GENÉTICA FORENSE
Gato por lebre – ou olhete por salmão
Um projeto da UFSC em parceria com a Prefeitura de Florianópolis identificou, em 2014, que 44% dos pescados descritos em cardápios de restaurantes orientais e em peixarias não correspondiam à realidade. Eram diversas fraudes: linguado sendo vendido como atum; olhete no lugar de salmão; panga em vez de anchova... A informação foi apresentada pela professora Andrea Marrero, bióloga e professora da Universidade que trabalha com genética de populações (humanas e de outros animais), durante uma apresentação no TEDxFloripa, em 2020 (ver vídeo abaixo).
Segundo a docente, esse foi o primeiro registro mundial de fiscalização de rotina comercial juntando genética forense a um órgão fiscalizatório. E a boa notícia foi que, na segunda rodada de análise, o percentual de fraude caiu para 2%, corroborando a hipótese de que uma fiscalização associada a diferentes áreas do conhecimento é muito mais eficiente. Na sua apresentação, Andrea rechaçou a concepção limitada da genética em um trabalho de investigação:
"Muitos têm essa ideia de uma cena de crime respingada de sangue para todos os lados, um cordão de isolamento e aquela maleta cheia de bugigangas tecnológicas. Genética forense é muito mais". De acordo com a docente, a genética forense é uma ferramenta crucial para identificar crimes ambientais e auxiliar na preservação de espécies, sendo o uso de DNA uma eficiente estratégia no combate ao tráfico de animais silvestres, por exemplo. "É a terceira maior atividade ilícita do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e armas", compara.
Andrea afirma que existe a estimativa de que 38 milhões de animais sejam perdidos por ano para o tráfico de exemplares silvestres. A cada 10 animais traficados, apenas um chega ao seu destino; os outros nove morrem no trajeto.
Para exemplificar a importância do trabalho conjunto entre a fiscalização e a pesquisa, a professora cita recentes casos de tráfico de ovos de uma espécie de papagaio, apreendidos pela Polícia Federal em Manaus e identificados geneticamente, que seriam vendidos por U$ 300 a U$ 500 cada fora do país. Ou ainda a apreensão, por agentes do Ibama de Santa Catarina, da toxina conhecida como vacina do sapo, extraída da perereca kambô (Phyllomedusa bicolor). O veneno do anfíbio é usado como remédio por povos da Amazônia, mas a substância também tem efeitos alucinógenos.
O "efeito CSI"
O grande público, entretanto, ainda tem a ideia de que a genética é uma aliada da justiça somente nos casos de crime contra a vida humana. Influenciado pelos folhetins policiais, o espectador comum acredita que uma gota de sangue ou um fio de cabelo na cena de um crime garantem a solução de um caso pelo DNA: é o chamado "Efeito CSI". O nome deriva da série de televisão norte-americana CSI: Crime Scene Investigation, muito popular no início dos anos 2000, sobre um grupo de peritos resolvendo crimes a partir de técnicas e utilizando ferramentas das ciências forenses. Há estudos que indicam a expectativa de que, durante julgamentos reais, todos os casos criminais apresentem evidências forenses que potencialmente solucionariam o crime e facilitariam a decisão do júri.
Porém, em oposição ao senso comum, é frequente que provas de DNA adquiridas em uma investigação não sejam aceitas em um tribunal. Existe a possibilidade de ocorrer contaminações das amostras ou haver pouco DNA disponível para coleta na cena do crime. Além disso, o material biológico pode ainda ser ruim, visto que o DNA se degrada muito facilmente, ou conter diferentes fontes (do autor, da vítima, ou de pessoas que estiveram no local antes do incidente ocorrer). Nestes casos, a combinação de material genético atrapalha a condução das análises e muitas vezes não permite um resultado confiável.
"As amostras retiradas de restos ou vestígios podem ser afetadas por intempéries ambientais, contaminadas por outras amostras (mistura de DNA), pela técnica de laboratório. Claro que, naquelas amostras coletadas a partir do indivíduo inteiro (como sangue ou swab bucal), espera-se melhor qualidade do material. Mas, em cenas forenses, o maior limitador é a pouca quantidade encontrada", ressalta a professora Andrea Marrero. No campo da genética forense, essas análises dos vestígios biológicos podem compreender as mais diferentes amostras: sangue, ossos, sêmen, cabelo, dentes, unhas, saliva, urina, entre outros fluidos.
Primeiro caso de identificação através de DNA livra inocente
Em 1983, o corpo de uma jovem foi encontrado no vilarejo de Narborough, no condado de Leicestershire, na Inglaterra. A polícia identificou a vítima como Lynda Mann, de 15 anos, e concluiu que ela havia sido estuprada e assassinada logo em seguida. A perícia colheu amostras do sêmen deixado no corpo pelo estuprador. Três anos depois, outro corpo aparece nas mesmas condições: Dawn Ashcroft, também de 15 anos, nos arredores do vilarejo de Enderby, perto de Narborough.
Para azar do assassino, o médico e geneticista Alec Jeffreys, professor na Universidade de Leicester, morava na localidade. Um ano antes, em 1985, Alec havia publicado um artigo na revista Nature sobre o processo de identificação via DNA. No estudo, o pesquisador concluiu que um especialista poderia identificar uma pessoa com uma grande precisão devido às regiões denominadas "impressões digitais de DNA" (DNA fingerprinting).
Os detetives resolveram propor a Alec a realização de testes de DNA a partir do sêmen encontrado nas vítimas e comparar seus resultados ao de um acusado preso pelos crimes. Os testes foram feitos e o sêmen em ambas as vítimas pertenciam ao mesmo homem; entretanto, não eram do homem que estava preso. As autoridades de Narborough, então, simularam uma campanha de doação de sangue, que envolveu a coleta de amostras de 3,6 mil homens — toda a população masculina do lugar, com idade entre 14 e 40 anos.
Nenhuma delas foi compatível e o caso acabou sendo desacreditado e, consequentemente, arquivado. A resolução aconteceu de uma forma imprevista. Em 1988, a polícia recebeu uma ligação anônima afirmando que um funcionário de uma padaria, chamado Ian Kelly, havia confessado que, na campanha de doação de sangue de dois anos antes, ele havia entrado na fila no lugar de um colega padeiro, Colin Pitchfork.
Após irem atrás de Colin e extraírem uma amostra de seu sangue, a polícia e o geneticista Alex Jeffreys puderam confirmá-lo como o estuprador das duas adolescentes, tornando-o o primeiro sujeito a ser condenado graças a um exame de DNA.
Investigação brasileira é premiada
Recentemente, o Brasil foi destaque na área: a perícia criminal da Polícia Federal venceu o prêmio DNA Hit Of The Year 2020, um dos mais importantes concursos internacionais para a área de genética forense. A premiação é entregue anualmente a um caso emblemático de uso dos bancos de dados de DNA para a resolução e prevenção de crimes. Segundo notícia veiculada no site da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, pela primeira vez o reconhecimento foi concedido a uma equipe brasileira.
Por meio do confronto de dados do Banco Nacional de Perfis Genéticos (BNPG), a perícia federal ajudou a identificar e a condenar alguns dos responsáveis pelo assalto à sede da transportadora de valores Prosegur, em Ciudad del Este, no Paraguai, em 2017. O crime é apontado como o maior da história daquele país e ficou conhecido como o "Roubo do Século". Na comparação do material genético recolhido na cena do crime na cidade paraguaia com materiais cadastrados no BNPG, os peritos federais puderam relacionar o assalto a outros 18 crimes ocorridos entre 2013 e 2019, em sete estados brasileiros.
Um dos DNAs encontrados na sede da Prosegur deu "match", como se diz no jargão forense, com o de um homem que participou, em 2016, do assassinato de um agente penitenciário federal, em Cascavel, no Paraná. Depois, em 2017, o mesmo DNA foi encontrado na cena de um assalto a uma agência do Banco do Brasil em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Esse mesmo homem foi preso em dezembro de 2018, suspeito de arrombar e explodir os muros de uma penitenciária estadual na região metropolitana de Curitiba, para ajudar na fuga de 29 detentos em setembro daquele ano, e teve seu DNA recolhido e inserido no Banco Nacional. Segundo relatório da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG), atualmente são mais de 82 mil perfis genéticos armazenados no BNPG.
A professora Andrea Marrero salienta que, apesar da falta de recursos para pesquisa, a rotina dos laboratórios de genética forense no Brasil é de altíssima qualidade. "Temos um buraco muito grande na pesquisa, especialmente nas universidades, pois falta financiamento. Uma pesquisa acadêmica visa desenvolver e estudar marcadores que possam vir a ser utilizados. Na rotina dos laboratórios da rede, o urgente é determinar o perfil genético e devolver, geralmente ao Ministério Público. O que precisamos é encurtar essas distâncias entre a teoria e a prática", avalia.