Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

Por Ilana Cardial

Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

Lendo pelo celular, hein? Para uma melhor experiência, utilize o dispositivo na horizontal (modo paisagem). Boa leitura! 🤓

“HELL IS OTHER PEOPLE”, anuncia a camiseta de Diniz. Quem a vê de longe está avisado: “O inferno são os outros”, como há muito escreveu Sartre. A frase diz mais sobre ela do que parece à primeira vista. Abre um sorriso tímido ao me ver e as bochechas fazem subir a armação preta dos óculos. Em um mundo pré-pandêmico, nos conhecemos poucos dias antes do governo de Santa Catarina decretar situação de emergência no estado por conta do então “novo” coronavírus. O tempo e o contexto dão um aspecto de miragem àquela quarta-feira em 11 de março. 

Hoje, a imagem daquele dia beira o absurdo: conversamos sem máscaras, a poucos centímetros uma da outra, sentadas em um banco embaixo de alguma árvore na Praça do Bombeiro. Dia quente no Centro de Florianópolis. Fomos interrompidas duas ou três vezes por calouros que, sujos de tinta, pediam dinheiro durante o trote universitário. Essa foi a única vez que Diniz e eu nos encontramos presencialmente. As conversas seguintes, através de videochamadas, aconteceram simultaneamente em sua cozinha e no meu quarto. 

Lá em março, foi ela quem sugeriu o local da entrevista. A praça fica próxima ao Instituto Federal de Santa Catarina, o IFSC, onde Luísa Diniz conclui o curso técnico em Saneamento. No último ano do Ensino Médio, ela se prepara para o ingresso na faculdade.

Nada a ver com Saneamento, o plano é conseguir uma bolsa de estudos e cursar os dois anos de Gastronomia na Universidade Estácio de Sá enquanto trabalha em algum restaurante. Diniz não sabe em que quer se especializar, mas ainda tem tempo. Diverte-se fazendo bolos e criou uma receita de torta de maçã que é seu grande orgulho. Mas como o preparo de doces exige uma maior cautela, uma atenção especial com medidas e proporções, ela fica na área dos salgados.

— Eu não sei exatamente o que eu gostaria de fazer… Eu gosto muito de criar receitas, essa é mais a vibe. A comida salgada você vai colocando, colocando, fazendo a alquimia e uma hora dá certo! Eu não sei o que eu mais gosto. Eu gosto de cozinhar e é isso! — quanto mais fala de gastronomia, maior sua empolgação. 

Diniz é super envolvida com tudo que envolve culinária, dos livros à cozinha. Investe horas e horas estudando sobre o assunto. Encara a gastronomia como objeto de seu hiperfoco, um sintoma comum entre pessoas com Transtornos do Espectro Autista. Trata-se da fixação por determinados temas, com um interesse intenso que dura de algumas horas a vários anos. 

No final de 2019, aos 17 anos, Diniz foi diagnosticada com Síndrome de Asperger, uma das manifestações do espectro autista. Além do hiperfoco, ela tem certos sentidos mais aguçados: quando se tratam de cheiros e sabores, a sensibilidade a ajuda na cozinha, enquanto o incômodo com barulhos faz dela uma pessoa mais caseira. Ainda, há características bem específicas de outras pessoas que a incomodam, o que acaba dificultando certas relações:

— Às vezes o jeito que a pessoa pronuncia uma palavra me dá um ódio gigantesco. Não faz nem sentido, mas eu fico muito puta com aquilo! [...] Não sei… [pausa] Eu sabia que eu era um pouco diferente das pessoas, mas eu achava que era só um pouco. Agora percebi que, na real, eu era beeem diferente das outras pessoas e por isso era difícil.

No Asperger, acompanhado dos transtornos de depressão e ansiedade, Diniz encontra sua justificativa do porquê sempre foi diferente. Quando pequena, era reclusa, não se dava bem com outras crianças. Preferia ficar em casa e gastar seu tempo lendo e assistindo à televisão a brincar pelo condomínio.

Entrar na escola, inicialmente, não facilitou o processo. Diniz foi alvo de bullying por anos. “Bullying real! As pessoas me batiam, eram agressivas”, conta sobre a violência física e psicológica pela qual passou.

— Até pouco tempo atrás, eu achava que sofria muito preconceito só por eu ser gorda, e as pessoas serem chatas por causa disso, e por ter um cabelo meio caótico. Depois, eu percebi que sempre tive um comportamento muito diferente das outras crianças, ideias muito diferentes, que causavam também uma certa rejeição. Os outros achavam aquilo estranho e não conseguiam conversar comigo. 

Durante o Ensino Fundamental, Diniz estudou em três escolas diferentes, todas particulares. Com o passar dos anos, a agressividade dos colegas passou, mas a exclusão perdurava.

— Na real, acho que o pior do bullying não é nem os outros te zuarem. O pior do bullying é a exclusão. Porque sei lá, machuca, sabe? Então, eu era bem excluída... Mas até aí tudo bem — Diniz pausa e dá um gole no café. 

Conta que com o tempo e a terapia, percebeu que não agia como as outras crianças. Às vezes sequer agia como uma criança. Quando tinha cinco anos, comportava-se como quem tem 12 e destoava do restante do grupo. Até hoje Diniz lida com a divergência entre suas ideias e a de pessoas da mesma idade, e as dificuldades que surgem como consequência.

“Eu não sei o que exatamente é ser adulto. Meus pais têm estabilidade financeira, mas será que isso é ser adulto?”

A tal discrepância de pensamentos de Diniz vem também de sua criação. Seus pais, Carina e Adermival, decidiram logo cedo que não mentiriam para a filha. Ela nunca acreditou em Papai Noel e desde a primeira infância sabe de onde vêm os bebês. 

— Não sei qual era a proposta deles. Acho que queriam criar uma pessoa mais realista.

— E conseguiram?

— Acho que sim… É porque, porra, “vou ficar mentindo com seis anos, aí quando ela tiver oito, vou ter que explicar que era mentira?”. Meio foda. Melhor falar direto.

O casal é paulista e se mudou para a Ilha de Santa Catarina em 1999, três anos antes do nascimento da filha. Diniz tem contato esporádico com o restante da família, mas mantém boas lembranças das visitas ao sítio do avô materno em São Paulo. Nenhuma família é perfeita, ela pontua. “Uma tradição da minha família é que todas as mulheres têm depressão”, diz com seu sarcasmo característico. 

O avô era uma uma espécie de agiota fracassado: emprestava dinheiro, mas nunca tinha coragem de cobrar. Depois de uma série de doenças e complicações hospitalares, ele morreu em 2017. 

— Antes dele ficar muito doente, a gente se dava muito bem. Ele era campeão de xadrez, eu gosto de jogar, então a gente jogava juntos e era divertido. Eu gostava muito dele, mas meu avô era muito exigente! Eu precisava tirar dez em todas as matérias. 

No Fundamental, Diniz levava com certa tranquilidade a exigência, mas ao chegar no Ensino Médio, a dificuldade aumentou e as notas caíram. A pedido da mãe, mentia sobre o desempenho na escola e também sobre a carreira que pretendia seguir. Decidiu por Gastronomia, flertou com a Psicologia, mas para o avô dizia que a dúvida era entre Arquitetura ou Engenharia. 

Diniz não gosta de mentir. Tem uma dificuldade tremenda para fingir as coisas. 

— A maioria das pessoas mente muito, é uma característica da nossa sociedade. [...] E eu sempre tive dentro de mim que todo adulto é hipócrita e mente pra caralho, porque você precisa fazer isso em situações sociais, de trabalho. Então acho que isso me deixa com certo medo. 

A mãe, Carina, devia ter suas razões para mentir para o pai, mas a relação com sua filha acabou tendo certos conflitos que vão além da infância. Hoje em dia, para Diniz, o maior embate é ideológico. Ainda assim, Carina faz sempre muita questão em estar perto de sua filha. Encontram-se ao menos uma vez por semana. A frequência mudou só com a pandemia, quando ficaram várias semanas sem se ver por conta do isolamento social.

Diniz e sua mãe, Carina. | Fotos: Arquivo pessoal

Diniz e sua mãe, Carina. | Fotos: Arquivo pessoal

O casal de pais se divorciou quando Diniz tinha oito anos. Com casas próximas, a menina revezava entre uma e outra: segundas e quartas-feiras com o pai, terças e quintas com a mãe, um final de semana em cada. 

Há quatro anos, passou a morar na casa de Adermival. Da infância, Diniz relembra as vezes que leram Sítio do Pica Pau Amarelo juntos e as refeições que dividiam, preparadas pelo pai que sempre cozinhou bastante bem. A admiração por Adermival era tanta quando mais nova que ela precisou de anos para enxergar que nem mesmo ele é perfeito. Deu-se conta que o pai passava a maior parte do tempo fora de casa, entre o trabalho no banco e a faculdade. Foi só quando Adermival se aproximou da espiritualidade, da Psicologia e do feminismo que reconquistou a filha. 

— Ele parou com esse negócio de tentar fugir de casa e começou a trabalhar seis horas por dia ao invés de oito, então a gente começou a ter mais convivência — o que resulta em horas de conversa sobre política, religião e filosofia, grandes interesses de Diniz. Aproveita de sua “Wikipédia humana”, como refere-se ao pai que sabe um pouco de tudo. 

Agora, pai e filha trabalham duas questões para melhorar sua relação: a desconstrução do machismo enraizado em Adermival e o número de vezes que ele bagunça a geladeira de Diniz.

Com o lado paterno da família, ela não tem lá muito contato. Diz que a avó é muito querida: “É uma velhinha que fica o dia inteiro assistindo Datena, adora reclamar, mas tenho muito carinho por ela”.

Diniz e o pai, Adermival. | Fotos: Arquivo pessoal

Diniz e o pai, Adermival. | Fotos: Arquivo pessoal

Divididos entre São Paulo e Florianópolis, os encontros são raros, mas quando acontecem...

Uma parente era apegada ao fumo de corda, outro fumava cigarro, até que um terceiro descobriu o chá e apresentou ao quarto. Pronto. Agora nas poucas vezes que se encontram, a família toda toma chá junto: a avó, o pai, os tios e Diniz. Nada de chá Leão, Dr. Oetker ou essas misturas prensadas de baixíssima qualidade em que se combina a erva com sabe-se lá o quê. A família consome sempre “in natura”, muito mais saudável. Um cheiro característico como o de hibisco, efeito calmante como a camomila, mas uma flor diferente. 

Um conhecido da família, “careta” de tudo, custou a se render ao chá porque sabia que quando o fizesse ia gostar “pra caralho”. Dito e feito: agora é ele quem a produção caseira e oferece as flores de qualidade aos mais chegados. “Minha família é um pouco peculiar”, conclui Diniz. 

Com o tempo, começaram a frequentar diferentes espaços religiosos — templo budista, centro espírita, terreiro de Umbanda, templo Hare Krishna — e acabaram conhecendo também o chá de ayahuasca, o psicodélico apelidado de Santo Daime. Foi através de seu uso que Diniz teve experiências de regressão à primeira infância durante um retiro espiritual. 

— A regressão é um processo terapêutico com o qual você consegue fazer a pessoa reviver alguma coisa na mente dela. Tem gente que, com rituais espirituais e religiosos, faz regressões até a vidas passadas — A cerimônia pode ser usada para recordar situações traumáticas nos primeiros anos de vida e ressignificá-las. Foi o caso de Diniz — Eu revivi, sofri, chorei muito, mas lembrei. Foi triste, mas foi interessante. 

Diniz não se considera uma pessoa religiosa, porque afinal não tem religião nenhuma. Mas gosta de estudar sobre o assunto, bebe um pouco de cada fonte e escolhe as partes que lhe são pertinentes. 

— Se você for ver, muitas religiões falam coisas iguais de formas diferentes. Pessoalmente, acredito que existem vários deuses. Existe para cada pessoa o deus no qual ela acredita. [...] De certa forma, a gente é cocriador da realidade, então acredito que seja pertinente existir [um deus] pra gente.

“É sempre ruim ser diferente, né? A sociedade não tá pronta pra isso. A sociedade é exclusiva, e acontece. Não tem muito o que a gente fazer… Mas é foda.”

Desde pequena, a diferença permeia a vida de Diniz. Antes mesmo de descobrir a Síndrome de Asperger, acreditava que a hostilidade dos colegas tinha como justificativa seu corpo e cabelo, como ela já nos contou. Quando pergunto sobre autoestima, a primeira coisa que assinala é que “autoestima é algo muito amplo”.

A insegurança com sua capacidade e intelecto é o que mais a balança. Durante nossas conversas, além de vestir o filósofo Jean-Paul Sartre, mencionou o mundo das ideias de Platão, discorreu sobre culinária, mundo gamer, música, feminismo, gordofobia e legalização de drogas — essa última não só no Brasil, mas também em comparação a Portugal. Cheguei até a comentar minha admiração por seu conhecimento sobre assuntos tão diversos, ao que Diniz simplificou: 

— Sei muitas coisas porque tenho 18 anos! — rindo. Teve tempo suficiente para ler sobre muita coisa e não esqueceu grande parte delas. Ainda assim, com certa frequência, pega-se questionando a própria inteligência.

Quanto se trata da parte estética, Diniz tem uma relação dúbia com o próprio corpo, “tem dias que são melhores que outros”. Desde bem nova sofre pressão para emagrecer. Aos 16 anos, fez de tudo: muay thai três vezes por semana, caminhadas diárias por quilômetros, em troca de míseros 400 gramas de comida por dia. Comia 50 g pela manhã, 150 g no almoço, 50g à tarde e 150 g no jantar — só proteínas e verduras, sem carboidratos. Tinha acompanhamento com um endocrinologista e tomava um remédio que auxiliaria no processo de emagrecimento.

— Fiz isso por seis meses. Super rigoroso... Emagreci dez quilos. Em seis meses, eu perdi menos de 10% do meu peso em uma dieta absurda. Então eu entendi que meu corpo não foi feito pra isso. Já minha mãe entendeu que então era possível emagrecer e que eu devia continuar tentando [risos]. 

Carina é dançarina e, segundo a filha, sempre foi bastante magra e atlética. Também já teve uma relação complicada com a comida e seu corpo, e acabou projetando sobre Diniz parte de suas expectativas. Ao menos, é o que sente a filha.

— Sempre teve uma cobrança pra que eu fosse do jeito que ela queria ser. [...] Pra mim, ser gorda é que nem ser mulher ou ser autista. Ok, eu SOU, e vou lutar pelos meus direitos, mas não foi uma escolha. [...] Eu sempre fui assim e não tenho como lutar contra. Não lutar contra é uma escolha, mas ser assim não foi uma escolha.  

Diniz agora se preocupa com alimentação e condicionamento físico pela saúde e bem-estar, não mais para emagrecer a qualquer custo. O processo era esgotante de tal modo que ela não consegue nem lembrar direito daquela época. A alimentação altamente restrita combinada com o excesso de exercícios físicos a deixavam exausta. “Meu cérebro tava vazio. Eu não tinha tempo pra ficar ansiosa, porque eu só não tinha energia pra nada.”

A gordofobia é o preconceito contra pessoas gordas. Em um mundo com padrões estéticos cada vez mais absurdos, especialmente para mulheres, as pautas ligadas à saúde mental, para além da física, têm ganhado força. Aqui, não se trata de defender a obesidade, como acreditam alguns, mas de assegurar que ninguém será hostilizado pelo tamanho do quadril.

— Eu fico meio pasma quando falam que “pessoas magras também sofrem preconceito” e não entendem o que é a gordofobia. Se fosse só ser zuado, seria ruim, mas ok. Mas é uma questão de acessibilidade. Eu não passo em vários lugares. É difícil achar roupa, muuuito difícil achar roupa — conta Diniz, que ainda é pequena e tem a circunferência do quadril proporcional à da cintura, o que segue o parâmetro de “corpo ideal” que ditam por aí. Ou seja, sabe que ainda tem mais facilidade do que pessoas maiores.

Como resposta à discriminação, o movimento gordoativista vem se organizando nos últimos anos. Para além da questão estética, busca conscientizar e reconhecer os julgamentos por trás dos comentários indesejados e piadinhas sem graça. Em níveis estruturais, luta em diferentes frentes: por assentos que acomodem diferentes corpos, mas também pelo fim da associação direta entre ser gordo e estar doente.

— As pessoas acham estranho quando eu falo meu peso. Dizem que pareço pesar menos. Acho que sou muito densa… Talvez seja um tanto de músculo com uma grande concentração de ódio dentro de mim.

Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

Diniz não se considera ativista da causa (“Lutar, lutar, eu não luto por nada”), mas conversa com os amigos mais próximos e chama a atenção quando dizem algo negativo. Parece estar mais disposta a conscientizar seu círculo social do que militar pela internet. 

Sobre a dieta maluca, ela diz que não faria de novo, mas também não se arrepende. Há várias coisas que Diniz não repetiria na vida e leva consigo a culpa por erros passados que cometeu, mas não se arrepende de nada. Tudo tem um lado positivo.

— Arrependimento é uma coisa difícil de se pensar. Tudo que eu fiz e faço me faz ser quem eu sou hoje. E, por mais que eu me odeie um pouco, eu não queria ser outra pessoa. É complexo.

Quando Diniz entrou no Ensino Médio, muita coisa mudou. Fora do universo das escolas particulares de Florianópolis, descobriu que há quem não ligue tanto para certas coisas. Encontrou quem a visse como uma pessoa, e só. Sem qualquer adjetivo servindo de acompanhante. Começou a ver perto de si, e também nas redes sociais, pessoas mais parecidas com ela. 

Sempre passeou por diferentes grupos na escola, mas agora sim tem seu grupo fixo de amigos. A maioria homens. 

— Meu psicólogo falou que eu tenho tendência a me relacionar com pessoas com características um pouco autistas. E aí existe o arquétipo do autista ser um homem, aquele cara recluso, estranho…

Diniz com seus amigos e amigas. | Fotos: Arquivo pessoal

Diniz com seus amigos e amigas. | Fotos: Arquivo pessoal

Quanto às gurias, sua amiga mais próxima mora na outra ponta do país, no Ceará. Com outras, Diniz até se dá bem, mas não compartilha interesses em comum. Quando tratam de assuntos pessoais, o que as aproxima são histórias de machismo, assédio e abuso que sofreram ao longo dos anos. 

— É bizarro! Você sofre um negócio e aí não quer falar pra ninguém. Você se sente super culpada, um negócio horroroso. E aí quando você cria coragem pra falar, percebe que todas as suas amigas já passaram por isso e fica tipo: “Caralho, é muito pior do que eu imaginava” — Diniz leva as mãos à cabeça, inconformada, e a pressiona com as pontas dos dedos — Ser mulher é muito difícil.

A primeira situação ameaçadora que ela menciona é ainda do jardim de infância, quando um coleguinha mais velho a trancou no banheiro e tentou tirar sua roupa. Justificaram que ele tinha problemas de desenvolvimento, mas Diniz garante que ele sabia muito bem o que estava fazendo. Ela tinha três anos. 

Ali pelos 12, assim como os colegas, Diniz começou a ter certas curiosidades e a querer estar em um relacionamento. Como na escola era excluída, acabou indo buscar pessoas fora daqueles muros. É aí que começa uma sequência de relações com homens mais velhos que a escondiam, a manipulavam, dentre outras coisas.

Até os 14 anos, namorou um menino de 16. Depois, baixou o Tinder, aplicativo de relacionamentos, e começou a se relacionar com um homem de 22. Não poderem ser vistos em público de jeito nenhum abalava Diniz. Precisou de anos até se dar conta de que o problema não estava nela — “Talvez um pouco a questão cadeia aí, né? [risos]”. E aí veio um namorado que acabou virando amigo, e um outro evangélico que mantinha a relação em segredo por conta da rigidez da família. 

Se pudesse, Diniz advertiria as outras gurias de sua idade: 

— Se um cara fizer algo com você que você não concorda, que você não gosta, qualquer coisa no âmbito de assédio e manipulação, não se sinta culpada. Provavelmente esse cara que é um babaca mesmo. É ele que tá errado.

Por muito tempo carregou consigo uma culpa que não lhe cabia. Em uma sociedade habituada a duvidar de mulheres e culpabilizar a vítima, como tantas outras, Diniz se questionou repetidas vezes: “Será que não dei abertura? Será que não é culpa minha mesmo? Será que não tô exagerando? Será que…”.

— Esse é um conselho até pra mim mesma: a culpa não é sua. Não se sinta culpada. O cara quem tá errado — ou “a guria” pondera ela em seguida, lembrando que relacionamentos abusivos não são exclusividade de casais heteroafetivos.

Aliás, ainda no tópico de tipos de relações, Diniz avalia que entende o poliamor e relacionamentos abertos, mas para ela não funciona. Sua relação com relações é complexa e confusa, segundo ela, e depois de tantos anos sem ter com quem conversar sobre coisas que ela realmente gosta, a ideia do relacionamento é ter esse alguém muito próximo. “Todo mundo precisa disso!”.

— Acho que talvez eu aceitasse um trisal, porque aí é o dobro de carinho. Eu odeio a ideia de que, no tempo que essa pessoa tá dando amor e carinho pra outra pessoa, ela podia tá dando amor e carinho pra mim. Eu quero o máximo de amor e carinho possível!

E é aí que entra o Gabriel.

Diniz e Gabriel namoram desde 2018 e planejam morar juntos em breve. | Fotos: Arquivo pessoal

Diniz e Gabriel namoram desde 2018 e planejam morar juntos em breve. | Fotos: Arquivo pessoal

“A primeira vez que eu vi ele, eu pensei ‘Nossa, eu vou me dar muito bem com esse cara. Ele tem uma energia legal’. Deu certo, sabe?”

Verão de 2018. Jéssica, a amiga cearense, veio visitar Diniz e seus amigos em Santa Catarina. Diniz passou aquela semana dedicada a se divertir, dormiu quase todos os dias na casa do amigo Gustavo. O grupo, que costuma ser bem parado, levou uma injeção de disposição. Foram às praias, viraram madrugadas jogando Cidade Dorme e apresentaram a iguaria das ostras gratinadas à Jéssica (foi também nesses dias que Diniz abandonou de vez aquela dieta).

Jéssica, Gustavo e Gabriel são as pessoas com quem Diniz mais se sente confortável. Aqueles amigos a quem ela pode dizer qualquer coisa e a forma de tratamento não muda. 

A cereja do bolo na semana perfeita foi o início de sua história de amor. Com amigos em comum e no meio do intensivo da cultura manezinha de Florianópolis, ela e Gabriel se conheceram e se deram bem logo de cara. Passavam o dia na piscina e conversavam sobre música. Diniz gosta de artistas brasileiros, como Luiz Lins e Anna Triz — “Eles chamam de Sad Song, mas isso não diz muita coisa. Não tem características únicas. Eu ouço música de pré-adolescente triste que quer se matar”. Com Gabriel, falou principalmente sobre o rapper Konai e trocaram figurinhas sobre as referências à Filosofia, livros de terror ou até à Divina Comédia que aparecem em suas letras. 

— No último dia, eu falei “Cara, eu gostei muito de ti e acho que a gente poderia ter alguma coisa” — Diniz olha por sobre a tela do celular e sorri: “Que que cê tá rindo aí?”. Olha de volta pra mim — Ele tá aqui, inclusive! Então, ele tinha medo de ter um relacionamento, mas a gente tentou, deu certo e aí a gente tá junto — Diniz mira Gabriel com o olhar e o sorriso mais fofos que vi até agora. Abaixa a cabeça, mexe com o fone de ouvido e volta o olhar para o namorado. Levanta as sobrancelhas, abre mais o sorriso e balança a cabeça como quem diz “né?”.

Começaram a namorar em 16 de maio de 2018. Com as histórias anteriores, é a primeira vez que Diniz se encontra tão emocionalmente envolvida em um relacionamento saudável. Vez ou outra precisa de uma pequena pausa para afastar os fantasmas das falecidas relações.

Além de uma tatuagem do Pingu pinguim com chapéu de cozinheiro, uma faca e um fouet nas mãos, Diniz planeja a que fará com Gabriel. Todos seus amigos são contra, mas ela garante que é uma tatuagem de casal que faz sentido mesmo sozinha, então tudo bem. Entre círculos e triângulos, ela fará um coração anatômico e ele, um cérebro, “porque eu sou bem emotiva e ele, bem racional”, diz.

O interesse por jogos online e pelas músicas 'sad song' são parte do que Diniz e Gabriel compartilham. | Fotos: Arquivo pessoal

O interesse por jogos online e pelas músicas 'sad song' são parte do que Diniz e Gabriel compartilham. | Fotos: Arquivo pessoal

A tatuagem será também um marco. Vão fazê-la quando morarem juntos. O plano era terem se mudado em outubro, mas tudo atrasou com a pandemia. Diniz já tem um apartamento, ganhou da mãe, localizado no bairro Agronômica, o mesmo em que vive hoje. É a casa de sua pré-adolescência, onde morou entre os oito e 15 anos com Carina, logo após o divórcio. Por um acaso tremendo, descobriu que a mãe de Gabriel viveu naquele mesmo apartamento, trabalhando como babá, assim que chegou em Florianópolis, anos antes. “Com essa coincidência curiosa, eu acho que é pra ser!”, anima-se. 

Ela tem tudo planejado, do sofá de veludo azul aos espelhos da tomada. Estabeleceu uma relação de amor e ódio com o Pinterest enquanto planeja cada detalhe do quarto, banheiro, cozinha, lavanderia, sala e escritório. Decidiu transformar o segundo quarto em escritório prevendo que ela e Gabriel vão trabalhar bastante com computador, além de serem grandes gamers

Para se mudar, Diniz quer que todos os móveis estejam a postos e que tenha economizado um bom dinheiro. Vendeu o carro que ganhou do pai, então tem parte do que precisa. Quer garantir que a nova casa seja um lugar confortável, que a faça feliz e evite que sucumba à pressão e desista de tudo.  

O passo número um desta empreitada é conseguir um emprego. Agora maior de idade, Diniz quer trabalhar em um restaurante de comida japonesa. Prefere a cozinha do sushi por ter temperaturas mais amenas do que as quentíssimas tradicionais. Além disso, sushi é sua comida favorita. Carina conta que a filha experimentou pela primeira vez aos oito meses. Quando os pais deram bobeira e ninguém estava olhando, Diniz roubou uma peça do prato. Desde então, só amores.

A cozinha japonesa é a que mais atrai Diniz, apaixonada por gastronomia. | Foto: Chef Paladino/Arquivo pessoal

A cozinha japonesa é a que mais atrai Diniz, apaixonada por gastronomia. | Foto: Chef Paladino/Arquivo pessoal

Se ela e Gabriel tiverem um salário de R$ 1.500 cada, a renda é suficiente, afirma. Diniz estuda em um bom colégio e tem facilidade na cozinha. Gabriel se formou em uma escola particular, faz faculdade e é bom em informática. Os dois têm inglês intermediário e um currículo “relativamente bom”, o que faz com que o valor não seja absurdo, afirma ela. 

— Dá pra ganhar R$ 1.500, que não é um salário foda, pouco acima do salário mínimo. É um plano tangível, mas né, a economia tá numa recessão fodida agora, por causa do coronavírus.

No ano que vem, quando deve fazer o imposto de renda pela primeira vez, Diniz vai estar mais próxima de se considerar adulta. “Acho que vou me sentir meio morrendo por dentro”, brinca ela, que não sabe definir o que torna alguém um adulto.

— É muito difícil, porque se a gente falar de maturidade e responsabilidade é tão diferente por classe social. Quando você faz 20 anos, a galera classe média começa a pensar em casar, ter filhos, trabalhar pra se sustentar. A galera pobre trabalha pra se sustentar desde os 11 ou 12 anos. Muitas gurias casam com 14 ou 15, tem filhos com 16... É complicado. 

A relação que Diniz tem com seus pais também tem um peso nessa conta. 

— A gente é muito amigo. Eles também não parecem ser pessoas super adultas, maduras, responsáveis, resolvidas, com maturidade emocional absurda… Eu vejo que eles têm estabilidade financeira, mas será que isso é ser adulto? Porque tem gente que não tem estabilidade financeira nunca. 

Ela completou 18 anos no dia 8 de abril de 2020 (sim, ariana!). No meio de uma pandemia, um mês depois, Diniz ainda não tinha nem saído na rua. Não visualiza qualquer mudança com a nova idade, além de perder a desculpa de que não pode ir às festas por ser menor de idade.


Diniz vê a si própria e a sua geração como um experimento: “É a galera que já nasceu na internet, então tem que ver onde vai dar”. Palpita que vão vir grandes mudanças, mas não sabe quais. Que a sociedade vai ficar diferente, mas não sabe como. Por enquanto, aproveita-se da tecnologia rolando o Twitter quando está entediada ou pesquisando quantos litros de leite uma vaca produz por dia.

É da personalidade de Diniz focar nos objetivos em curto prazo, porque sente que sua felicidade depende muito daquilo. Assim como agora sua felicidade depende muito de ir para o novo antigo apartamento. Depois, o plano é viver ali com Gabriel para sempre. Talvez, daqui a uns 20 anos, comprar uma casa maior para os dois.

— Eu não sou muito ambiciosa de modo geral. Ontem minha mãe me perguntou o que eu faria com um milhão de reais: eu ia guardar em algum tipo de investimento baixo e seguro, tipo a poupança, que dá 0,5% ao mês. Ia tirar R$ 5 mil por mês e conseguir viver tranquila, pagando minhas contas.

Depois de se formar em Gastronomia, Diniz quer cursar um mestrado na área de História. Já sonhou em viver na cozinha, mas percebeu que vai ser feliz em longo prazo na vida acadêmica. Quer se especializar e dar aulas sobre a história da alimentação dos povos. Se tivesse um milhão de reais, depois de mestra e com um bom emprego, gastaria todo o dinheiro em viagens. Iria para a Islândia, faria um curso de confeitaria na França, conheceria o Japão e, depois, voltaria a viver normalmente. Mesmo sem atingir o status de milionária, tem todas essas vontades. Por enquanto, nenhuma delas passa pelos planejamentos minuciosos de Diniz. “Quando der, a gente faz.”