Correios: do lucro ao sucateamento e privatização

Funcionários temem pelos seus empregos e manutenção de serviços essenciais é incerta

Ilustração: Flávio Ricardo.

Ilustração: Flávio Ricardo.

Centro do noticiário da política nacional neste ano de 2021, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos tem mais de 358 anos de história. Com surgimento que data do Brasil Colonial, os Correios prestam um serviço público essencial: o envio e entrega de correspondências postais. Durante a pandemia de Covid-19, esta função foi ainda mais primordial, entregando produtos e encomendas para que as pessoas não precisassem sair de casa.

Mesmo assim, ainda se discute a necessidade de um serviço postal público no Brasil, e com a tramitação da proposta de  privatização dos Correios através do PL 591/2021, muitos servidores estão inseguros sobre seu futuro, não sabendo o que ocorrerá com a instituição e seu papel social na mão da iniciativa privada. O projeto de lei em questão já passou pelo Congresso e agora tramita no Senado Federal.

"Tínhamos muitos benefícios que foram retirados”

José Lima* (nome fictício), tem 57 anos e trabalha há quinze como carteiro. Foi nesta profissão que sustentou sua família com uma esposa e um filho.  Sua rotina sempre foi a mesma, sair de casa a pé com a bolsa lotada de correspondências e caminhar bastante. Entretanto, muita coisa se alterou recentemente. O trajeto, segundo José, muda bastante hoje em dia, e a confiança das pessoas também: "Antes as pessoas confiavam mais nos correios. Hoje estão mais indiferentes.”

José construiu sua carreira no interior de São Paulo e atualmente está em São José dos Campos, a 593 km da capital paulista. Ele também já trabalhou em outras cidades no fim de semana, como Jundiaí, Pindamonhangaba, Atibaia e Caraguatatuba. O carteiro conta que percorre de cinco a seis km por dia para fazer entregas, totalizando um percurso mensal que varia entre 150 e 180 km.

Distância que José percorre por dia, num raio de 6 quilômetros, na cidade de São José dos Campos, São Paulo.

Distância que José percorre por dia, num raio de 6 quilômetros, na cidade de São José dos Campos, São Paulo.

Recentemente, a sobrecarga tornou-se a marca do trabalho dos funcionários dos Correios. José conta que a situação vem piorando gradativamente, principalmente nos últimos cinco. Quanto ao seu histórico na empresa, José não acha que viveu nada de muito marcante, mas lembra de um passado de maior qualidade no trabalho: “Nos primeiros 10 anos, era bem melhor que hoje em dia. Tínhamos muitos benefícios, que foram retirados.”

Foto: SINTECT - DF.

Foto: SINTECT - DF.

Foto: Correios / Divulgação.

Foto: Correios / Divulgação.


Mudanças trazidas pela Pandemia

Como já era de se esperar, e foi demonstrado durante esse período, os Correios foram considerados serviços essenciais pelo Governo Federal durante a pandemia. Porém, com o afastamento de funcionários que sofrem com comorbidades, os que ficaram, como José, acabaram ainda mais sobrecarregados, já que o número de entregas aumentou na quarentena.

Mas como ele mesmo lembra, o enxugamento do quadro de funcionários já é sentido há muito tempo, e a Covid-19 apenas escancarou o problema: “Desde  2011 não tem mais concurso. Pelo contrário, só saíram, aposentados e pelos planos de demissão do governo.”  

“A ordem do governo é sucatear”

O experiente funcionário é radicalmente contra a privatização dos Correios. Ele acredita que boa parte do descrédito atual da empresa é fruto de uma concepção equivocada sobre a lucratividade da estatal. “Muita gente pensa que o governo dá dinheiro para os correios. Mas é o contrário. A empresa repassa milhões ao governo anualmente. Ao contrário do que dizem: os correios são altamente lucrativos.”

O balanço financeiro da empresa corrobora a afirmação de José. De acordo com os dados oficiais, entre 2018 e 2020 o lucro dos Correios foi de cerca de R$ 1.5 bilhão.

Infográfico: Ana Sophia Sovernigo e Lucas Stank.

Por fim, o carteiro é bem direto ao descrever a forma como o governo trata os Correios. Para ele o problema não é a questão de ser público e sim o fato de ser mal administrado. “A ordem do governo é sucatear, para entregar quase de graça uma empresa que tem mais de 300 anos de história.” Ao que parece, pela história de José, esta ordem está sendo cumprida.

Ao contrário do que muitos pensam, os Correios não entregam apenas encomendas. Na verdade, a entrega de produtos é um serviço secundário, que nunca foi monopolizado pela empresa - podemos ver a grande popularização de serviços privados de entrega fornecidos por lojas e sites de compras online. O que de verdade é uma atribuição única e exclusiva dos Correios é a entrega de cartas e telegramas, principalmente contas de energia elétrica, água e saneamento e faturas de compras em geral, estando presente nos 5.570 municípios brasileiros.

Além disso, os Correios também prestam outros serviços fundamentais para a população, como a entrega de livros didáticos nas escolas, remédios e vacinas nos postos de saúde, urnas eletrônicas para as Eleições, provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e ajuda humanitária em catástrofes. Quando a barragem de mineração da empresa Vale do Rio Doce estourou na cidade de Mariana, Minas Gerais, em 2015, os Correios foram os primeiros a chegarem lá, levando alimentos, remédios e ajuda à comunidade.

Foto: Mauro Lima.

Foto: Mauro Lima.

A pergunta que fica é: uma empresa privada vai atender municípios isolados no interior do Brasil com a mesma competência que a estatal presta há 358 anos? Para Luciano Alves, motorista do Centro de Entrega de Encomendas dos Correios em Joinville, Santa Catarina, a resposta é negativa. “Temos certeza que se privatizarem a empresa, quem está trabalhando vai ser mandado embora ou pode ser recontratado com uma nova realidade. Que empresa privada vai querer pagar plano de saúde, vale-alimentação e manter uma certa estabilidade? Quem vai fazer a entrega nos municípios do interior, na zona rural? É isso que o governo quer na verdade. Terceirizar tudo, até sua responsabilidade social com a população”, comenta Luciano, que trabalha há mais de 24 anos nos Correios.

Luciano faz uma rota de cerca de 50 quilômetros por dia. Para ele, a cada ano o serviço vem aumentando, principalmente pela falta de efetivo. Muitos trabalhadores foram afastados, demitidos ou aposentados, sem que houvesse reposição. O último concurso feito para os Correios ocorreu em 2011. O motorista diz que a categoria não reclama da quantidade de trabalho, mas sim das condições:

“queremos ter mais colegas para poder entregar com qualidade e no tempo certo. A população reclama que não está recebendo as suas contas em dia, mas isso acontece porque a empresa não investe em infraestrutura para atender a demanda”.


A luta sindical

Luciano Alves, junto de Fernando Alegre e Manoel Marcelino, são diretores do Sindicato dos Trabalhadores na Empresa de Correios e Telégrafos e Similares de Santa Catarina (SINTECT/SC). Os trabalhadores contam que a luta sindical foi imprescindível para melhorar as condições de trabalho durante a pandemia.

“O sindicato teve que entrar com uma ação na Justiça para a empresa fornecer máscaras e álcool gel. Só depois que conseguimos os EPIs básicos para continuar trabalhando. Conseguimos por via judicial também que, quando um trabalhador passar Covid para o outro, a unidade é fechada para a limpeza e desinfecção do local. Então nada foi de graça, é muita luta para gente conseguir fazer uma simples limpeza da unidade de trabalho”, afirma Fernando, carteiro há 18 anos.

Além disso, muitos trabalhadores morreram por conta da Covid. O Sindicato tentou buscar os números exatos, mas os Correios não disponibilizaram. 

Trecho da entrevista com Fernando Alegre, carteiro e diretor da Secretaria de Formação Sindical do SINTECT/SC.

Manoel Marcelino, carteiro há 26 anos, lembra que a tentativa sistemática de privatização dos Correios não vem de hoje. A proposta existe desde o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Atualmente são cerca de 99 mil trabalhadores para atender um país de dimensão continental como o Brasil.

Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, o serviço postal também é público e possui mais de 600 mil trabalhadores. “Às vezes os brasileiros se inspiram tanto nas coisas americanas e não veem isso. Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, os Correios não dão lucro. Aqui sim”, comenta Manoel.

Mesmo com um lucro de R$ 1,5 bilhão no último ano, em 2021 a Data-base – período do ano em que patrões e empregados representados pelos Sindicatos se reúnem para repactuar os termos dos seus contratos coletivos de trabalho – ficou em 0%, ou seja, os funcionários não receberam nem mesmo a correção salarial com base na inflação, que já chega na casa dos 9,6%.

José, Luciano, Fernando e Manoel relatam um panorama comum: a falta de estrutura parece ser uma estratégia proposital para privatizar a empresa. “Você precisa começar a destruir a imagem dentro da população. Aí a população pensa ‘tem que vender mesmo’. Não é falta de vontade dos trabalhadores, na verdade é que a gente tá com pouca gente e trabalho dobrado, relata Luciano.

Os trabalhadores lembram de um tempo onde conheciam as pessoas que atendiam, pois iam toda semana entregar correspondências naqueles lares. Hoje, as rotas mudam tanto e o trabalho se intensificou num nível em que os carteiros precisam deixar as cartas correndo e já sair para outro lugar. 

Para eles, a opinião pública negativa é um dos alicerces para privatizar uma empresa. “Hoje o carteiro vai botar a conta no portão e já nem tá conseguindo mais, e quando ele consegue tem que sair correndo porque as contas estão atrasadas e as pessoas acabam brigando com os trabalhadores sem saber que eles não tem culpa nenhuma”, comentam.

De mãos atadas, os funcionários da estatal tentam organizar a categoria no Sindicato para barrar a proposta de privatização, além de pressionar senadores para que votem contra o PL 591/2021. Os sindicalistas sinalizam que somente a organização aliada à mobilização da população em defesa dos serviços públicos é que podem mudar esse cenário.

Reportagem de Ana Sophia Sovernigo e Lucas Vinicio Stank da Silva.

A reportagem foi produzida como trabalho final da disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, ministrada pela professora Stefanie Carlan da Silveira, no primeiro semestre de 2021.