a me manter fazendo pesquisas (e aqui pelo parque). Depois disso, fiz um pós-doutorado na Unesp em Rio Claro, São Paulo. Como minha tese foi feita aqui, eu contribuí na escrita desse novo projeto PELD, agora envolvendo os campos, novos pesquisadores e alunos de graduação e pós-graduação. Com a aprovação do projeto veio convite para voltar a trabalhar por aqui, integrar o projeto e contribuir.
Carolina Monteiro/ Estagiária de Jornalismo/ Agecom/ UFSC.
Espécies invasoras
Aprofessora Michele de Sá Dechoum, que atua no Laboratório de Ecologia de Invasões Biológicas, Manejo e Conservação e também na pesquisa de longa duração, aponta as dificuldades de promover a conservação dos campos ecológicos estudados pelo PELD. Ela aponta como os termos “restauração” e “regeneração” são aplicados de formas distintas na ecologia.
A restauração de áreas degradadas por ações naturais e humanas é relacionada à intervenção de agentes externos em processos específicos por meio da manipulação e uso de técnicas que auxiliem na revivificação das áreas degradadas. Ou seja, é um conjunto de ações que tem como objetivo restaurar esses ambientes ao seu estado original.
Por outro lado, a regeneração é um processo exclusivamente natural, no qual os agentes biológicos são os principais responsáveis por restabelecer os ciclos que haviam sido perturbados pelo desmatamento e incêndios, por exemplo. Além das causas anteriormente citadas, as espécies exóticas invasoras também têm valor prejudicial à biodiversidade local e fomentam o desequilíbrio dos ecossistemas naturais.
“Espécies invasoras afetam completamente a forma como esses ambientes naturais estão organizados.”
O javali, espécie de porco selvagem originário do continente europeu e asiático, foi introduzido no território brasileiro em meados dos anos noventa com o objetivo de criação para produção de carne. Entretanto, a partir do momento que a soltura irregular desse animal na natureza passou a ocorrer, sua população cresceu exponencialmente e sem controle algum. A falta de predadores e a abundância de alimento proporcionou o cenário ideal para propagação da espécie no sul do País.
Essa situação se agrava com a ação de fazendeiros que o criam ilegalmente para soltar e caçar depois. Esse tipo de atividade ilegal promove a disseminação da espécie no estado e, consequentemente, dificulta os processos de restauração de áreas anteriormente degradadas por outros animais e plantas exóticas.
Selvino Neckel não apenas ressalta a importância do controle desse invasor, como complementa os efeitos da sua existência fora de seu habitat natural. “Isso tem um preço muito grande para a sociedade, não só diretamente com a perda de diversidade, mas a questão econômica e pode ser até um vetor de zoonose pro próprio gado que é criado nos campos.”
A reprodução descontrolada da espécie causa desequilíbrio no ecossistema em que está inserida. Não apenas a fauna e flora são afetadas pela simples existência dos javalis na região, mas também a economia local - agronegócio - que é diretamente prejudicada pela invasão desses animais em áreas de cultivo. Mas os javalis não são os únicos que não fazem parte da fauna original do estado. Ao total, mais de 99 espécies invasoras, incluindo mamíferos, invertebrados terrestres e marinhos, invertebrados de água doce, peixes, algas e plantas, podem ser encontradas em Santa Catarina.
O Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (IMA) - responsável legal pelo licenciamento ambiental da esfera estadual do Governo de Santa Catarina - promove o monitoramento, fiscalização e controle de espécies exóticas invasoras no estado, conforme a Lista Oficial do Estado de Santa Catarina. A RESOLUÇÃO CONSEMA nº 08, de 14 de setembro de 2012, afirma que:
Art. 3º As espécies exóticas invasoras constantes nos Anexos estão enquadradas nas seguintes categorias:
I – Categoria 1: espécies que não têm permitida a posse, o domínio, o transporte, o comércio, a aquisição, a soltura, a translocação, a propagação, o cultivo, a criação e a doação sob qualquer forma, bem como, a instalação de novos cultivos e criações.
II – Categoria 2: espécies cujo manejo, criação ou cultivo são permitidos sob condições controladas, estando sujeitas a normas e condições específicas para o comércio, a aquisição, o transporte, o cultivo, a distribuição, a propagação e a posse, estabelecidas no Programa Estadual de Espécies Exóticas Invasoras. As espécies da fauna enquadradas nesta categoria tem proibida sua soltura.
Integridade ambiental e a descoberta de novas espécies
A Mata Atlântica foi um dos primeiros biomas brasileiros a sofrer com a intervenção humana, pela própria dinâmica de ocupação do território, durante a colonização do País. Isso inevitavelmente impactou na biodiversidade. “Nós temos a mesma estratégia de 200 anos atrás, ou seja, vamos retirar a biodiversidade, vamos retirar a Mata Atlântica em prol do discurso de melhorar a economia”, explicou Selvino Neckel.
Ao longo dos anos, as ocupações irregulares, incêndios criminosos, urbanização e industrialização em Santa Catarina resultaram na degradação parcial da Mata Atlântica, patrimônio natural do Brasil e considerado um dos biomas mais biodiversificados de todo planeta. A Mata Atlântica é responsável pela manutenção da fauna, flora, funga e sistemas aquáticos de grande região no Estado - aproximadamente 22,8% de todo o seu território.
“A regeneração total não existe, porque uma vez que se destrói um habitat, você destrói boa parte daquelas espécies que evoluíram há milhares de anos e se aquela interação que estava ali se perdeu você pode recuperar parcialmente, mas nunca vai retornar a ser o que era”, alerta Selvino Neckel, sobre como as ações humanas têm impacto negativo na natureza.
Então, por mais que o manejo de técnicas focadas na restauração de áreas naturais são, também, trabalhos comunitários e coletivos para a manutenção de regiões desflorestadas e que perderam sua biodiversidade natural, as políticas públicas e leis de proteção ambiental são essenciais para que ocorra a proteção legal desses biomas.
“É fundamental que a gente, enquanto Universidade, trabalhe em parceria com a sociedade civil. Que a gente, de alguma forma, trabalhe coletivamente por esse bem maior, por esse bem público”.
A origem do PELD em Santa Catarina remonta ao ano de 2013 quando um grupo de professores do departamento de Ecologia e Zoologia da UFSC realiza ações para conhecer a biodiversidade do estado de Santa Catarina, mais precisamente no Parque Nacional de São Joaquim, na Região Serrana. Entre as diversas frentes do PELD, destacam-se a descoberta de novas espécies, estudos relacionados à manutenção da integridade ambiental e temas do cotidiano social, como o aparecimento de animais no perímetro urbano ligados à urbanização.
Os estudos realizados pelo PELD em busca da preservação e recuperação da biodiversidade catarinense não apenas têm impacto positivo para comunidade, como também para todo cenário econômico do Estado.
Porém, por mais que as pesquisas de longa duração tenham colaborado com a restauração de ecossistemas interligados e dependentes entre si, ainda não é possível afirmar que áreas afetadas pelo agronegócio e urbanização sejam inteiramente reparadas.
Segundo o coordenador do projeto, conhecer a biodiversidade traz qualidade de vida para as futuras gerações. “É uma questão de qualidade de vida saber o que cada espécie carrega”. Além disso, o professor ressalta o impacto da pesquisa na sociedade. “Nós somos muito bons cientistas, quando descrevemos uma espécie o nome do estado de Santa Catarina é evidenciado”.
Ataque de cobras
Das 84 espécies de serpentes ou cobras que ocorrem em Santa Catarina, 11 espécies são peçonhentas, conforme o e-book “Ofidismo em Santa Catarina: identificação, prevenção de acidentes e primeiros socorros”, produzido pelo PELD em 2021. Elas costumam causar acidentes com seres humanos, animais domésticos e agropecuários. De acordo com o Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina (CIATox/SC), em 2020, dos 4.004 casos de acidentes com animais peçonhentos, 13,42% eram de jararacas.
As cobras peçonhentas do grupo das jararacas, cascavéis e surucucus podem ser identificadas por uma uma abertura, entre o olho e a narina, chamada fosseta loreal. Este é um órgão que identifica variação de temperatura emitida por presas e por predadores.
Os acidentes costumam acontecer durante as épocas mais quentes do ano, pois o aumento de temperatura favorece a reprodução desses animais e ocorre mais exposição humana.
Como forma de prevenção algumas ações podem ser adotadas, como por exemplo, utilizar botas de cano alto ou perneiras quanto estiver andando em trilhas e campos; verificar lagos, cachoeiras e rios; não sentar ou agachar próximo de arbustos, tronco caídos, pilhas de madeiras, materiais de construção, sem observar o local antes.
Em caso de acidente, lavar o local da picada apenas com água e sabão; não tentar remover o veneno por meio sucção ou pressão; se o local do acidente for nas mãos, pés ou pernas manter o membro mais elevado do que o corpo; não tentar capturar a cobra e se dirigir ao hospital mais próximo. Caso houver necessidade, entrar em contato com os Bombeiros ou Polícia Militar.
O e-book “Ofidismo em Santa Catarina: identificação, prevenção de acidentes e primeiros socorros” tem como objetivo divulgar informações científicas sobre cobras, para diminuir o número de acidentes e indicar quais são os primeiros socorros que devem ser tomados em caso de ataque.
Descoberta de novas espécies de fungos
Entre as descobertas realizadas durante a pesquisa estão novas espécies de fungos. O responsável pela pesquisa é Elisandro Ricardo Drechsler dos Santos, professor da UFSC e coordenador do grupo de pesquisa MIND.Funga. Trabalha há mais de 20 anos com ensino e pesquisa sobre fungos. Segundo ele, foram encontrados 1.343 espécimes, correspondendo a pelo menos 145 gêneros e cerca de 120 espécies identificadas. Destas, 18 espécies são novos registros para Santa Catarina e mais de 10 novidades (espécies e gêneros novos) foram detectadas, que estão em processo de descrição ou publicação como novos para ciência. De acordo com a IUCN, até o momento, 11 espécies foram propostas, sendo 9 em alguma categoria de ameaça.
Uma das descobertas foi o fungo Fomitiporia nubicola, que é encontrado apenas no Vale do Itajaí e no Parque Nacional de São Joaquim. Descoberto em 2013, foi publicado apenas em 2020. “Nesses 7 anos foram realizados estudos de comparação com outras espécies do gênero, foram realizadas várias expedições para confirmar que se tratava de uma espécie associada especificamente a uma árvore, Drimys angustifolia, frequente e importante estrutural e funcionalmente nas matas nebulares de Santa Catarina”, explica Elisandro.
Esse fungo foi publicado na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN. Para essa classificação, é considerado o tamanho da população e distribuição restrita das matas nebulares, que é um ecossistema frágil, pois está muito impactado pelas ações do homem e ameaçada pelas mudanças do clima. “Nossos estudos mais recentes sobre essa espécie estão nos levando a entender que a distribuição do fungo pode ser mais restrita e por consequência ter um tamanho populacional menor, sendo, muito provavelmente, mais frágil do que se esperava. Ou seja, em uma próxima avaliação da espécie, muito provavelmente será reclassificada em uma categoria mais restritiva ainda. A espécie está mais ameaçada do que imaginávamos”, diz o pesquisador
Os fungos estão presentes no nosso cotidiano. Eles são responsáveis pela produção de medicamentos e alimentos. As descobertas de novas espécies impactam na qualidade de nossas vidas. “Em se tratando de fungos, podemos citar o grande potencial de aplicabilidade, ou seja, muitas espécies de fungos são verdadeiras ‘caixinhas de surpresas’ que podem ser úteis para nossa qualidade de vida. Quero dizer, cada nova espécie é mais um possível recurso natural alimentar, medicinal, biotecnológico, etc ”, conta.
Fotos: Divulgação PELD
Fotos: Divulgação PELD
E surge o Demogorgon
A planta Demogorgon foi descoberta no Parque Nacional de São Joaquim (PNSJ). Ela ganhou o nome do personagem do Stranger Things, pois suas pétalas se parecem muito com a boca do monstro da série. “Pensamos que seria legal usar um nome chamativo e ligado à cultura pop para chamar a atenção à questão de conservação do PNSJ e da região serrana como um todo”, explica Luís Adriano Funez, mestre em botânica pela UFSC, que realiza pesquisa em botânica e macrofungos.
Tanto o personagem quanto a planta se alimentam de outros seres vivos, pois a planta é um parasita de raízes. Então, a Demogorgon retira toda a sua nutrição diretamente da planta hospedeira, no caso a vassoura (Baccharis uncinella). Atacando as raízes da hospedeira, sugando seiva através de estruturas chamadas haustórios. “A plantinha, apesar de pequena, pode crescer bastante debaixo da terra, fazendo caules muito longos, que podem atacar muitas raízes, e mesmo "saltar" para outra hospedeira, caso esta esteja próxima”, explica Luís.
Ainda não se sabe nada sobre a polinização dela, porém existe uma hipótese que ocorra da mesma forma de outras plantas do gênero Prosopanche. Esse grupo de plantas é polinizado por um grupo muito específico de besouros. Esses insetos utilizam as flores para se alimentar, copular e deixar seus ovos, que comem os restos das flores, depois empupam (formam casulos) e emergem na próxima floração como novos adultos. Observamos besouros nas flores, mas não houve estudos até o momento para entender se são os polinizadores ou como se dá esse processo”, descreve o pesquisador.
"Cosa Linda" o Manezinho
A descoberta de uma nova espécie pode motivar a criação de políticas públicas. É o caso da rã-manezinho, que tornou-se símbolo da cidade de Florianópolis, após uma votação na Câmara Municipal em 2020. Encontrada exclusivamente na ilha de Santa Catarina, a rã está na lista nacional de espécies em extinção da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
Caroline Batistim Oswald realizou uma pesquisa de dois anos para verificar se o Manezinho residia apenas na ilha ou se encontrava em outras partes de Santa Catarina. “A descoberta de uma espécie exclusiva de Florianópolis ressalta a importância do ambiente para a biodiversidade global e pode contribuir para a conscientização e preservação do município. Evidencia a importância da preservação de cavernas e de remanescentes florestais da Ilha de Santa Catarina, com características únicas no mundo, onde vivem espécies que não são encontradas em nenhum outro lugar”, diz Caroline.
Descoberta em 1996, acredita-se que a rã tenha surgido do isolamento geográfico da ilha do continente. Ao se tornar símbolo, ajuda a proteger a espécie e as cavernas onde ela vive, porque se torna interesse especial de proteção do Poder Público.
Conforme Caroline, esse fato “pode ajudar na aproximação entre pesquisa e comunidade, conversando para um bem comum”. A rã de quatro centímetros com tons marrom e amarelos se disfarça em folhas secas e é encontrada no Poção, no bairro Córrego Grande, e na Lagoa do Peri, no sul da ilha.
Qualidade de vida
A preservação dos ecossistemas traz inegáveis e importantes benefícios para toda a sociedade. As florestas da Mata Atlântica, os campos de altitude, as matas nebulares e outros biomas propiciam os chamados serviços ambientais para o homem. Entre estes podemos citar o controle da erosão, o sequestro e armazenamento de carbono e a regulação climática.
Além de preservar é preciso conhecer a diversidade biológica desses ecossistemas. Eles podem abrigar espécies vegetais e animais com potencial de serem fontes de recursos alimentares, medicinais e biotecnológicos. Ou conter espécies que estejam ameaçadas de extinção antes mesmo de serem plenamente estudadas e conhecidas. Neste contexto, os programas de estudos e pesquisas de longa duração são essenciais.
Nas palavras do coordenador do Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração de Santa Catarina, Selvino Neckel, conhecer a biodiversidade traz qualidade de vida para as futuras gerações. “É fundamental que a gente, enquanto Universidade, trabalhe em parceria com a sociedade civil. Que a gente, de alguma forma, trabalhe coletivamente por esse bem maior, por esse bem público”, conclui o cientista.
Coordenação
Ricardo Torres
Texto
Carolina Monteiro
Letícia Schlemper de Souza Gonçalves
Matheus Alves
Revisão
Luis Carlos Ferrari
Identidade Visual
Henrique Almeida
Miguel A. Siqueira
Vídeos
Rafaella Whitaker
Fotos
João Eduardo Cardoso Pinheiro
Matheus Alves
Rafaella Whitaker