Cannabis para uso veterinário:
Cultivo na UFSC impulsiona pesquisas científicas e facilita desenvolvimento de cadeia produtiva da planta no Brasil.
Pesquisas científicas na área da saúde, um mercado bilionário envolvendo a geração de milhares de empregos, criação e desenvolvimento de empresas, além de receita para o estado proveniente de impostos aliada à economia dos custos de importação de medicamentos. Este é o potencial da cannabis para uso medicinal descrito pelo professor Erik Amazonas, do Centro de Ciências Rurais (CCR) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O pesquisador conseguiu autorização judicial para o cultivo no campus de Curitibanos e uso veterinário do produto no final do ano passado e agora aguarda a floração de plantas para finalizar a colheita, uma empreitada cujos frutos envolvem o desenvolvimento de uma rede de pesquisadores da UFSC e de outras universidades.
Quando as plantas estiverem prontas, o Laboratório Multiusuário de Análise Instrumental (Lamai) irá realizar a extração dos óleos. Os primeiros ensaios serão com a extração alcoólica, explica Erik: os tricomas, estruturas das flores de cannabis produtores de resina, serão extraídos em álcool, que é evaporado em baixas temperaturas. Preservados num óleo viscoso, os canabinoides podem ser diluídos em diferentes concentrações para uso terapêutico. O extrato é analisado pelo método de cromatografia líquida de alta performance (HPLC, no termo em inglês). “Inicialmente iremos quantificar 14 canabinoides diferentes junto a um perfil de 20 terpenos, outra categoria de moléculas que todas as plantas produzem, responsáveis pelo cheiro. Os terpenos são a base terapêutica de todas as demais plantas que a gente chama de medicinais”, aponta Erik.
Uma primeira colheita foi realizada em aula prática por Erik com estudantes do curso de medicina veterinária do campus de Curitibanos na segunda-feira, 15 de agosto. Na aula explicou-se o processo de colheita e pós-colheita, e os estudantes puderam realizar o "trimming" (poda) que consiste na retirada das folhas de cannabis com nenhuma ou pouca quantidade de tricomas, deixando somente as flores para serem utilizadas, facilitando a secagem e incrementando a qualidade do óleo.
A cannabis medicinal pode auxiliar o corpo a encontrar o ponto de regulação, através do sistema endocanabinoide, destaca o professor. “Hoje você já pode falar que a cannabis medicinal pode curar algumas condições, não doenças, especialmente processo de dor crônica e inflamações”, salienta Erik. Os estudos sobre a cannabis medicinal pretendem revelar os mecanismos moleculares que levam às implicações clínicas observadas. “Esse é o principal impacto que a gente precisa fazer enquanto pesquisa científica; trazer as evidências clínicas para as diversas condições e trazer os mecanismos de ação por trás dessa resolução clínica. Então, são duas coisas relacionadas ao lado veterinário: precisa ter o estudo no animal, o que faz o medicamento A, B ou C no organismo, e em paralelo, estudos que consigam resolver um mecanismo molecular daquela mesma condição”, avalia o pesquisador. “Temos o suficiente para fazer a clínica, mas não para dizer o que está acontecendo de fato do ponto de vista fisiológico”, complementa.
Colaboração científica
Para encontrar o bem-estar e aumentar a qualidade de vida de um animal, “o foco principal de uma atividade terapêutica”, segundo Erik, a utilização da cannabis medicinal, atualmente, faz emprego gradativo de soluções com canabinoides. De dose em dose, com aumento progressivo acompanhando o paciente, é possível chegar numa regulação do organismo: “aos poucos, coloca-se o corpo em homeostase. Qualquer célula que estiver nessa faixa de funcionamento, obrigatoriamente, não está em condição patológica. Assim, não há doenças se as células estiverem neste estado (homeostase)”, frisa. Os estudos com a cannabis produzida no campus de Curitibanos da UFSC vão ajudar na compreensão dos perfis bioquímicos das plantas, ampliando o uso terapêutico veterinário.
Pesquisas clínicas, in vitro (em células) ou in silico (simulações computacionais) de várias partes do país irão utilizar os extratos produzidos em Curitibanos. “Nós temos uma limitação em termos de localização para plantar, extrair, fazer depósito e o estoque aqui em Curitibanos. Mas o uso em pesquisas pode ser feito no Brasil todo, com parcerias com universidades que não podem cultivar, mas podem promover estudos em células e animais”, acrescenta o professor. O setor de cannabis medicinal depende de uma rede baseada em parcerias para seu desenvolvimento pelo acesso restrito às plantas. “Existe uma interdependência: as instituições de ensino precisam de acesso a quem tenha legalidade para o cultivo. A gente tinha feito pesquisas com extratos de associações de pacientes com estas autorizações, que têm o direito legal de destinar seus extratos para pesquisa”, ressalta Erik. Com o habeas-corpus obtido pela UFSC, o uso terapêutico veterinário ganhou projeção. “Pretendemos estimular novos grupos de pesquisas em novas áreas. Porque até então, no Brasil, só se falava de cannabis medicinal para uso humano, passamos a discutir também o uso veterinário. É importante ressaltar que nossa autorização não se limita ao uso terapêutico veterinário, vale para toda aplicação veterinária”, conta Erik, lembrando que alimentação animal será outra linha de pesquisa.
Somente na UFSC são 46 pesquisadores interessados em produzir ciência baseados nos extratos produzidos em Curitibanos. As universidades federais de Santa Maria (UFSM) e Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), além da Universidade Estadual Paulista (Unesp), estão entre as instituições que mantêm contato com o Centro de Ciências Rurais da UFSC para o estabelecimento de parcerias. “Queremos fomentar nossos programas de Pós em Veterinária (PPGMVCI) e Agronomia (PPGEAN), montar uma rede forte na UFSC para consolidar o nosso grupo interno e, ao mesmo tempo, juntar uma equipe imensa de pesquisadores brasileiros, referências nas suas áreas. É possível, e necessário, introduzir a cannabis a outros especialistas para a gente fazer ciência brasileira, nacional. A importação não pode ser a única fonte de cannabis no Brasil. Não podemos pegar só o que vem de fora: tem que ter pesquisa nacional, tecnologia nacional, ou vamos ficar o tempo inteiro falando de soberania e não fazendo nada para conquistar ela. Um setor só fazendo pesquisa numa única universidade não vai dar conta das necessidades de pesquisa“, afirma.
Empregos e inovação
A economia pela criação e melhoramento de uma indústria brasileira de cannabis medicinal está na casa dos bilhões de reais, projeta o professor da UFSC. A inclusão dos medicamentos a base de cannabis na lista do Sistema Único de Saúde (SUS) “custaria R$ 4,2 bilhões ao Estado brasileiro, se juntarmos os pacientes atuais com os potenciais. Se fosse abastecido com cannabis produzida no Brasil, cairia para pouco menos de um bilhão (900 milhões), quatro vezes menos”, adverte. Com o arcabouço legal atual, “seria dinheiro do contribuinte brasileiro indo para fora. Uruguai, Paraguai, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Espanha: todo mundo iria receber uma parte destes R$ 4,2 bilhões e o brasileiro iria receber tiro da polícia”, lamenta Erik. Com produção nacional, empregos seriam gerados em solo nacional. “É dinheiro, é emprego e renda para os cidadãos brasileiros. Os derivados de cânhamo já podem servir como base para 25 mil produtos diferentes em 19 indústrias. Desde roupa, papel até combustíveis e semicondutores. O cânhamo foi totalmente soterrado para dar espaço para nylon, poliéster, petróleo e outras coisas sintéticas”, continua o pesquisador.
Se a plantação de cannabis fosse regulamentada e houvesse uma vazão para a indústria de modo geral e a farmacêutica em particular, haveria “um poder muito forte de ajudar a agricultura familiar. Porque quem tem propriedades de dois, quatro hectares, conseguiria fazer uma atividade rentável de fato, com a introdução do cultivo de cânhamo ou da cannabis em si, coisa muito rara com o que é plantado em larga escala no país hoje”, pondera Erik. "Como haveria a possibilidade de produzir para várias indústrias, os produtores teriam uma chance maior de negociar com os diferentes tipos de indústria, sem ficar dependente de apenas um tipo de comprador, como ocorre normalmente", opina o professor.
O Polo de Desenvolvimento e Inovação em Cannabis (Podican) idealizado pelo professor Erik Amazonas é uma experiência para servir de catalisador de um ecossistema econômico-social-produtivo da Cannabis. Como o campus de Curitibanos é referência em medicina veterinária canabinoide, a intenção é “garantir matéria-prima e recursos tecnológicos para pesquisa e desenvolvimento de produtos de interesse com e para as indústrias parceiras, atrair e fomentar a criação de empresas e startups na área, e formar um socioecossistema canábico sustentável”.
O pesquisador aspira que os trabalhos da UFSC, somados aos de outras universidades e associações de pacientes, possam ajudar na legalidade plena da cannabis medicinal, “para todo o país sair dessa situação, e o Brasil deixar de ser a rabeira do mundo. Outros países comercializam, alavancam o PIB, gerando empregos, e o Brasil só gerando tragédia e morte, seja ela pela força policial na favela, seja ela pela falta do medicamento para o paciente”, pontua Erik. As flores de cannabis, de onde são extraídos os óleos para os produtos e onde estão as maiores quantidades de princípios ativos, são demonizados como “supermaconha”, conta Erik, apontando um vaso da planta. “Isso aqui é o que chamam de supermaconha. É impossível apreender alguma coisa, de qualquer cultivador, que não seja supermaconha porque toda cannabis cresce assim. O que normalmente é vendido pelo tráfico é um prensado com todas as partes da planta, e chega degradado e com fungos ao usuário”, comenta o professor.
Cultivo no campus
A germinação do primeiro cultivo de cannabis da UFSC foi baixa, na casa dos 30%, por conta da qualidade das sementes utilizadas – mais velhas, estavam armazenadas há bastante tempo – o que não deve se repetir nas próximas safras. É o que garante o engenheiro agrônomo e chefe da Divisão das Atividades Agropecuárias do Centro de Ciências Rurais do Campus de Curitibanos da UFSC, Gustavo Rufatto Comin. Mesmo assim, as plantas mantidas pela UFSC possibilitarão a extração dos primeiros óleos como base para as primeiras pesquisas.
Além dos estudos feitos a partir do óleo, o cultivo de cannabis dentro da UFSC é uma pesquisa à parte. Isto começou com a seleção das plantas mais vigorosas para serem escolhidas como madres para terem sua genética propagada. Delas, foram retiradas estacas clonais, de onde poderão vir as próximas gerações de plantas. Na equação para seleção e manutenção de madres entram a concentração de canabinoides na resina, a quantidade de óleo produzido, a resistências a pragas e doenças e a capacidade de sobressair a estresses ambientais. “Para selecionar uma madre é preciso conhecer realmente a capacidade de vigor e resposta dela, e acima disso a qualidade da extração. Se tiver uma qualidade legal, a gente já sabe que ela já tem um vigor ótimo, elas vão continuar sendo madres. Se não mostrarem uma boa qualidade de óleo, não forem interessantes, ainda existem outras que nós estamos avaliando. Então é possível realmente trocar essas madres, vai depender de como vai ser a qualidade do produto lá na frente. É um conjunto de fatores que se avalia para escolher e manter uma planta como madre”, observa Gustavo.
À medida que o projeto de pesquisa avança, as propriedades das plantas servirão para fundamentar o melhoramento genético do cultivo, analisando as linhagens mais significativas. “É possível ficar cruzando uma planta com outras que possuem características de interesse”, diz Gustavo, que exemplifica: “Uma planta muito vigorosa, que produz muito, mas não tem grande concentração do canabinoide específico, você pode cruzar com outra que não é tão vigorosa, mas acaba trazendo uma qualidade maior às flores. Você consegue produzir um híbrido para unir essas duas qualidades, quando ela isolada, só com essa característica, talvez não seja tão interessante de ser perpetuada”.
Na estufa da UFSC, fatores de desenvolvimento da planta como temperatura e luminosidade são controlados, o que possibilitaria, em caso de mais espaço, um processo constante de colheita, independente de sementes compradas. “Se você escalonar a retirada de clones, organizando a semeadura, as plantas em florescimento e em estado vegetativo, pode haver colheitas até mensais ou com períodos menores, desde que você tenha a estrutura necessária para ter um número X de plantas em floração e o número Y de plantas em vegetação, como duas casas de vegetação, uma para cada fase”, aponta o pesquisador.
A cannabis é uma planta rústica, informa Gustavo, com uma gama de produção variável, respondendo aos processos utilizados pelos cultivadores. “Sempre tentamos dar o aporte ideal, tanto nutricional e do controle de PH para que produza o máximo do seu potencial. Mas se ela é de uma variedade genética sem tanta produtividade, não adianta. Mesmo que você dê toda a tecnologia, todo aporte nutricional, ela não vai alcançar um rendimento muito grande. O ideal é sempre a gente buscar algo que produza mais, mas mantendo o máximo de qualidade”, arremata o agrônomo.
Fotos: Ana Krug/Gabriel Olivo/Centro de Ciências Rurais/UFSC