CIÊNCIAS FORENSES
O uso do método e do conhecimento científicos em investigações judiciais
Não são raras as vezes em que aquele seu seriado preferido de investigação começa com uma clássica cena: um detetive adentrando em um ambiente apinhado de peritos que fotografam, coletam amostras, fazem demarcações e simulações no local onde ocorreu um crime. A resolução de casos policiais sempre foi um assunto de grande interesse do público. Além de séries, é hoje objeto de livros, podcasts, webséries e tem até canal de TV dedicado exclusivamente ao tema.
Um dos pontos centrais da curiosidade da audiência é o desenrolar do processo de investigação, as técnicas, as ferramentas e os conhecimentos aplicados na tentativa de elucidar uma ocorrência. Para isso, entram em ação as ciências forenses – um conjunto de métodos e conhecimentos científicos necessários para esclarecer questões específicas que auxiliarão e darão suporte à justiça.
Engana-se quem pensa que esse tipo de ciência é utilizado apenas em casos criminais. Conforme explica Beatriz Barros, doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em odontologia legal e antropologia forense, "as ciências forenses são utilizadas para desvendar não só crimes, como também variados assuntos legais: cíveis, penais, trabalhistas ou administrativos. O objetivo principal é contribuir com as investigações judiciais".
Beatriz, no entanto, salienta que a realidade performada em filmes e séries é uma representação fantasiosa do trabalho do perito e das ciências forenses. "Nos laboratórios das séries de ficção é possível ver tecnologias superavançadas que, no cotidiano, não existem. Há também uma diferença fundamental no tempo real de resposta. Na ficção tudo se resolve em poucos dias, no mesmo capítulo ou episódio. Na vida real, as análises e seus resultados não são tão imediatos", pondera.
Ainda que a tecnologia disponível ainda não seja exatamente a exibida nas telas, a variedade de profissionais envolvidos em uma investigação é real. O campo forense agrega peritos das mais distintas áreas. É considerado interdisciplinar por envolver física, química, biologia, antropologia, medicina, odontologia, engenharia, contabilidade, linguística, genética, entomologia, tecnologia da informação – enfim, uma lista extensa e não taxativa.
UFSC cria primeiro laboratório no Sul
A UFSC foi pioneira ao criar o primeiro laboratório dedicado às ciências forenses no sul do país em uma instituição de ensino superior. O Laboratório de Antropologia Forense (Lanfor) começou suas atividades em março de 2017, por iniciativa da professora de anatomia Elisa Winkelmann, neurocientista especializada em sistema nervoso central.
Incentivada por um aluno que havia cursado especialização em antropologia na Universidade de Coimbra, em Portugal, Elisa passou a se dedicar à análise de ossos, a participar de congressos na área e a contatar docentes com interesse na prática forense.
No início, as atividades do Lanfor eram desenvolvidas em diversos laboratórios pertencentes ao Departamento de Ciências Morfológicas. Desde março deste ano, entretanto, o grupo passou a ter um espaço próprio, no prédio do Centro de Ciências Biológicas (CCB), instalado no bairro Córrego Grande, em Florianópolis. O Lanfor conta atualmente com 15 integrantes, entre professores e alunos, que se reúnem às segundas-feiras, ao meio-dia. Os encontros alternam-se: em uma semana há a realização de seminário para apresentação de artigos ou trabalhos no auditório do CCB, sempre em sessões abertas ao público; e, na outra, são realizadas atividades práticas de análise e montagem de esqueletos.
Dois workshops já foram promovidos pelo laboratório da UFSC. O primeiro foi voltado a profissionais do Instituto Geral de Perícia e o segundo a alunos com interesse na área forense – neste último, as vagas esgotaram-se em seis minutos. Em um dos workshops, em 2018, um dos temas tratados foi a estimativa do perfil biológico de um indivíduo. Na ocasião, os participantes vivenciaram uma demonstração prática, capitaneada pelo antropólogo e doutorando em arqueologia Marcelo Balvoa, em que os alunos conheceram as técnicas de escavação arqueológica.
A professora Elisa destaca que uma das propostas do laboratório é montar uma coleção de esqueletos identificados. "E, para isso, o foco não é saber o nome da pessoa, mas aplicar o conhecimento para outros tipos de identificação, como estatura, idade, sexo e ancestralidade. Por meio do estudo dessas ossadas, podemos averiguar a compatibilidade com as tabelas que já existem na literatura", ressalta.
A supervisora do Lanfor, contudo, observa que um dos maiores obstáculos na atividade de identificação humana é a falta de parâmetros nacionais e o consequente uso de tabelas estrangeiras (europeias, americanas e australianas, principalmente) para se estimar as características do indivíduo. Outro problema recente enfrentado pela equipe do Laboratório foi o fim do convênio com a Polícia Científica do Estado de Santa Catarina, antigo Instituto Geral de Perícias (IGP). O acordo entre o órgão estadual e a UFSC garantia a doação de cadáveres para o desenvolvimento de pesquisas na Universidade.
Alunas Aline Assmann, do curso de Medicina, e Aline Jaques, da Biologia, em atividade no Lanfor. Crédito: Henrique Almeida
Alunas Aline Assmann, do curso de Medicina, e Aline Jaques, da Biologia, em atividade no Lanfor. Crédito: Henrique Almeida
Professoras Beatriz Barros, Elisa Winkelmann e Ana Paula Casadei representam Laboratório em Congresso Internacional. Crédito: Divulgação | Lanfor
Professoras Beatriz Barros, Elisa Winkelmann e Ana Paula Casadei representam Laboratório em Congresso Internacional. Crédito: Divulgação | Lanfor
A promoção de workshops é uma das atividades do grupo. Crédito: Acervo pessoal
A promoção de workshops é uma das atividades do grupo. Crédito: Acervo pessoal
Registro de reunião virtual dos integrantes do Laboratório de Antropologia Forense em 2021. Crédito: Reprodução | Instagram
Registro de reunião virtual dos integrantes do Laboratório de Antropologia Forense em 2021. Crédito: Reprodução | Instagram
Uma das propostas do Lanfor é montar uma coleção de esqueletos identificados. Crédito: Henrique Almeida | Agecom
Uma das propostas do Lanfor é montar uma coleção de esqueletos identificados. Crédito: Henrique Almeida | Agecom
Da esquerda para direita: as professoras Beatriz Barros e Elisa Winkelmann, e as estudantes Aline Assmann e Aline Jaques. Crédito: Henrique Almeida | Agecom
Da esquerda para direita: as professoras Beatriz Barros e Elisa Winkelmann, e as estudantes Aline Assmann e Aline Jaques. Crédito: Henrique Almeida | Agecom
Expertise de inúmeras áreas
São diversos os campos do conhecimento que podem ser empregados na resolução de crimes ou outras situações legais. A botânica, por exemplo, já detectou livros literalmente venenosos, encadernados no século XIX com um tecido imbuído em arsênico. Essa ciência contribuiu ainda para resolução do famoso sequestro do bebê de Lindbergh, em 1932, quando a anatomia da escada usada pelo criminoso e abandonada no local facilitou o veredito dos jurados. Um especialista conseguiu provar que a escada havia sido construída com o mesmo material que estava faltando no assoalho do sótão da casa em que morava o acusado, conforme revelou o padrão de crescimento dos anéis da madeira. O julgamento foi o primeiro caso em tribunal em que a botânica forense foi admitida como prova nos Estados Unidos.
Um tipo de análise também bastante comum é a hematologia, que realiza a avaliação de manchas de sangue formadas durante um crime violento. Um perito especializado pode ajudar a entender a posição e a localização da vítima na hora do crime, o ângulo e a força com que ela foi atingida pelo golpe ou objeto que a matou, bem como a arma utilizada de acordo com padrões formados pelas manchas de sangue.
Outra ciência que colabora com o trabalho investigativo é a tricologia, o estudo dos pelos. A importância desse tipo de material no estudo forense reside na sua resistência à decomposição e, logo, na vantagem de ser extremamente durável. Essa característica é atribuída à cutícula, formada por células achatadas ricas em enxofre que dão forma ao cabelo e que o protegem de choques físicos e agentes químicos potentes. Entre as drogas e substâncias que podem ser verificadas pela medicina forense em amostras estão anfetaminas, anticonvulsivantes, benzodiazepínicos, canabinoides, cocaína, antifúngicos, morfina, níquel, hormônios sexuais e minerais.
A seguir, destacamos algumas áreas das ciências forenses, como elas podem contribuir em investigações e casos notórios já solucionados com o uso do conhecimento científico
O progresso do setor no Brasil
As ciências forenses ainda estão em processo de institucionalização no Brasil. A procura por postos de trabalho no setor cresceu bastante nas últimas décadas, motivada pela ficção e pelo destaque em recentes casos na imprensa que ganharam repercussão nacional, como os assassinatos de Daniella Perez (1992), dos pais de Suzanne von Richthofen (2002), da menina Isabela Nardoni (2008) e, mais recentemente, a morte de Henry Borel (2021). Em todos esses casos, a perícia teve papel fundamental para o processo investigativo.
Para o perito criminal Jair Silveira Filho, egresso do curso de Química da UFSC e especialista em Segurança Pública e Cidadania, o país vive atualmente mudanças significativas na perícia forense. "A Proposta de Emenda à Constituição que inclui a Polícia Científica no artigo 144 está em fase final de votação no Congresso, e o Ministério da Justiça e Segurança Pública tem investido na área forense, principalmente na melhoria dos setores de DNA forense. Além disso, com a diversidade de programas e séries de TV sobre perícia, muitas pessoas passaram a se interessar pelo assunto", avalia.
Ainda que não exista uma graduação específica na área forense, alguns cursos já possuem disciplinas voltadas ao assunto. E a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, oferece o curso de especialização Antropologia Forense e Direitos Humanos.
Um artigo publicado por Patrícia Fachone e Léa Velho, na Revista Tecnologia e Sociedade, argumenta que, de forma geral, os objetivos de formar recursos humanos altamente qualificados, ampliar o conhecimento científico e tecnológico e iniciar novos cientistas em ciência forense parecem ser periféricos para as organizações brasileiras que fomentam pesquisas. As autoras afirmam que o desenvolvimento tecnológico e científico focado e o crédito conferido pelo rigor acadêmico na formação dos recursos humanos são fundamentais para aprimorar o campo no Brasil.
Texto e edição
Maykon Oliveira | maykon.oliveira@ufsc.br
Jornalista - Agência de Comunicação | UFSC