Como as fake news ganham tanta atenção? Professor da UFSC explica

Preconceito interfere sobre quem é visto como bom informante; minorias sociais sofrem “injustiças epistêmica”

“Não dá para ser Sherlock Holmes o tempo inteiro”. O famoso personagem da literatura britânica é uma metáfora utilizada por Alexandre Meyer Luz, professor de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), para se referir ao ser humano ideal: aquele que sabe avaliar a qualidade de uma informação.

Diferenciar fake news de notícias verdadeiras tornou-se uma competência quase “sherlockiana”. Mas o cidadão comum não tem o mesmo tempo de um detetive para investigar a origem de todas as histórias que recebe diariamente por aplicativos de mensagem. Segundo Meyer, outro tipo de ingrediente explica por que concedemos mais ou menos crédito a alguns informantes. São os pressupostos de confiança, o que inclui desde as relações com parentes próximos (pais, por exemplo) até mecanismos sociais (como os preconceitos de racismo, machismo e LGBTfobia).

Meyer é professor na área de Epistemologia, ramo da Filosofia dedicado aos estudos sobre a produção do conhecimento. Sua pesquisa adiciona complexidade aos modelos epistêmicos reduzidos à figura do indivíduo racional e que não é atravessado por emoções. “Na Filosofia, sempre fazemos algum grau de abstração”, afirma. “Mas quando queremos pensar sobre assuntos muitos ‘encarnados’, como fake news e educação, a abstração não pode criar modelos que não respeitam como as pessoas de fato pensam”.

“Nem sempre as relações de troca de informação passam pelo arsenal crítico sherlockiano”

“No mundo real, frequentemente a emoção nos persegue”

Segundo dados da TIC Domicílios 2022, quase metade dos brasileiros não verifica se uma informação encontrada na internet é verdadeira. O número dos que checam é ainda menor entre usuários cujo acesso à rede se dá apenas por celular. Já as principais fontes de informação são WhatsApp e YouTube – emissoras de TV aberta e sites de jornais estão atrás, indica o Digital News Report 2023.

Distinguir notícias verdadeiras de falsas, no entanto, é uma habilidade que vai além da postura investigativa à la Sherlock Holmes. “O grupo de WhatsApp não é apenas informacional. É emocional. No mundo real, frequentemente a emoção nos persegue”, afirma Meyer. 

As emoções, em si, não são ruins, ressalta, mas “impactam a nossa posição em relação aos outros como fonte de informação”. Para o professor de Filosofia, o fenômeno das fake news pode ser compreendido sobre outra chave: “parece transmissão de informação, mas há, ali, um trabalho nas relações de confiança”.

Psicólogos e sociólogos explicam que o consumo de fake news e teorias conspiratórias está ligado, em certa medida, ao desejo de pertencimento a um grupo social. A confiança depositada em um informante também pode interferir na avaliação. Figuras de autoridade  – desde um chefe religioso até o amigo de infância – conferem maior ou menor credibilidade à informação de acordo com as relações sociais construídas ao longo da trajetória de vida da pessoa.

“Alguém compraria a história da ‘mamadeira de piroca’ olhando apenas para a informação?”, questiona Meyer. “Pessoas compram porque estão em contextos de confiança previamente concedidos. Você tem um caldo de fake news que ataca em blocos: a preocupação com o comunismo, o risco para a sexualidade das crianças, etc. Elas dependem dessas relações para se espalhar”.

“Quando rebaixo um grupo social, rebaixo meu acesso à experiência dele”

“Injustiça epistêmica”: quando minorias sociais são descredibilizadas

Em junho de 2023, na Bahia, uma paciente teria dito que “odiava ser atendida por um médico homossexual”. No Rio de Janeiro, em 2016, teve repercussão nacional o caso de um paciente que recusou atendimento por um médico negro.

São exemplos que ilustram o fenômeno da “injustiça epistêmica”, conceito originalmente cunhado pela filósofa inglesa Miranda Fricker. O termo refere-se a situações pelas quais passam grupos que são vistos, injustamente, como menos capazes de fornecer informação de boa qualidade. Pretas, mulheres e LGBTs tendem a ser os principais vitimizados, afirma o professor.

No exemplo dos pacientes que recusaram atendimento, um dos danos é contra o próprio ouvinte: ele deixa de receber uma informação ao rebaixar o outro. Mais grave, no entanto, é a consequência para a própria vítima da “injustiça epistêmica” – sucessivos casos podem fazer com que a pessoa passe a acreditar que é menos capaz de produzir conhecimento.

A constituição de ambientes mais diversos, nas escolas ou ambientes de trabalho, pode ser uma estratégia para minimizar as injustiças. “Seria útil colocar os indivíduos em contato a fim de que discursos racistas, por exemplo, possam ser contrapostos”, sugere Meyer. Políticas sociais, como a implementação de cotas nas universidades, também são responsáveis por atenuar danos epistêmicos.

“Nossa educação é fortemente centrada no modelo sherlockiano”

Modelo sherlockiano predomina no ensino escolar e universitário

Uma das possíveis aplicações a partir da pesquisa de Meyer é a formulação de estratégias pedagógicas mais produtivas para escolas e universidades.

Ao considerar contextos sociais, a epistemologia possibilita o desenvolvimento de modelos de ensino menos idealizados e mais realistas. “Você começa a abrir portas para outras possibilidades na formação dos indivíduos”. E alunos, sejam eles de ensino básico, médio ou universitários, são pessoas em processo de formação enquanto agentes epistêmicos, lembra o professor. 

“Nem todos vão bem nas avaliações de formato mais típico, como as provas, mas alguns são sensíveis à escuta do outro quando precisam lecionar, por exemplo”. Para Meyer, modelos epistemológicos alternativos podem permitir maior espaço para a valorização de outras formas de desempenhar certas tarefas.

Estudo faz parte de programa de pós-graduação consolidado

Em fase inicial, a pesquisa de Alexandre Meyer foca, neste momento, no tema da “violência epistêmica” e seus mecanismos de preconceito e microagressões. O término do projeto deve resultar na publicação de dois ensaios.

O Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL), do qual Meyer atua, possui nota máxima pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). É reconhecido como um dos programas mais relevantes da área no Brasil, e integra o Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da UFSC.

Sobre o pesquisador

Alexandre Meyer Luz é professor no Departamento de Filosofia da UFSC. Possui doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pesquisa temas que envolvem epistemologia contemporânea.

Contato: alexmeyerluz@gmail.com