Filhos do Luto

Histórias de quem perdeu um dos pais na primeira infância

Filhos do Luto

Histórias de quem perdeu um dos pais na primeira infância

Por Ana Luiza Pedroso, Evelyse Porto, Julia Breda e Marcela Catelan

Toda vez que conto a minha história, preciso aliviar o clima e o silêncio desconfortável que se instala no ambiente. Não é incomum eu precisar dizer frases como:

— Tudo bem, eu nem conheci ele, não sinto falta.
— Minha infância foi ótima, um pai a mais não faria diferença. 
— Com uma mãe como a minha, a presença de um pai é bem dispensável.
— Eu lido bem, difícil mesmo foi para as minhas irmãs. 

Dependendo da situação, preciso adaptá-las.

A verdade é que a falta é sentida todos os dias, desde muito antes de entender o que esse sentimento significa.

Hoje é dia 27 de junho de 2022. Há exatos 25 anos, algum médico decretava o óbito de Ademar Pedroso da Silva. Ele faleceu aos 45 anos, vítima do rompimento de um aneurisma cerebral. Deixou duas filhas – uma de sete e outra de 11 anos – e uma esposa grávida de um mês e 18 dias.

Eu, Ana Luiza Pedroso da Silva, era o bebê na barriga. 

Toda vez que reconto a minha história, mais ensaiado o discurso fica, e as frases para aliviar o clima saem melhores. A verdade é que nunca vou saber o jeito que meu pai falava, andava, como era seu cheiro e se ele tinha alguma mania esquisita que talvez só eu percebesse. Ele perdeu os meus primeiros passos, não me ensinou a me defender, não me levou ao estádio para ver uma partida de futebol e não vai a nenhuma formatura minha, assim como não foi às das minhas irmãs.

Em dias que estou bem e feliz, penso que ele talvez se orgulhasse de mim. Há outras vezes que tenho a certeza de que não nos daríamos bem. Parece um jeito de me machucar ainda mais. É uma vida cercada de pensamentos como “e se ele estivesse aqui?”.

Todos os dias, uma criança perde um pai ou uma mãe. Alguns deles, como eu, não terão lembranças com os pais – é o caso dos filhos das mais de três mil gestantes que contraíram Covid-19 e faleceram sem sequer conhecer quem mais amaram.

Muitos, por outro lado, guardarão consigo alguns flashes de memórias preciosas, momentos que puderam compartilhar mesmo quando muito pequenos. É o caso de Julia Breda, que tem uma história semelhante à minha, e irá contá-la a partir de agora.

Eu passei a minha vida toda montando um quebra-cabeça. Quem realmente foi Jorge Alexandre de Souza Nobre – meu pai?

Eu sei que era ele quem tinha o vinil da Xuxa que eu escutava. Que fazia questão de cozinhar meu prato preferido de café da manhã, banana caramelizada, mesmo quando não tinha mais dinheiro para comprar um botijão de gás novo. Fazia na torradeira uma banana quente com açúcar que não derretia, mas que tinha gosto de amor. Que andava 40 minutos, ida e volta, para buscar meu jantar favorito, pizza de chocolate branco.

Também sei que, no auge da sua doença, não tinha mais certeza se eu era mesmo a sua filha. Meu pai faleceu há 13 anos, no primeiro dia de 2009, três anos depois de ser diagnosticado com Esquizofrenia e enviado a um lar de repouso para idosos. Eu tinha 8 anos quando ele morreu, mas a verdade é que o perdi muito antes disso. Perdi-o aos poucos, quando já não me reconhecia com tanta facilidade. Quando eu já não o visitava com muita frequência. Enquanto ele ia se perdendo na sua própria realidade.

Tem muito que ainda não descobri sobre quem foi meu pai. Minha família nunca foi muito próxima e eu sempre tive vergonha de perguntar – principalmente para a minha mãe, minha maior fonte em potencial. Tinha medo dela achar que eu sentia falta dele, como se eu não a considerasse o suficiente pelos dois.

Então, esperava ávida por cada momento em que o assunto surgia e, cuidadosamente, montava a próxima pergunta para descobrir um pouquinho mais, arrancar um detalhe ou uma informação preciosa que guardaria comigo. Sempre foi mais que curiosidade, era quase uma necessidade, saber mais sobre meu pai.

Cada nova informação vai colocando uma peça e montando uma imagem de quem ele foi. Mas é frustrante saber que eu nunca vou estar satisfeita. Qual era sua música favorita? Que tipo de filme ele gostava de ver? Ele preferia chocolate preto ou branco, como eu?

Algumas semanas atrás, recebi um vídeo de família – uma raridade para os nascidos antes de 2005 – que respondeu uma das dúvidas mais importantes: como era a sua voz? Conheci, também, uma outra camada: o Jorge que bebia Skol e falava enrolado bêbado em churrascos. Apesar de odiar cerveja, poucas vezes me senti tão próxima dele quanto ao assistir a esse vídeo.

Mas sigo aqui, com muitas perguntas, muitos “e se”, muita saudade desse Jorge que ainda conheço muito pouco.

A psicóloga Ivânia Jann Luna, especialista em luto e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que o processo de luto de uma criança que perde um dos pais é diferente do de um adulto. Apesar de não ser possível prever quais serão as dificuldades encontradas ao longo da vida, os especialistas afirmam que os filhos do luto devem conviver com esse sentimento a vida toda, não apenas os dois primeiros anos.

Agora que você já compreendeu a minha história e a da Ana Luiza, convidamos você a conhecer quatro outras crianças que, assim como nós, cresceram convivendo com o luto. Mariana Pessoa, Gabriel Luiz, Rubiana Ventura da Cruz e Domingos Gouveia compartilham conosco as mesmas trajetórias rodeadas de “e se”.

Os pais não viram estrelinhas

Apesar de ser o caminho natural da vida, a morte não é encarada com facilidade pela maioria das pessoas. Especialmente quando acontece de forma repentina e deixa desamparadas quem mais precisa.

Como explicar para uma criança que seu pai ou mãe não vai voltar? É melhor deixá-la de fora do velório e ritos de despedida? Como e onde contar?

Esses são os principais questionamentos de quem fica. Priscila Nobre David, psicóloga e psicanalista, chama a atenção para um processo que perpassa bem mais que o luto: subestimar a capacidade das crianças. Ela diz que ser sincero, direto e honesto, evitando analogias e histórias fantasiosas, pode ser o melhor jeito de lidar com a situação.

Eu, Ana Luiza, sempre soube que meu pai não voltaria. Não me recordo de como foi essa conversa, muito menos quando, mas sei que foi da forma que Priscila orienta: sincera, sem analogias. Eu sabia que ele morreu porque uma veia se rompeu no cérebro dele.

Quando estava na segunda série do Ensino Fundamental, aos oito anos, lembro-me de uma atividade em aula que envolvia a produção de um cartão para o Dia dos Pais. Tagarela, levantei minha mão e, sem vergonha alguma, perguntei para a professora se poderia escrever para a minha mãe, explicando que meu pai já tinha falecido. A resposta, cheia de condescendência, foi algo parecido com:

— Claro, Ana, mas se quiser, pode escrever para o seu pai, também. Ele agora é uma estrelinha lá do céu e está cuidando de você.

Imediatamente, senti pena da professora. “Coitada, ela não sabe. Será que eu conto para ela que meu pai está no cemitério e não no céu?”, foi meu primeiro pensamento. Sorri e escrevi o cartão para a minha mãe.

A professora e psicóloga Ivânia Jann Luna contou-nos que o grande problema é que a sociedade não abre espaço para o enlutado. O estigma da morte paira sobre as pessoas como se fosse culpa delas. Acontece quando precisamos falar para as pessoas que um dos nossos pais já faleceu: é como sair do armário, sempre procurando o momento certo, com cuidado para não deixar as pessoas desconfortáveis e evitar os olhares, que são uma mistura de pena e uma pontinha de julgamento.

“Ainda vivemos com esse ideal familiar: heterosexual, branca, com mais de um filho, inteiras, bem sucedidas e também sem nenhuma deficiência ou uma questão de transtorno mental, por exemplo. Esse é o modelo que as pessoas têm na cabeça e a gente não tem espaço pra falar quando a nossa família não se encaixa.”, explica Ivânia.

As especialistas dizem que a dor, o luto, a perda, não é apenas da família, mas sim da comunidade. Os ritos de despedida, que vão do hospital até o enterro e visitas ao cemitério, podem ser um jeito de compartilhar o sentimento de forma conjunta. As crianças podem ser incluídas em todos esses momentos, desde que seja o desejo delas.

Perguntar se gostariam de ir, explicando o que ela irá encontrar, mas sem assustar, pode ajudar no processo de compreensão. A sociedade, por sua vez, também pode participar do processo sem julgar, reduzir a dor, ou tratar de forma diferente os enlutados: é imprescindível abrir espaço, ouvir o que ele tem a dizer e respeitar seu processo de luto.

Sobre as autoras

Ana Luiza Pedroso

Para quem não sabe, a Ana Luiza é natural de Chapecó. Atualmente, está nas fases finais do curso de Jornalismo da UFSC e atua como Assessora de Imprensa.

Evelyse Porto

Evelyse gosta muito de comunicação da ciência, uma boa narrativa e de música. Está no penúltimo semestre de Jornalismo e atua com Marketing de Conteúdo.

Julia Breda

Julia é apaixonada por livros e tudo que envolve escrita. Em breve, será Bacharel em Jornalismo, mas atua mesmo com marketing para redes sociais e Customer Marketing.

Marcela Catelan

Marcela é muito falante e gosta de estar sempre em movimento, observando tudo o que acontece e o que as pessoas estão falando em volta. Está no penúltimo semestre do curso de Jornalismo e trabalha com Customer Marketing.