DE PORTAS FECHADAS: ANTIGA RODOVIÁRIA DE FLORIANÓPOLIS
Por determinação da Prefeitura, cerca de 22 comércios deixaram prédio de valor milionário que tem posse disputada na Justiça e destinação incerta
Reportagem e fotografias: Cintia de Oliveira

Avenida Mauro Ramos, número 947, Centro de Florianópolis. Cravado ali, em uma quadra triangular em área nobre da cidade, há um prédio largo e baixo, com topo arredondado que forma vários arcos. Embaixo dos arcos estão os mais variados tipos de comércio: Lotérica, lanchonetes, bares, restaurantes, loja de informática, oficina mecânica, distribuidora de água e brechós. Ou pelo menos estavam, até meados de outubro de 2023. Já em novembro, os cerca de 30 comércios foram reduzidos a oito.
O local funciona há tanto tempo como centro comercial que muitos moradores da cidade não sabem que durante 21 anos, de 1960 até sete de setembro de 1981, dia que o Terminal Rita Maria foi inaugurado ao som de Fafá de Belém, ali funcionava a rodoviária da Capital. Desde então, o prédio vem sendo esquecido e relembrado pela Prefeitura e pela mídia local, em um passado de descaso e um futuro incerto.
O segundo semestre de 2023 é um desses momentos em que o local é relembrado e recebe muita atenção. O jornal ND+ lançou uma série de reportagens sobre o local e uma coluna de opinião do Jornalista Fabio Gadotti, publicada em oito de julho, foi utilizada pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) para instaurar uma investigação, que se tornou o inquérito civil 06.2023.00003775-1. Nesse inquérito, o promotor de justiça Daniel Paladino recomenda a desocupação, interdição e demolição do prédio, mesmo com laudo pericial da Defesa Civil atestando que não há “risco público” ou dano estrutural no edifício. Essa recomendação foi motivo pelo qual a Prefeitura pediu a desocupação dos comércios.
Confira todo o inquérito abaixo. Na página estacada está a conclusão do perito da Defesa Civil
A partir disso, muitas matérias jornalísticas foram publicadas sobre o pedido de interdição e desocupação do prédio. No entanto, poucas reportagens ouviram os lojistas e as pessoas que compraram e disputam no judiciário a posse dos boxes com a Prefeitura de Florianópolis. Aqui você vai conhecer algumas histórias de pessoas que tiram ou tiravam o sustento do comércio no prédio, o histórico de disputa sobre a propriedade e os contextos da desocupação.
O centro da disputa tem 3.395 m², é dividido em cerca de 33 boxes comerciais, foi inaugurado em 1960, possui uma localização privilegiada na cidade e consequentemente, alto valor. De acordo com as entrevistas realizadas pela reportagem, os aluguéis no local giram em torno de 3 mil reais por sala. Já o preço de venda de imóveis comerciais na região central de Florianópolis é de 7.740 reais por metro quadrado, de acordo com a pesquisa FipeZap de setembro , que monitora preços de anúncios de venda e aluguel de imóveis. Portanto, multiplicando essa média de preço de venda em relação ao tamanho do prédio, o imóvel pode valer mais de 23 milhões de reais.
Além do alto valor material, há grande número de pessoas que trabalham e dependem da exploração comercial do local. Segundo a Associação de Comerciantes da Antiga Rodoviária de Florianópolis (Ascarf), até o pedido de desocupação do prédio eram mais de 150 pessoas trabalhando diretamente nas lojas. Cada uma possui uma história diferente com o local, mas algumas delas estão lá há décadas.
Como é o caso da família de Alisson, proprietário da Haval Embalagens, que até a publicação desta reportagem, conseguiu manter seu comércio aberto. Ele é tranquilo e fala com a segurança de quem tem o ponto na família há quase 40 anos, desde que foi comprada pelo seu pai em 1985.
Mesmo com as várias vistorias que passaram pelo prédio, o pedido de desocupação e a necessidade de pedir um mandado de segurança para permanecer de portas abertas, ele tem apenas duas reclamações: A forma que eles foram retratados pela mídia e a burocracia. Em relação à primeira, Alisson fez questão de deixar claro que:
“ninguém aqui invadiu loja, ninguém aqui está roubando, ninguém está burlando a lei. Muitos dos comerciantes estão aqui [há muito tempo], alguns há 40 anos. Tem senhores velhinhos que tem loja e com medo dessa questão da prefeitura, simplesmente abaixaram a porta”.
Já quanto à burocracia, ele acredita que seja a raíz dos problemas em relação à posse do prédio: “Isso já está em discussão há 25 anos e a Prefeitura não entra nesse consenso [...] Tudo por uma questão burocrática, ou uma vontade política, que seja”.
Ele e os outros comerciantes com lojas abertas conseguiram mandados de segurança, pois já existe, desde de 2015, um processo de reintegração de posse pedido pela Prefeitura de Florianópolis. Então, a ocupação do prédio estaria garantida até que esse processo tenha um desfecho. Além disso, os comerciantes contestam a decisão de desocupar o prédio justamente por conta do laudo da Defesa Civil, também apontado nas decisões favoráveis dos mandados de segurança.



AS NOVAS VELHAS QUESTÕES
Foto/blog Classical Buses/autoria desconhecida, 1971

"Toda a Estação encontra-se bem iluminada figurando permanentes, fazendo realçar ainda mais o lindo prédio um grande número de luminosos a gás néon, coloridos e que toma uma quadra daquela avenida”. Foi assim que Osvaldo Melo, em coluna publicada no jornal O Estado em 30 de abril de 1960, descreveu a rodoviária da capital, na Mauro Ramos. A história do prédio está bastante ligada ao jornal, que à época era o de maior circulação no estado.
A construção foi amplamente reivindicada. Depois, é celebrada, assim como no trecho anterior. Por fim, veio a reivindicação de construir outra rodoviária, por entender que aquela já não suportava a demanda crescente de transporte. Em 1981 a rodoviária foi-se, mas o comércio, que sempre esteve no local, permaneceu.
Na realidade, o primeiro intuito do prédio era ser um mercado público, e depois as agências de transporte foram adquirindo boxes e fazendo a saída e chegada dos ônibus no local, de acordo com O Estado. A construção do prédio foi regulamentada pela Lei municipal 319 de 1957, que cedia o terreno para que o edifício fosse construído pela iniciativa privada e garantindo a posterior exploração comercial ao longo de 30 anos. Este prazo começaria a contar a partir da emissão do habite-se, que é um documento obrigatório que atesta a segurança do imóvel.
O habite-se é o ponto zero da disputa. Os comerciantes dizem nunca foi emitido, portanto o prazo de exploração que estava condicionado ao documento, nunca teria começado a valer. O documento realmente não consta em nenhum processo em relação ao caso que a reportagem teve acesso, nem foi apresentado pela prefeitura em resposta a um pedido de LAI (Lei de Acesso à Informação) que solicitou todos os documentos relacionados à posse e uso do prédio. Em resposta a este pedido a Prefeitura apresentou a matrícula do terreno, que registrou em 2015, o número do processo que corre na Justiça e a lei sobre a construção do imóvel.
Confira abaixo:
Resposta LAI Antiga Rodoviária by Cintia De Oliveira on Scribd
Segundo Filavi, cuja família é proprietária de dois boxes no local há 40 anos:
“A gente nunca recebeu o Habite-se, a gente continua esperando começar o prazo. Qualquer ordem de serviço funciona dessa forma, então a gente briga por essa questão. Para que continue usando, desde que receba realmente os documentos oficiais ou que tire a gente de maneira lícita e pague a indenização do que a gente comprou. Quer dizer: eu tenho direito à posse, mas não posso usar? Tenho direito da posse não posso alugar? Tenho direito à posse, mas não vale o que tá escrito no Diário Oficial de 30 anos atrás?”
A reclamação de não poder alugar é porque desde 2015 há uma decisão liminar no processo de reintegração de posse que proíbe a venda e o aluguel das salas comerciais. Situação que na prática não é cumprida. A imobiliária Brognoli é inclusive citada como uma parte interessada no processo, mas outras imobiliárias como Andrea Cardoso e HabitaSul também intermediam locações no local. Mesmo a própria Prefeitura emitiu alvarás para a Galeria Lama, em box alugado no local em 2021. Cuja história você confere mais abaixo.
A partir do início do processo de reintegração, Filavi relata receber pedidos de desocupação “toda a hora”. “Chega a ser chato. Eles querem que a gente fique apreensivo, desestabilizado, é mais psicológico do que de fato vai acontecer, né? Agora, por exemplo, estão noticiando que segunda vai a polícia, vai tirar todo mundo. O que é um absurdo, porque se tem mandado de segurança para dois ou três, porque vão tirar os outros à força? Não faz sentido nenhum”.
Filavi diz que os outros pedidos de saída estavam condicionados a algum reparo ou mudança no prédio, que sempre eram cumpridos, mas desta vez não. Depois dessa entrevista realmente houve a desocupação da maior parte das lojas. De acordo com ele, “deve haver interesse político, algum apoio de alguma construtora, que queira [o terreno], porque a área é muito nobre. Então, é mais fácil tirar 10 pobres do que mexer com um rico”.
A crítica de Albertinho Agostini, presidente da Associação de Comerciantes da Antiga Rodoviária de Florianópolis (Ascarf), ao inquérito e a mídia é ainda mais contundente. Ele, inclusive, solicitou que sua entrevista fosse disponibilizada na íntegra, pois os veículos “editam o que a gente fala”. É ele quem representa as pessoas que em algum momento dos 63 anos do prédio compraram um box no local.



Confira abaixo a entrevista de Albertinho
Albertinho disse ter uma série de documentos de interesse público para apresentar, mas depois desta ligação viajou para Portugal e não conseguiu mostrar a documentação que mencionou. Também não respondeu se possuiu esses documentos digitais ou em fotos para enviar para a reportagem. Alguns documentos que ele cita estão no inquérito do MPSC, como um certificado de regularização em andamento emitido pelos Bombeiros e alguns contratos de imóveis que permanecem abertos. Não há nenhum registro do prédio ser tombado como patrimônio histórico.
Segundo Filavi, cuja família é proprietária de dois boxes no local há 40 anos:
“A gente nunca recebeu o Habite-se, a gente continua esperando começar o prazo. Qualquer ordem de serviço funciona dessa forma, então a gente briga por essa questão. Para que continue usando, desde que receba realmente os documentos oficiais ou que tire a gente de maneira lícita e pague a indenização do que a gente comprou. Quer dizer: eu tenho direito à posse, mas não posso usar? Tenho direito da posse não posso alugar? Tenho direito à posse, mas não vale o que tá escrito no Diário Oficial de 30 anos atrás?”
A reclamação de não poder alugar é porque desde 2015 há uma decisão liminar no processo de reintegração de posse que proíbe a venda e o aluguel das salas comerciais. Situação que na prática não é cumprida. A imobiliária Brognoli é inclusive citada como uma parte interessada no processo, mas outras imobiliárias como Andrea Cardoso e HabitaSul também intermediam locações no local. Mesmo a própria Prefeitura emitiu alvarás para a Galeria Lama, em box alugado no local em 2021. Cuja história você confere mais abaixo.
A partir do início do processo de reintegração, Filavi relata receber pedidos de desocupação “toda a hora”. “Chega a ser chato. Eles querem que a gente fique apreensivo, desestabilizado, é mais psicológico do que de fato vai acontecer, né? Agora, por exemplo, estão noticiando que segunda vai a polícia, vai tirar todo mundo. O que é um absurdo, porque se tem mandado de segurança para dois ou três, porque vão tirar os outros à força? Não faz sentido nenhum”.
Filavi diz que os outros pedidos de saída estavam condicionados a algum reparo ou mudança no prédio, que sempre eram cumpridos, mas desta vez não. Depois dessa entrevista realmente houve a desocupação da maior parte das lojas. De acordo com ele, “deve haver interesse político, algum apoio de alguma construtora, que queira [o terreno], porque a área é muito nobre. Então, é mais fácil tirar 10 pobres do que mexer com um rico”.
A crítica de Albertinho Agostini, presidente da Associação de Comerciantes da Antiga Rodoviária de Florianópolis (Ascarf), ao inquérito e a mídia é ainda mais contundente. Ele, inclusive, solicitou que sua entrevista fosse disponibilizada na íntegra, pois os veículos “editam o que a gente fala”. É ele quem representa as pessoas que em algum momento dos 63 anos do prédio compraram um box no local.
Confira abaixo a entrevista de Albertinho
Albertinho disse ter uma série de documentos de interesse público para apresentar, mas depois desta ligação viajou para Portugal e não conseguiu mostrar a documentação que mencionou. Também não respondeu se possuiu esses documentos digitais ou em fotos para enviar para a reportagem. Alguns documentos que ele cita estão no inquérito do MPSC, como um certificado de regularização em andamento emitido pelos Bombeiros e alguns contratos de imóveis que permanecem abertos. Não há nenhum registro do prédio ser tombado como patrimônio histórico.



DOIS DESFECHOS DIFERENTES

Em 10 de outubro de 2023 a lanchonete está abafada pela manhã quente e tem cheiro de laranja. No balcão, uma mulher atende os pedidos, servindo salgados, e um outro funcionário fica responsável pela preparação dos sucos. Na parede está fixado um documento de dispensa de alvará sanitário, atrás de um homem sentado no caixa.
O homem consegue dar uma breve entrevista, pois o movimento estava pouco. André é proprietário desta unidade da Cia. do Suco, rede de lanchonetes tradicional em Florianópolis, que está instalada há dois anos na Antiga Rodoviária. É um dos comércios que ainda permanece de portas abertas.
Naquele dia dez, André ainda não havia sido notificado para desocupar o prédio e vinha sabendo das informações sobre o inquérito e as ações da Prefeitura somente através dos jornais e da TV. O plano era, e ainda continua sendo, permanecer no prédio até quando puder. Por conta da boa localização, em avenida movimentada, e também para não ter que demitir os funcionários.
O box da lanchonete é alugado através de uma imobiliária e André nunca teve contato direto com o locatário. No dia 19 de outubro, eles entraram na justiça com um mandado de segurança que vem garantindo as portas abertas da lanchonete, a princípio até março de 2024, mas André diz esperar que possam ficar ainda mais tempo.






David passou por situação parecida, mas com desfecho diferente. Ele é proprietário da Galeria Lama, estabelecimento que mescla galeria de arte com café e bar, que funcionava em uma das salas com a face virada para a avenida Hercílio Luz. A galeria, que funcionou por dois anos, teve cinco dias para fechar, mesmo tendo contrato assinado com imobiliária, alvará de funcionamento expedido pela Prefeitura e aprovado pelo Corpo de Bombeiros. Além de estar em dia com pagamento mensal do IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana).
“Como poderia estar ilegal se a Prefeitura emitiu os alvarás? Entende? A Prefeitura emite os alvarás autorizando o funcionamento naquele endereço e depois manda sair porque está irregular.”
Além dessa contradição, David critica a falta de orientações e o próprio prazo curto para encerrar as atividades. Diz que o prazo, “no mínimo tinha que ser uns três meses” e ter alguém da Prefeitura orientando a situação de cada um.
Em 2021, quando David escolheu a Antiga Rodoviária para colocar o sonho da galeria em prática, não sabia de nenhum processo de reintegração de posse e do imbróglio jurídico que o prédio está envolvido. “Se soubesse não teria alugado”, diz. A escolha pela Antiga Rodoviária tinha sido feita justamente por ser um imóvel esteticamente bonito e com “cara de prédio antigo”. Que combinava com a proposta da Galeria Lama, de fazer exposições de arte mensais.
O bar está fechado desde 5 de outubro, e ele questiona de quem é a responsabilidade do prejuízo e que níveis de responsabilidade que a imobiliária e o locador têm. Já que além da perda de faturamento, ele relata a perda de “clientela e também de valor de marca, porque estamos fechados”.
O proprietário resolveu sair e não procurar mandado de segurança ou manter a ocupação no local por entender que essa “não é uma disputa da Galeria Lama”. Mas acredita que os comerciantes que estão na Antiga Rodoviária ocupam o local de boa-fé e que, pelo valor arquitetônico, o prédio deveria ser restaurado e não demolido.
Fotos/acervo pessoal David Vieira




O QUE SERÁ DA ANTIGA RODOVIÁRIA?

Questionados sobre o que imaginam que se vá construir no local da Antiga Rodoviária caso ela seja mesmo demolida, os lojistas não sabem dizer. Alisson diz: “Já falaram que querem fazer uma praça, já falaram que querem vender para um terceiro, mas eu não sei, nem a Prefeitura sabe o que ela quer.” Filavi acredita que será vendida para alguma construtora.
Outra fonte, que não quis conceder entrevista, estava abatida e a beira de lágrimas quando conversou com a reportagem pois é a segunda vez que passa por processo parecido. Ela alugava um ponto na Beira-Mar em um prédio público, que foi interditado e agora está abandonado. Pensa que o mesmo irá acontecer com a Antiga Rodoviária.
A prefeitura foi questionada, por meio da assessoria de imprensa, qual será a destinação do prédio após a resolução do processo de reintegração de posse e até o momento não houve resposta. No entanto, em setembro, um mês antes de determinar a desocupação, a Prefeitura cedeu um dos boxes para o uso da Associação Voz do Gueto.
Sobre isso, foi feito um pedido de Acesso à Informação que questiona se haverá novas permissões de uso do prédio e também se a sala já está sendo utilizada pela associação. No qual a Secretaria Municipal da Casa Civil respondeu que essa permissão foi revogada, justamente por conta dos processos sobre a ocupação do prédio, e que "até que as questões judiciais sejam resolvidas, não há previsão de destinação do espaço".
Então, a pergunta que persiste é: o que será feito da Antiga Rodoviária?
O que é claro, é que se for confirmada a propriedade do município do imóvel, não só os lojistas que ocuparam o espaço têm direito a opinar quanto à destinação do espaço. Toda a população da cidade tem direito a opinião e de usufruir do prédio, que deve servir a interesses públicos e não a interesses particulares ou da especulação imobiliária.
SOBRE
Esta reportagem foi realizada como trabalho final para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Online do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Desenvolvido por Cintia de Oliveira sob supervisão da profª Stefanie Carlan da Silveira, no segundo semestre de 2023.