A capa da reportagem conta com um plano de fundo com diversas silhuetas de cabeças e rostos, em tons de laranja e azul, se sobrepondo, encarando diferentes direções e sentidos. Na parte superior, em fonte branca e caixa alta, está escrito o título "Doença de mil faces".


Plano de fundo que combina uma pintura do universo com uma rede de neurônios. Em cima do plano de fundo está escrita a poesia: "Cada doença pertence a um doente. Cada doente tem uma mente. Cada mente é um universo infinito", seguido de um hífen e o nome do autor, "Augusto Cury". A poesia está centralizada na tela, escrita em caixa alta e com fonte branca.

Um entra e saí de emergências, incontáveis visitas ao pronto-socorro, consultas com diferentes especialistas, essa foi a rotina de Fernanda Rougemont durante oito anos.  A peregrinação pelos hospitais de Curitiba - Paraná, e Florianópolis - Santa Catarina, parecia sem fim. “Me falavam que eu estava querendo chamar atenção”, conta ao lembrar do período em que buscou por um diagnóstico que pudesse explicar seus sintomas e cessar a angústia da dúvida.

Pela insistência nas queixas das dores e dos formigamentos, foi considerada paciente psiquiátrica. Ela mesma estava convencida de que seus sintomas eram psicológicos. “Passei anos achando que eu estava virando hipocondríaca ou que eu estava com crises de ansiedade, que eu não tinha nada demais”. Mesmo ao ter a visão afetada e perder parcialmente a mobilidade de um dos braços, permanecia sem diagnóstico.  “Quando os médicos não sabem o que você tem e mesmo assim você fica voltando ao hospital, eles te dizem que você está enlouquecendo”. 

Por atingir diferentes zonas do Sistema Nervoso Central (SNC), pessoas com esclerose múltipla (EM)  não apresentam necessariamente os mesmos sintomas. No entanto, alguns deles são mais comuns. De acordo com o Dr. Adaucto Jr, neurologista e coordenador do Ambulatório de Doenças Desmielinizantes e Esclerose Múltipla do Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (HU-UFSC), eles são: musculares, como tremores, perda de força muscular, músculos rígidos, inabilidade manual; tonturas e falta de equilíbrio, incluindo a falta de coordenação de movimentos, sensação de objetos girando; visuais, visão dupla, embaçada ou esbranquiçada; cognitivos, como déficits de memória e atenção, distúrbios da fala e da voz, raciocínio lento; sensitivos, os formigamentos, dor ou queimação nas mãos, pés e membros; dificuldades de controlar bexiga e intestino (perda ou retenção).

Infográfico que conta com um plano de fundo com três ondas das cores laranja, azul e laranja, respectivamente. Posicionado no quadrante esquerdo da imagem, a silhueta de um corpo em azul, cobrindo a cabeça do corpo estão as palavras "Sintomas mais comuns na EM".
Um infográfico com uma silhueta do corpo humano em azul, uma linha na altura do braço leva até um balão que mostra a figura de um músculo. Ao lado, são listados os sintomas musculares em tópicos: perda de força muscular, rigidez muscular, tremores, inabilidade manual.
Um infográfico com uma silhueta do corpo humano em azul, junto de um círculo com o ícone de uma cabeça com uma seta, indicando desequilíbrio. Ao lado, são listados os sintomas vinculados ao equilíbrio: tontura, falta de coordenação e sensação de objetos girando.
Um infográfico com uma silhueta do corpo humano em azul, uma linha na altura do olho leva até um balão que mostra a figura de um globo ocular, destacando o nervo óptico em preto. Ao lado, são listados os sintomas visuais em tópicos: visão dupla, visão embaçada, visão esbranquiçada.
Um infográfico com uma silhueta do corpo humano em azul, uma linha na altura da cabeça leva até um círculo que mostra a figura de um cérebro. Ao lado, são listados os sintomas cognitivos em tópicos: déficits de memória e atenção, distúrbios da fala e da voz, raciocínio lento.
Um infográfico com uma silhueta do corpo humano em azul, uma linha que se divide na altura da mão e da perna, levando até um círculo que mostra a figura de um pé e uma mão. Ao lado, são listados os sintomas sensitivos em tópicos: formigamento, dor, queimação.
Um infográfico com uma silhueta do corpo humano em azul, uma linha na altura do sistema intestinal que mostra a figura de um intestino. Ao lado, são listados os sintomas do sistema urinário em tópicos: perda ou retenção, falta de controle.

Além destas condições, hoje, sabe-se que as pessoas com EM também são acometidas por sintomas que nem sempre são visíveis, ou perceptíveis aos demais. Alguns desses sintomas são impossíveis de comprovar e só são levados em consideração se houver a escuta atenta dos relatos dos pacientes. Os sintomas invisíveis são característicos da doença, como dores intensas, fadiga, “abraço da esclerose múltipla", zumbidos, espasmos, formigamentos, engasgos, hipersensibilidade ao som, falta de libido, alterações no sono, variações de humor, depressão. Para a Fernanda, “se você não prestar atenção no paciente com esclerose múltipla, você não vê o que ele tem”.

Após anos sem diagnóstico, em 2019, Fernanda realizou uma tomografia no Hospital Governador Celso Ramos, em Florianópolis, onde foi atendida após um surto. O exame revelou uma lesão na coluna, os médicos acreditavam ser um tumor. Ela, que é fisioterapeuta desportiva, encontrou pelos corredores um ortopedista, com quem havia trabalhado. Dividiu sua história com o colega que, por coincidência, estava com um livro sobre esclerose múltipla em mãos. “Ele disse: Fernanda, você esclerosou. Eu, da área da saúde, sabia muito bem o que era, levei um susto, né? Não tinha como ter outra reação”, conta sobre a primeira vez que teve seus sintomas associados com a doença. “Se não fosse essa coincidência, eu ia voltar para casa sem saber o que eu tinha mais uma vez”.

Foram 15 dias internada e muitos exames. Acamada no corredor do hospital, fez três punções lombares para investigar a possibilidade de EM, mas não conseguiram fechar o diagnóstico. Só no ano seguinte, em 2020, teve a confirmação. Descobriu que possuía oito lesões no cérebro e quatro na coluna e teve certeza que a doença estava se manifestando há muito tempo, era a razão dos sintomas que sentia e a resposta que buscava há tantos anos. 

Quando se trata de EM, não é incomum que, ao receber o diagnóstico, a pessoa saiba pouco sobre a doença ou nunca tenha ouvido falar. A desinformação pode ser um combustível para os estigmas e preconceitos que cercam a doença. “O paciente de esclerose múltipla passa por muitas coisas que as pessoas não ligam. Uma dor, uma ansiedade ou um formigamento. Você vai passando por muita coisa que acaba não querendo mais contar para os outros o que está acontecendo”, explica Fernanda.

A capa do intertítulo mostra um plano de fundo com peças de quebra-cabeças bagunçadas, em tons de laranja e azul. No centro da imagem, aspas em cima e abaixo, com a citação "Um quebra-cabeças que precisa ser montado" em fonte branca e caixa alta. Ao lado direito do título, uma peça de quebra-cabeças em evidência, inclinada para a direita, na cor roxa e com efeito de "fotocópia".

Ser diagnosticado com esclerose múltipla não é uma caminhada simples e direta, inclusive quando a suspeita surge logo nos primeiros sintomas e se seguem os procedimentos médicos indicados. Isso porque, o diagnóstico se dá por exclusão, a partir da análise do quadro de sintomas apresentados, do histórico individual e da combinação de resultados encontrados em diferentes exames. “Eu gosto de falar para os pacientes que um caso de diabetes, por exemplo, que a gente faz exame de sangue e se a glicose está alta, sabemos que é diabetes mesmo, é diferente da esclerose múltipla. Nesse caso, não existe um exame capaz de indicar a doença diretamente, temos que ver a história que o paciente conta, o exame neurológico que acompanha a ressonância. Em alguns casos, a pulsão lombar vai ajudar, vamos ter que descartar outras doenças reumatológicas, etc. É um quebra-cabeças que precisa ser montado”, explica Dr. Adaucto Jr.

Segundo o neurologista, o termo esclerose quer dizer endurecimento patológico de um tecido do organismo e está associado às cicatrizes esbranquiçadas que foram encontradas no cérebro humano nos primeiros estudos realizados sobre a doença. Essas cicatrizes eram chamadas de esclerose em placas. Enquanto o adjetivo múltipla, faz referência às diferentes áreas afetadas no sistema nervoso central: cérebro, nervo óptico, tronco cerebral e medula espinhal.

Sete pequenas imagens de lâminas cerebrais feitas a partir de uma ressonância magnética, dispostas em três linhas e duas colunas. As lâminas destacam manchas brancas no cérebro.

Imagem de ressonância magnética que mostra lesões (pontos esbranquiçados) características da esclerose múltipla. As cicatrizes foram identificadas e classificadas em 1886, por Jean-Martin Charcot, neurologista e professor da Universidade de Paris. Naquela época, a esclerose múltipla, ainda não estava catalogada como uma patologia e era comumente confundida com a paralisia. As doenças puderam ser diferenciadas somente quando Charcot, embasado em observações e exames anteriores, fez uma análise post mortem do cérebro de uma paciente que sofria de tremores, dificuldades de fala e alterações na visão. Nas lâminas cerebrais que analisou nas necropsias, encontrou placas duras e esbranquiçadas, a esclerose em placas. │Imagem por MedicinaNet

Imagem de ressonância magnética que mostra lesões (pontos esbranquiçados) características da esclerose múltipla. As cicatrizes foram identificadas e classificadas em 1886, por Jean-Martin Charcot, neurologista e professor da Universidade de Paris. Naquela época, a esclerose múltipla, ainda não estava catalogada como uma patologia e era comumente confundida com a paralisia. As doenças puderam ser diferenciadas somente quando Charcot, embasado em observações e exames anteriores, fez uma análise post mortem do cérebro de uma paciente que sofria de tremores, dificuldades de fala e alterações na visão. Nas lâminas cerebrais que analisou nas necropsias, encontrou placas duras e esbranquiçadas, a esclerose em placas. │Imagem por MedicinaNet

A EM é desmielinizante, neurodegenerativa e crônica. Como o próprio sistema imunológico ataca o tecido sadio do corpo, é considerada uma doença autoimune. A reação autoimune vai causar a desmielinização, ou seja, a destruição da bainha de mielina dos neurônios do Sistema Nervoso Central. O Dr. Adaucto Jr. explica o processo da seguinte forma: “O neurônio tem um prolongamento que vai se conectar com os outros neurônios, esse prolongamento se chama axônio, e ele é envolto pela bainha de mielina, uma camada de gordura que isola o axônio, fazendo com que o impulso elétrico ganhe mais velocidade. Com a destruição da bainha de mielina pela células do sistema imunológico, a velocidade diminui e a pessoa sente os sintomas - se pegar os neurônios motores, da força, vai ter fraqueza, se pegar da sensibilidade, vai ter dormências e formigamentos, se pegar o nervo óptico, vai ter visão dupla”.

GIF com dois neurônios na vertical. O neurônio a esquerda da imagem está sem bainha de mielina, o brilho que representa o impulso nervoso passa por ele de forma lenta e desordenada. O neurônio a direita está com a bainha de mielina, representada por uma capa que envolve seu corpo. O impulso nervoso passa pela bainha de mielina rapidamente.

À esquerda, impulso nervoso no neurônio sem bainha de mielina, após a desmielinização. À direita, neurônio com bainha de mielina, cujo impulso elétrico tem maior velocidade e precisão para se comunicar com o corpo. │Imagem por Viviane Marques

À esquerda, impulso nervoso no neurônio sem bainha de mielina, após a desmielinização. À direita, neurônio com bainha de mielina, cujo impulso elétrico tem maior velocidade e precisão para se comunicar com o corpo. │Imagem por Viviane Marques

Frente aos sintomas e a suspeita de EM, existem dois exames comumente utilizados para ajudar a determinar se uma pessoa possui a doença: a ressonância magnética de crânio e coluna e a coleta de líquido cefalorraquidiano. A ressonância magnética é o principal, suas imagens mostram um padrão típico e característico da doença, as lesões brancas no Sistema Nervoso Central. Para fazer o exame, o paciente deita-se em uma maca, deslizando para dentro do tubo do aparelho que produz um campo magnético para extrair imagens internas do corpo. O processo dura, em média, de 20 a 30 minutos. Enquanto a coleta do líquor (líquido cefalorraquidiano) é realizada através da punção lombar. Nesse caso, a extração do líquido é feita nas costas, utilizando uma agulha espinhal fina. Apesar de não ser imprescindível, o exame é um auxiliar relevante na hora de bater o martelo e determinar o diagnóstico.

Segundo as estatísticas demográficas do Protocolo Clínico de Diretrizes Técnicas de Esclerose Múltipla instituído pelo Ministério da Saúde, os primeiros sintomas manifestam-se em pessoas entre 20 e 40 anos de idade, atingindo principalmente mulheres cisgênero - três para cada homem. É mais comum em pessoas brancas e tem alta prevalência na América do Norte e no nordeste da Europa. No Brasil, são cerca de 15 casos a cada 100 mil pessoas. Por essa característica, a doença é considerada rara - classificação concedida às patologias que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil, de acordo com a indicação do Ministério da Saúde. 

A doença pode se comportar de diferentes formas ao longo da vida de uma pessoa. Há três subtipos que descrevem o padrão de comportamento, o mais comum deles é a Esclerose Múltipla Remitente Recorrente (EMRR). Segundo a pesquisa Perfil epidemiológico de pacientes com esclerose múltipla, realizada pela Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), em 2017, 85% das pessoas afetadas possuem esse subtipo, encarando uma rotina de surto-remissão. O surto ocorre quando aparece um sintoma novo, ou há uma piora de um sintoma antigo, sem melhora por ao menos 24 horas. Isso significa que uma pessoa com a doença pode, a qualquer momento, sofrer uma inflamação aguda em algum ponto do Sistema Nervoso Central, o que desencadeia sintomas de natureza motora, sensitiva, visual, auditiva ou de coordenação, seguido de um período de melhora completa ou parcial. A frequência e a intensidade dos surtos não é uniforme e nem previsível, variando de sintomas e gravidade de pessoa para pessoa, caso para caso. Assim, a EMRR pode ser ativa, com surtos ou lesões nos últimos seis meses, ou não ativa, sem surtos e lesões nesse período. É possível que, após um surto, fiquem as sequelas. 

Outro subtipo, a Esclerose Múltipla Secundariamente Progressiva (EMSP), inicia como Recorrente Remitente, e quando não tratada precocemente, pode ser agravada,  tornando-se EMSP. É raro que essa transição aconteça. Fernanda, por exemplo, que passou anos buscando o diagnóstico, possui o subtipo Recorrente Remitente, sem ter progredido para Secundariamente Progressiva. Quando há agravamento, e um quadro de EMSP é confirmado, significa que deixam de acontecer surtos frequentes e a doença passa a ser marcada por uma piora gradativa, que pode ser classificada como ativa e não ativa. Pode haver, ainda, períodos sem progressão, em que a doença está constante, e com progressão, que são os períodos identificados com pioras. 

O terceiro subtipo, a Esclerose Múltipla Primariamente Progressiva (EMPP), se caracteriza pelo avanço da doença desde o início, sem um período de surtos frequentes. Nesse subtipo, acontece um agravamento lento dos sintomas e também é classificada como ativa e não ativa, progressiva ou não progressiva. Não existe cura para a EM, existem tratamentos neurológicos e multidisciplinares que promovem a qualidade de vida e medicações que minimizam os efeitos dos surtos.

Porcentagem de pessoas com cada subtipo de EM:

Fonte: Perfil epidemiológico de pacientes com esclerose múltipla, realizada pela Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM). Disponível em: https://www.abem.org.br/10477-2/

A origem da reação autoimune que causa a EM não é clara. O consenso entre os especialistas aponta que as causas podem ser 30% genéticas e 70% ambientais, como descrito em  estudos mais recentes, como o desenvolvido por Yamasaki e Kira, em 2019, como parte da coleção de livros Advances in Experimental Medicine and Biology. Dentre os fatores ambientais, são citados como possíveis desencadeadores a infecção pelo vírus Epstein-Barr, pouca exposição ao sol, baixos níveis de vitamina D, obesidade e tabagismo, principalmente durante a adolescência. 

De acordo com o estudo Esclerose Múltipla: Genética, Biomarcadores e Tratamentos, publicado pela Curr Opin Neurol em 2016,  já foram identificadas cerca de 194 alterações genéticas que podem ser vinculadas à EM. Algumas dessas razões, uma combinação delas, ou ainda algo que nem sequer foi descoberto, afetaram Sérgio Rosário, à época com 39 anos.

Hoje, aos 66, relembra seu diagnóstico em 1995. Um ano antes, Sérgio foi surpreendido por um surto em que perdeu a sensibilidade do lado esquerdo da cabeça, “rosto, testa, língua, palato, palato mole, tudo. Estava em casa, conversando com a esposa, falei para ela: Que estranho. Passo a mão no rosto, mas não consigo sentir nada”. Ao consultar o médico, foi erroneamente diagnosticado com neuralgia o trigêmeo, uma dor intensa no rosto causada por uma disfunção de um nervo do crânio, chamado trigêmeo. “Ele me deu um medicamento, como não era problema no trigêmeo, me fez mal, quase me matou. Isso deixou uma sequela até hoje, tenho o lado esquerdo mais dormente, com falta de sensibilidade”.

Pouco tempo depois, perdeu a mobilidade da perna direita. Buscou outro neurologista, que pediu por um exame de ressonância magnética. Nesse período, havia poucos casos conhecidos da doença em Santa Catarina, o neurologista que atendeu Sérgio sabia de apenas três. “Eu nunca tinha ouvido falar em esclerose múltipla. Chego no médico, sozinho e ele diz para mim: seu quadro é compatível com esclerose múltipla. Eu perguntei, que doença é essa? Ele me explicou um pouco e disse que eu não ia morrer por causa dela, mas ia morrer com ela. Na mesma hora, ele já foi pegando o telefone e ligando para marcar uma consulta para mim”. Ele foi encaminhado diretamente ao Dr. Gilbert, neurologista referência em EM e que, na época, atendia 256 casos espalhados pelo Brasil. No dia seguinte, Sérgio estava em um avião, rumo ao consultório em São Paulo. “Arrumei o dinheiro para a passagem e fui, fiquei na casa de um primo que me hospedou”, relembra sobre os obstáculos que enfrentou às pressas em meio ao choque inicial da notícia. A partir das imagens da ressonância, o especialista pôde confirmar a suspeita e diagnosticá-lo. “Seu mundo cai. Na hora, você vai lá no chão, mas melhora. Sempre aprendendo a lidar com a doença”.

A capa do intertítulo possui um plano de fundo laranja claro, com efeito "manchado" suave. Ao centro da imagem, aspas em cima e embaixo, entre elas a citação "Isso faz parte da luta pelas políticas públicas". Atrás do título, um círculo azul que compreende parte uma balança de direito na cor roxa, com efeito "fotocópia" e uma mão em recorte de papel, na cor azul, atrás da balança e a frente do círculo. Abaixo de todos os elementos, estão bonequinhos de recorte de papel na cor azul, dando as mãos e ocupando a parte inferior da imagem de ponta a ponta.

Depois do diagnóstico, demorou mais um ano para que Sérgio começasse a receber uma medicação adequada ao tratamento da EM. Na década de 1990, foram desenvolvidos os primeiros imunomoduladores, remédios que atuam na prevenção do ataque feito pelo sistema imunológico. Ele lembra que, ao testar os primeiros remédios, seu organismo não respondeu bem. As reações podem se manifestar de forma diferente em cada pessoa, por esta razão é fundamental manter um monitoramento junto ao médico neurologista, para que os efeitos e eficácias dos medicamentos possam ser equilibrados e adaptados sempre que necessário. “Tomava uma vez por semana. Depois, descobriram que a forma correta de tomar o remédio era três vezes por semana. Efeitos colaterais foram muitos, era coisa de tomar e já ir para cama deitar e ficar com cinco cobertores um em cima do outro, tremia de frio, tremia de dor. Até descobrir que meia aspirina acaba com todo esse drama dos efeitos”. Sérgio acompanhou as mudanças científicas e farmacêuticas ao lidar com EM e foi se adaptando ao melhor tratamento para o seu caso, conforme vieram esses avanços. 

Dos anos 1990 pra cá, surgiram remédios mais eficazes e mais seguros, e foram incorporados ao sistema de saúde brasileiro. Sobre a eficácia dos medicamentos disponíveis, o Dr. Adaucto Jr. explica que, “funcionam como se fosse uma escadinha. Os primeiros desenvolvidos são menos eficazes, mas mais seguros. Mesmo assim existem efeitos colaterais, alguns dos mais seguros até dão bastante, só que efeitos que não são nada graves. Conforme a gente vai subindo a escadinha, vamos tendo remédios mais eficazes, mas relativamente menos seguros”. 

A primeira linha de tratamento, ou seja, os medicamentos iniciais recomendados para tratar a EM, conta com três grupos de compostos químicos, os primeiros desenvolvidos. Na escadinha citada pelo Dr. Adaucto, estes remédios representam em média 20% a 30% de eficácia na prevenção de surtos. Nos dois degraus seguintes, a eficácia aumenta entre 40% e 50%, até 70%. No topo da escada, estão as medicações mais modernas e com aplicações menos frequentes, as quais têm cerca de 80% de eficácia na redução de surtos. 

No Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) de Esclerose Múltipla, documento que estabelece as diretrizes de tratamentos a serem seguidas, há nove medicamentos incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS). “O SUS tinha desde o início essa mentalidade de começar com remédio menos eficaz, conforme ele vai falhando, tendo novas lesões na ressonância, a gente vai aumentando na escadinha”. Assim, há pacientes que recebem primeiro a medição de menor eficácia e para alguns deles a experiência será positiva. No entanto, há vezes em que os surtos e lesões apresentados desde o diagnóstico são graves, nesses casos, o Dr. Adaucto Jr. explica que “a gente não vai começar com um remédio menos eficaz. A gente quer começar com o remédio mais eficaz para esses pacientes. Agora, em casos especiais e dentro de vários critérios, o SUS já permite começar em primeira escolha com os remédios de maior eficácia”.

Todas as medicações indicadas para EM são de alto custo. Os medicamentos de primeira linha de tratamento podem custar cerca R$2 mil reais o frasco para aplicação de uma única injeção, sendo necessárias entre duas e três aplicações semanalmente. Já os de maior eficácia podem chegar a cerca de R$180 mil, sendo um comprimido ao ano. Segundo o Dr. Adaucto Jr., “nenhum dos meus pacientes compra, tanto os que são atendidos pelo sistema público, quanto no consultório particular. A maioria esmagadora pega gratuitamente pelo SUS”.

As pessoas com EM têm direito a retirar os medicamentos sem custos pelo SUS, nas farmácias especializadas de cada região, Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (Ceaf). Para isso, é necessário apresentar as receitas do médico, os documentos e laudos do paciente e realizar o preenchimento do Laudo de Solicitação, Avaliação e Autorização de Medicamento (LME). O formulário LME precisa ser renovado a cada três meses para garantir a continuidade do tratamento. Dentre outros procedimentos que podem ser necessários, dependendo do lugar de residência de cada paciente. Caroline Barbosa, advogada em Políticas de Diversidade e Inclusão (ESG), explica que o estado garante o direito de acesso à medicação, mas existe uma responsabilidade concorrente entre as esferas Federal, Estadual e Municipal, podendo mudar de um lugar para o outro. 

Como acessar a medicação implica uma série de exames, documentos e processos, podem ocorrer atrasos.  Para a renovação do formulário a cada três meses, por exemplo, é necessário ter passado por uma ressonância magnética e pela avaliação de um neurologista. Marcar a consulta e o exame pode levar semanas, pois a agenda está sempre cheia. Além disso, o farmacêutico responsável tem até 30 dias para dar a resposta da requisição dos remédios.

Além da medicação acessível pelo SUS, existem outras aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não foram incorporadas ao Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) até o momento. O mesmo acontece com os planos de saúde e convênios particulares, que dependem da liberação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para poder comprá-los. É necessário entrar com um processo judicial, o que pode levar muito tempo, prejudicando o tratamento e deixando o paciente exposto a novos surtos e a mercê do desenvolvimento de sequelas permanentes.

Na maioria dos casos, os remédios de alta eficácia não incorporados pelo SUS são indicados quando o paciente não responde bem a nenhum dos medicamentos acessíveis. Esse é o caso de Suelen Alves, de 38 anos. Após trocas e adaptação aos medicamentos que não ajudavam ou tinham efeitos colaterais agressivos, o neurologista identificou que o subtipo de EM de Suelen era EMSP, com uma agravação lenta. Assim, ela deu início a um processo judicial pelo acesso a um dos poucos medicamentos indicados para o tratamento de pessoas que apresentam sinais de progressão ativa da doença e que não está incorporado ao SUS.

Em tempo recorde, conseguiu mobilizar o judiciário e recebeu a medicação em três meses. Muitos casos levam o dobro ou o triplo do tempo. Em 2017, quando tomou o remédio, o custo de um frasco de comprimidos era de 213 mil reais, que foram integralmente pagos pelo SUS. Agora, atuando como voluntária na Associação Florianópolis e Região de Esclerose Múltipla (Aflorem), ela defende que, “além de aprovado pela Anvisa, é preciso que seja incorporado ao SUS. Estão surgindo um monte de novas medicações que não fazem parte do protocolo clínico, está engessado e eles não querem mudar. Isso faz parte da luta pelas políticas públicas”.

Suelen foi diagnosticada com EM aos 16 anos de idade. Seus primeiros sintomas surgiram em 2000, quando sentiu formigamento e dessensibilização da cintura, dos membros inferiores e teve visão dupla. Passou um ano convivendo com uma rotina intensa de consultas médicas e exames, até ter seu diagnóstico confirmado. Dali em diante, foram muitos questionamentos quanto aos direitos que envolvem as pessoas com EM. “Posso dizer que sou uma pessoa muito mais madura e que cresci muito em virtude da própria doença, que me ensinou a aprender a viver. Agora sou uma pessoa mais pé no chão e em constante aprendizado”. Ao amadurecer junto com a EM, Suelen foi identificando injustiças e procedimentos inconsistentes, e quis lutar para melhorá-los.

Para os casos de Esclerose Múltipla Recorrente Remitente (EMRR), ainda que a frequência dos surtos seja reduzida pelas ações multidisciplinares que realiza, eles acontecem. Nesses momentos, geralmente, é necessária a internação do paciente por alguns dias, para que a medicação seja administrada. O tratamento é feito principalmente com pulsoterapia, injetando altas doses de corticóide na veia, para acelerar o processo de melhora.  “Às vezes quando dá um surto muito leve, não está atrapalhando muito a vida do paciente, a gente opta por observar, não fazer a pulsoterapia, já que tem que vir pro hospital, fazer na veia e tudo mais. Quando ele está sem caminhar, por exemplo, vai atrapalhar a vida dele. Então, em vez de ter uma recuperação em meses, fazemos uma pulsoterapia”, explica o Dr. Adaucto Jr.

Suelen conta que quando vivia os surtos, a permanência no hospital era um pesadelo. “Eu sempre ficava muito triste, quando eu tinha que tomar cortisona. Era muito difícil para mim porque me dava muito efeito colateral. Eu sempre fui muito vaidosa, aí eu ficava com o rosto inchado, as bochechas muito coradas”. Sempre que possível, ela tentava evitar o período de internação e negociar com os médicos para passar o menor tempo no hospital, “eu era muito tinhosa, falava ‘porque eu não posso vir cinco dias no hospital, tomar medicação e ir embora'. Eu fazia isso para poder ter a vida mais normal possível”.

O mesmo pensamento é compartilhado por Fernanda Rougemont, cujas experiências com hospitais já eram traumáticas desde antes do diagnóstico. "Toda vez que eu entrava virava um rato de laboratório e a única coisa que eu queria era fazer a pulso para ir embora. Até hoje quando eu tenho alguma coisa, penso dez mil vezes antes de ir para o hospital”, relata sobre as vezes que precisou ficar internada para receber o tratamento. “Eu tive que brigar aqui em Florianópolis para conseguir fazer hospital-dia. É um gasto muito menor para o governo, os pacientes não lotam o hospital, o nível de infecção diminui muito, ainda mais para nós que temos a imunidade comprometida”, argumenta. Para Fernanda, “quase nenhum profissional está preparado para lidar com doenças raras no Brasil, a menos que você já caia num profissional que estuda especificamente aquilo. Não é só no SUS, é em todos os lugares. Ninguém está preparado”. A este cenário se somam as divergências e a complexidade dos processos burocráticos que cercam a doença, tanto e podem gerar dúvidas, principalmente em pessoas recém diagnosticadas, e dificultar a clareza sobre seus direitos.

Segundo Caroline, “o Brasil não tem uma boa formação de direitos anti capacitistas”. Desde 2015, existe o Estatuto da Pessoa com Deficiência, estabelecido pela Lei no 13.146. No entanto, ele não é específico e detalhado, “foram pegos os direitos da Constituição e trazidos para o estatuto. Ele não trouxe muitas novas informações”. Como nem todas as pessoas com EM são pessoas com deficiência, a situação é ainda mais complicada. “É um buraco, porque é uma doença crônica que não tem informação, o próprio saber médico, às vezes, não é o suficiente, a gente encontra muita dificuldade no SUS. É difícil encontrar profissionais que entendam, muitas vezes eles também não conseguem passar informação, dizer onde as pessoas têm que ir”, explica.

O atendimento e a relação com os profissionais de saúde são determinantes para uma descoberta rápida da doença e um acompanhamento adequado à realidade de cada pessoa. Na teoria o SUS permite o acesso completo a tratamentos de alto custo, incluindo medicamentos, exames e consultas para pessoas com doenças raras, de acordo com as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Na prática, relatos de atrasos e faltas de medicação ou dificuldade de acesso aos exames e consultas são comuns. Ainda que haja falhas no processo de garantia dos direitos, é possível fazer um acompanhamento eficaz pelo sistema público, superando adversidades que se colocam no caminho. Para Caroline Barbosa,  “a gente tem que valorizar o SUS. Essas inconsistências e demoras existem por causa de um sistema político que a gente tem. O problema é mais político do que o SUS, que precisa ser fortalecido”.  Caroline ressalta que a importância do SUS é institucional, capaz de comportar diversos tipos de tratamento e servir a toda população, de forma direta ou indireta. “A grande maioria das pessoas com EM não tem condições de pagar qualquer tipo de tratamento. Muitas pessoas têm um poder aquisitivo bem mais baixo, muitos não conseguiram ter uma escolaridade maior para conseguir outras oportunidades, muitos param as suas profissões pela doença. Todas essas pessoas estão sendo acolhidas pelos SUS”.

Jéssica Teixeira, de 27 anos, foi diagnosticada com EM aos 15. Desde então, seu tratamento tem sido feito integralmente pelo SUS.  Uma série de mudanças aconteceram em sua vida desde o início da adolescência. “Quando eu tinha 12 anos, meu pai sofreu um acidente que deixou ele tetraplégico”. Os pais que moravam juntos na Região Metropolitana de São Paulo, passaram a viver separados, para que o pai, Sérgio, pudesse fazer o acompanhamento médico na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, no Centro, mais próximo da casa dos avós paternos, onde ele passou a residir.

O acidente gerou impactos na vida financeira e na rotina de estudos de Jéssica, o que fez com que ela começasse a trabalhar precocemente. “Era para pagar a passagem para ir pra escola, às vezes ajudar em casa, às vezes até comprei as minhas coisas, mas que a minha própria mãe já considerava como uma forma de ajuda”, conta. Durante esse período, sentiu seus primeiros sintomas: mudança da visão, dificuldade de deglutição, formigamento na língua e fadiga.

O surto que acendeu o alerta da doença aconteceu, quando tinha 14 anos, enquanto  trabalhava num buffet infantil. "Eu vou fazer uma maquiagem no olho, aí eu passo lápis de olho e fico sem enxergar. Minha mãe disse que ia passar, mas não voltou totalmente ao normal, porque o meu olho ficou tremendo”.  Um tempo depois, novos sinais de crise começaram a surgir, até que um dia, acompanhando a mãe em uma consulta no reumatólogo, na Santa Casa, decidiu fazer uma triagem no hospital e falar sobre a alteração que havia sentido na visão.

“Ela vai para reumatólogo e eu passo pelo oftalmo. A médica me examina e fala ‘cadê seu responsável?’. Expliquei que ela estava numa consulta e ficamos esperando minha mãe voltar, naquela paciência”. Com a responsável presente, Jéssica foi informada de que ficaria internada para fazer uma ressonância magnética. “Tem alguma coisa pressionando o nervo óptico dela e a gente precisa investigar. Pode ser um câncer, pode ser um tumor”, recorda as palavras da médica. A internação durou 20 dias, acompanhada do tratamento com corticoide e muita ansiedade para saber o diagnóstico. “Quando veio a resposta e eu ouvi que não tem cura, é crônico, degenerativo, isso mexeu comigo, mas não tanto quanto o que eu tinha vivido antes. Quando falaram que tem tratamento e você pode ter qualidade de vida se você fizer tudo direitinho, eu falei ‘opa, bora!”.

Até hoje ela mantém seu acompanhamento na Santa Casa de São Paulo, uma instituição filantrópica que atende ao SUS e a convênios com serviços públicos de saúde. Mesmo quando morava em Chapecó, Santa Catarina, e agora, após mudar-se para Salvador, na Bahia, faz os retornos que precisa ao visitar a cidade natal. Utiliza os tratamentos de primeira linha e faz a retirada na Policlínica de Osasco. Durante a pandemia de COVID-19, período em que as máquinas de ressonância da Santa Casa só tinham vagas para pacientes de oncologia, precisou articular outra maneira de arcar com os custos do exame. Contou com a ajuda de uma rede de mulheres, que fez uma vaquinha virtual. “Se eu não tivesse uma rede de pessoas que fizessem isso, talvez eu não conseguisse renovar minha medicação, não conseguisse voltar para Salvador tranquila. Foi um momento de muito medo para mim. Tem esse protocolo, tem que passar no médico com a ressonância, o exame de sangue, para poder fazer a renovação e continuar fazendo uso, senão você pode perder a medicação ou a vaga no acompanhamento”, reflete sobre as incertezas que viveu na pandemia.

Jéssica pontua que, na Santa Casa sempre teve um ótimo atendimento, mas passou por outras experiências: "Eu já tenho que me esforçar duas vezes mais, por ser mulher e por ser negra. Aí, vai ter uma terceira vez, pela questão do capacitismo. Chegando no SUS, a primeira coisa que a pessoa vê é uma jovem negra. A primeira coisa que vem é desconfiança. O atendimento do técnico de enfermagem, do médico, é muito desse lugar de te tratar com menos credibilidade”, explica sob sua perspectiva com o atravessamento racial no atendimento da saúde. Para ela, o que mais incomoda é a dificuldade de levar a esclerose para a discussão anticapacitista, de forma que inclua o contexto racial. “A maioria das pessoas que usam o SUS, são pessoas negras, pobres, de periferia, mas a gente não tem um índice sobre isso que seja atual”.

A capa do intertítulo conta com o nome da retranca em seu centro. O título é: "A gente promete tratamento e qualidade de vida".  A imagem possui um plano de fundo laranja claro, com efeito "manchado" suave. Acima, uma tulipa ocupando grande parte do espaço superior da capa, em tons de laranja e verde claro, que mesclam-se com a coloração do fundo. No centro da imagem estão aspas em cima e embaixo, com a citação "A gente promete tratamento e qualidade de vida". À esquerda, uma laranja na cor roxo, um tomate vermelho escuro e um brócolis azul, com efeito "fotocópia", se sobrepõe. Acima deles, uma silhueta azul de um corpo correndo. À direita, uma silhueta de corpo humano azul, com um cérebro realístico, com efeito "fotocópia" em sua cabeça.

Para garantir a qualidade de vida das pessoas com EM, diagnóstico e medicação são apenas uma parte do processo. O bem estar na vivência da EM exige uma combinação entre remédios, alimentação, exercícios físicos, tratamentos multidisciplinares focados em reabilitação, e apoio psicológico que podem ajudar com os impactos físicos e os sintomas invisíveis.

Os cuidados com a alimentação são fundamentais, quando deixados de lado, podem ser uma das principais causas de lesões. Por ser uma doença multifatorial, existem diferentes causas que podem levar à progressão e ao aceleramento da doença. A alimentação influencia nesse processo através do intestino. “Quando a pessoa tem uma alimentação inflamatória e existem lesões na parede intestinal, eu permito toxinas e microorganismo na corrente sanguínea que chegam no cérebro e na medula. O corpo se protege ativando o sistema de defesa para atacar. Por ser uma doença autoimune, o corpo não sabe o que é bom e o que é ruim, então ele ataca todo mundo, inclusive a bainha de mielina”, explica Beatriz Giannichi, nutricionista com foco em doenças neurodegenerativas.

“De forma nenhuma a gente promete a cura da doença através da alimentação, a gente promete tratamento e qualidade de vida. Alguns alimentos específicos, tanto em colocá-los na dieta, ou retirá-los, a gente consegue reduzir muitos dos sintomas mais incapacitantes da esclerose, mesmo se o surto vier, consegue ser de forma mais abrandada”. Uma dieta alimentar que considera as características da EM pode ajudar a combater a fadiga, o formigamento, a espasticidade, a incontinência urinária e fecal, a disfunção sexual.

Ainda de acordo com Beatriz, há situações em que os alimentos não podem ser substituídos e precisam ser retirados completamente da dieta.“ O tempo de retirada muda de paciente para paciente, algumas pessoas a gente consegue tirar tudo de uma vez e o paciente fica super bem. Outros a gente vai precisar tirar um alimento por mês ou um a cada três meses”. Quanto às principais recomendações estão a retirada ou redução de gordura saturada, carnes vermelhas, processados, açúcar, bebidas alcoólicas, todos alimentos inflamatórios que podem afetar o eixo cérebro-intestino. Para incluir na dieta, a especialista cita as  frutas, legumes e verduras.

Fernanda Rougemont, fisioterapeuta e pessoa com EM, explica que a movimentação do corpo ajuda na mobilidade, flexibilidade, equilíbrio, cognição e memória. A fisioterapia pode atuar na promoção, levando informação sobre os tratamentos; na prevenção, fortalecendo o corpo e minimizando os efeitos; e na reabilitação, permitindo retomar a mobilidade que foi impactada de forma total ou parcial. “Na parte sensitiva, a fisioterapia consegue atuar utilizando várias texturas para que o paciente vá retomando a parte neurológica. Pode atuar na rigidez dos músculos, podemos utilizar a liberação miofacial, a massagem”. Fernanda conta sobre suas próprias experiências e como a fisioterapia ajudou a reabilitar funções e restabelecer atividades cotidianas. “Teve um período que eu não consegui escrever, perdi totalmente coordenação motora, a fisioterapia também trabalha o sistema motor fino. Vai trabalhar com aquilo que tu tem, para tentar retomar aquilo que tu perdeu. É necessário haver todas essas disciplinas”.  Com o tratamento adequado ao diagnóstico pôde, finalmente, iniciar a medicação e colocar seus conhecimentos de fisioterapia em prática - voltou a andar e não apresenta sequelas dos surtos que viveu antes do diagnóstico. Hoje, essa é a face da EM de Fernanda, aos 35 anos, mas como o nome pressupõe, a doença tem múltiplas expressões e pode comportar-se de diferentes maneiras ao longo do tempo. Ela destaca, ainda, a necessidade de manter a constância dos tratamentos. “Se precisa ser feito todo dia até que o paciente consiga [executar os movimentos], é preciso seguir isso. O organismo vai criando caminhos novos para que ele consiga fazer as novas funções e recuperar o que foi afetado”.

Sobre o potencial da educação física para o bem-estar de pessoas com EM, Wellington Oliveira, educador físico especialista em doenças crônicas, pontua que as práticas auxiliam em “uma manutenção da rotina, recuperação da força, da capacidade de levantar o neto no colo, capacidade de andar sem tropeçar coisas da vida. Há muita evolução também, tem alunos que se adaptam tão bem que o foco já não é mais os déficits que ele tinha”. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é indicado às pessoas com EM pelo menos 150 minutos de atividade física por semana, “são 30 minutos, seis vezes por semana, ou até 50 minutos, três vezes por semana. As pesquisas mostram que manter uma prática contínua consegue reduzir os surtos e prolongar os períodos de remissão. Pessoas que fazem musculação, por exemplo, conseguem aumentar em até 40% o tempo de remissão entre um surto e outro”. Os benefícios não se restringem a musculação, valem para qualquer atividade orientada por um profissional.

De acordo com Wellington, não há exercícios que não sejam recomendados para quem tem EM, mas “o que temos de recomendação é que você evite estresses emocionais, que é um dos gatilhos que podem desencadear surtos, assim como estresses físicos. Por isso, treinos extremamente intensos ou de longa duração, acima de duas horas, não são recomendados. Fora isso, futebol, natação, escalada, vôlei, dança, vale o que você gosta de fazer, o que você vai se sentir bem fazendo, desde que você esteja bem orientado”. No trabalho que desenvolve com os alunos com EM, faz primeiro uma entrevista, para entender o histórico e o comportamento da doença de cada um, seguida de uma avaliação física para montar um plano de exercícios que corresponda aos objetivos específicos, sejam a curto ou longo prazo.

Outra prática que pode ser benéfica é a neuropsicologia, campo entre a psicologia e a neurociência, que estuda o funcionamento cerebral e como ele se reflete no comportamento, e pode ajudar a diminuir as queixas frente à fadiga, perda de concentração, falhas de memória, confusão mental e aspectos cognitivos. Não é sempre que uma avaliação neuropsicológica será necessária, no entanto, Ester Horta, neuropsicóloga, diagnosticada com EM há seis anos, alerta que "temos que olhar também para outros aspectos sutis que podem aparecer na hora que a pessoa vai estudar, ou numa conversa, ela pode estar com dificuldade de articular, não lembra mais das palavras. Pode estar interferindo no sono, no nível atencional”. A neuropsicologia contribui tanto no cuidado de todas as faces da EM, como em outros aspectos da vida da pessoa que podem se ver afetados pela doença.

“A pessoa não é só uma pessoa com esclerose múltipla, ela tem um funcionamento específico em inúmeras outras questões”, pontua Ester e acrescenta, “alguém, por exemplo, com um funcionamento TDAH prévio que nunca foi cuidado e agora descobre a EM, o acompanhamento neuropsicológico pode ser fundamental para ele entender o que é do TDAH, o que é da EM. É muito importante para dizer a extensão do impacto de cada coisa”, enfatiza ela, que aprendeu a lidar com fatores coexistentes.

Antes de sentir os primeiros impactos da EM, Ester convivia com outra doença neurológica desde os quatro anos de idade, ainda que não soubesse disso na época. Ela recebeu o primeiro diagnóstico aos 17, quando começou a ter crises convulsivas e perda de consciência. Em uma consulta com um gastroenterologista, foi encaminhada para uma neurologista. Ali, descobriu a epilepsia, uma doença caracterizada por crises epilépticas em intervalos diversos, causadas por uma descarga anormal de neurônios. Depois de muitas consultas médicas,  foi possível identificar que os sintomas que sentia desde criança - mal estar, medo súbito, sensações de déjà vu, enxaqueca, seguidos de sono intenso - eram crises epilépticas parciais complexas. “O foco da epilepsia [de Ester] está no lobo temporal [do cérebro], justamente a parte da emoção do medo, do sono, essa é uma das características”, conta.

Um ano após receber o diagnóstico, Ester ingressou naUniversidade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes - SP para cursar psicologia. Na graduação estudou a epilepsia, se apaixonou pelo funcionamento do cérebro e decidiu seguir a carreira de neuropsicóloga, especializou-se pela Divisão de Psicologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP - HC-FMUSP.  Na manhã em que foi fazer sua matrícula em uma segunda especialização,  em fevereiro de 2013, sentiu alguns dos primeiros sinais da EM. Naquele dia acordou com pressa, levantou da cama e seu corpo foi imediatamente impulsionado para trás. Tentou se levantar, mas não conseguiu andar em linha reta. Se escorando pelos corredores da casa, saiu e pegou o ônibus rumo ao Hospital das Clínicas, onde faria sua inscrição. “A palavra para descrever é bêbada, parecia que eu estava embriagada no ônibus. Eu pensava, será que é uma crise epilética? Mas eu sabia que não era epilepsia porque não tinha alteração da consciência. Acho que foi tontura, eu acordei rápido demais, eu falava”. Depois de um tempo descansando, os sintomas passaram e conseguiu fazer a matrícula.

Três anos depois, em 2016, foi acordada pelo som do interfone tocando. “Era da lavanderia do prédio, para eu pegar as roupas limpas que eles colocaram no elevador. Quando eu saio para buscar, começa aquele evento de novo. Eu vou direto para trás, parece que tem um imã”. Conseguiu atravessar o corredor, mas enquanto aguardava o elevador chegar, teve um desmaio. “Acordei no chão, fiquei pensando, acho que tive uma crise”. A última crise de Ester havia sido em 2003, há mais de 10 anos. Por isso, estranhou e alertou sua neurologista do episódio, mas não teve nenhuma resposta. "Ela falou que agora não tinha o que fazer, só tomar um medicamento para dor de cabeça”.

Tempo depois, em 12 de outubro de 2016, deu entrada no Hospital de Olhos em São Paulo por um borrão na vista que não desaparecia desde a noite anterior. O resultado dos exames mostrava que  estava com 96% da visão comprometida no olho em que via o borrão, mas não havia nada na retina que pudesse estar causando a dificuldade de enxergar. Com o exame de fundo de olho, a médica pode identificar um edema de papila, ou seja, uma infecção no nervo óptico. “Antes eu estava pensando que era descolamento de retina, algo assim. Dali, eu falo para o meu marido: é neurológico". Na época, trabalhava no Hospital das Clínicas da USP e buscou aconselhamento de uma médica de confiança, colega de trabalho. “Ester, você com 29 anos, acordar de noite para o dia com edema de papila, não dá para esperar. Vá para um hospital para o pronto-socorro que tenha um neurologista”.

No Hospital Paulistano, passou por uma triagem e a médica informou que precisaria interná-la para investigar a causa da inflamação. Enquanto fazia exames para descartar possíveis doenças, fez pulsoterapia e sentiu que a visão começou a voltar. O resultado do líquor saiu após ter recebido alta e, com ele, foi possível confirmar o diagnóstico. Em 6 de novembro de 2016, iniciou o tratamento para EM.“Eu já tinha tido essa experiência antes, eu vi como eram os sintomas dos pacientes, o meu primeiro estágio foi em uma ONG de esclerose múltipla. Essa é a ironia do destino”.

Hoje, Ester é sócia e fundadora da grupo Baobá de Neuropsicologia, em São Paulo. Sobre os atravessamentos e intersecções que vive, afirma: “quando eu falo, não vou ficar escolhendo, agora falo enquanto psicóloga, agora eu falo enquanto mulher preta, agora como alguém que tem epilepsia, ou esclerose. Eu preciso estar em um espaço que eu possa estar como tudo que eu sou”.

Ao contrário de Ester, Sérgio Rosário, que lidava com a EM há 24 anos, passou por um novo processo de diagnóstico em 2020. “Fruto de 32 anos de fumo, câncer de pulmão”. Assim que descobriu a doença, iniciou um tratamento oncológico que durou cinco meses e passou por uma lobectomia, cirurgia de retirada total dos lobos do pulmão. Com os tratamentos o câncer regrediu, mas em julho de 2022, retornou. Agora, Sérgio segue fazendo quimioterapia e imunoterapia. “Vou ter que encarar. Não tem jeito, tem que fazer o tratamento”.

Para poder tratar o câncer de pulmão, ele interrompeu a medicação para EM. Junto de seu médico, consideraram que essa opção seria a mais eficaz para equilibrar os impactos das doenças e os efeitos colaterais dos tratamentos, de maneira mais confortável. A escolha se baseou na idade e na estabilidade do caso, que indicavam menores chances de incidências de surtos. Como o remédio que tomava era da primeira linha de tratamento, a inibição das possibilidades de surto se reduzem para cerca de 30%. Para Sérgio, o esforço de aplicar as injeções três vezes na semana era pior. “Isso tudo tem que ser monitorado e com anuência do médico. Estamos bem no meio dessa experiência, por enquanto, tudo seguindo legal”.

GIF com a frase "A esclerose múltipla não é" fixada que vai trocando as palavras para "contagiosa", "hereditária" e "fatal"
A capa do intertítulo conta com o nome da retranca em seu centro. O título é: "O sintoma é do paciente, mas a doença é da família inteira".  A imagem possui um plano de fundo laranja claro, com efeito "manchado" suave. Acima, quatro mãos tocam-se em paralelo. À esquerda, estão uma ilustração de mão azul, com um contorno preto assimétrico ao seu redor, indo no sentindo do centro da imagem, apontando para baixo e se encontrando com um braço realístico vermelho, com efeito "fotocópia", com os dedos curvados de forma suave, sendo tocados pela mão azul. À esquerda, uma braço vermelho no mesmo estilo de ilustração que o azul, com um contorno preto assimétrico, saindo do canto direito inferior da imagem, indo no sentido do conto superior direito e tocando os dedos em um braço realístico roxo, com efeito "fotocópia", está virado para cima, saindo do canto esquerdo da imagem e estendendo-se até o centro. No centro da imagem, aspas em cima e embaixo, com a citação "O sintoma é do paciente, mas a doença é da família inteira", em branco e caixa alta, entre elas.

Além do tratamento especializado, uma rede de apoio que ofereça acolhimento é indispensável para a qualidade de vida dos pacientes. A família é, muitas vezes, quem presta apoio e auxilia com cuidados. Uma base familiar presente e participativa pode influenciar a relação do paciente com a doença, com o tratamento e até mesmo nos casos de hospitalização. Em casa, Ester pôde contar com o marido e a mãe desde que teve o diagnóstico. A família ajudou nos cuidados com os sintomas e prestou apoio psicológico e financeiro. “Muitas vezes, você está despreparado financeiramente e emocionalmente. Para mim foi difícil, eu falei: ‘Tô me sentindo com 17 anos de novo, quando eu tive o diagnóstico de epilepsia’. Eu com 30 anos, tendo que ligar para os meus pais para pedir apoio e dedicação deles. Chorei muito quando recebi a notícia, não pelo diagnóstico, mas pela fragilidade material”. Apesar das dificuldades, a família foi capaz de confortar Ester e ajudá-la a atravessar os impactos da doença, “meu marido falou: ‘Amor, o importante é que tem solução, conseguiu pagar a consulta e você vai se reerguer’”.

Para Michelle Chiarello, de 42 anos, apoiar-se na família também foi difícil no início. Aos 35 anos, consultou o oftalmologista com uma queixa de visão dupla, um dos sintomas mais recorrentes da EM e, após o exame e a avaliação, o médico anunciou que seus olhos estavam perfeitamente saudáveis. A inflamação atingia o nervo óptico. Algumas semanas depois de realizar a ressonância magnética, recebeu o diagnóstico de EM.

Sua maior preocupação era seus filhos, Matheus e Caio, que na época tinham nove e 12 anos. Os sintomas que afetavam a visão eram os que geravam maior temor, tinha medo de deixar de enxergar por completo. “Eu quero ver meus filhos crescerem”, afirma ao relembrar os pensamentos que pairavam em sua mente ao enfrentar a cegueira parcial no olho direito. Sem querer impactar a vida dos meninos e atravessando um divórcio, costumava esconder a fadiga e as dificuldades do tratamento. Foram anos guardando a doença para si.

Com o tempo, entre sessões de terapia e conversas com amigos que também têm a doença, foi aprendendo a lidar com a esclerose e a dividir sua realidade com seus familiares. Conforme os filhos foram crescendo, Michelle  passou a dividir os obstáculos e alegrias com Matheus, de 17 anos, e Caio, de 14. “Você sabe da doença da mãe, né? Hoje a mãe não tá bem, não. Vai precisar mudar a medicação, ou a doença evoluiu, mas nada para você se preocupar. Faz parte”, avisa a eles. Como mãe e filhos, tem uma relação próxima. “Eles são meus parceiros assim. O Matheus já fez uma corrida comigo de cinco km, tem fotos da gente juntos correndo, ele sempre está preocupado comigo”, conta sobre o hobbie  que compartilha com o filho mais velho. Ela esclarece “o sintoma é do paciente, mas a doença é da família inteira”, um mantra que passa adiante a todos os pacientes que conhece.

Além da família,  outro espaço fundamental na construção de uma rede de apoio são as associações e organizações da sociedade civil, que oferecem um importante suporte emocional, psicológico e assistência social. Participar de uma organização permite que pessoas com EM compartilhem vivências semelhantes entre si, buscando contribuir para o apoio mútuo e gerando espaços de trocas de informações. Para Ester, dividir experiências é necessário, “quando eu começo um tratamento, um protocolo, eu quero conversar com outras pessoas que também fazem esse protocolo, como é no dia a dia e tal. Por mais que o médico seja maravilhoso, você tem dúvidas do dia a dia, essas nuances, essas dicas em rede são muito importantes”.

Após o diagnóstico, Ester buscou a  Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME), em São Paulo, uma das maiores organizações da sociedade civil de EM no país. Ali conheceu outras pessoas com experiências semelhantes, inclusive mulheres negras com EM, como a Jéssica Teixeira, de quem é amiga. “Foi um divisor. Eu fui buscar isso, a gente precisa buscar essas pessoas, porque são muitos atravesssamentos”. Com esse mesmo objetivo, Suelen Alves, junto de outras pessoas com EM que faziam tratamento na Grande Florianópolis, fundou a Associação Florianópolis e Região de Esclerose Múltipla (Aflorem), em 2004. Para ela, o convívio com pessoas que têm a mesma doença é indispensável, “quando uma pessoa tem uma doença, a primeira coisa que ela quer é encontrar alguém que tenha a mesma coisa que ela. Ela quer achar o par. E é isso que nós fazemos”. Em tom de brincadeira define a Aflorem como “aquele grupo do chá, sabe? Que faz encontros”, Da inauguração em 2004 até o começo da pandemia do COVID-19, promoveram 536 encontros entre pessoas com EM, seus familiares e amigos. Durante o período pandêmico, realizaram mais 12 reuniões virtuais.

Grupo de 16 pessoas em círculo, sentadas em cadeiras, voltadas para um palestrante que faz gestos com a mão, de frente para o grupo. Estão em uma sala com grandes janelas, balões verdes e laranjas na parede e chão de madeira.

Voluntários, participantes e familiares na roda de conversa sobre "A independência na vida de um paciente com esclerose múltipla" organizada pela Aflorem, no dia 29 de outubro de 2022. | Imagem acervo Aflorem

Voluntários, participantes e familiares na roda de conversa sobre "A independência na vida de um paciente com esclerose múltipla" organizada pela Aflorem, no dia 29 de outubro de 2022. | Imagem acervo Aflorem

Um dos membros do grupo que fez parte da fundação da Aflorem, Sérgio Rosário continua frequentando os grupos até hoje. Ele conta que sentia admiração ao ver as famílias presentes, acompanhando os encontros da associação. “A família é o porto seguro. Quando fui diagnosticado, eu tinha dois filhos pequenos e estava nascendo minha caçula. Então, meus filhos participaram, mas não muito. Acompanharam, mas não foi aquele suporte, né? Eu ia para reunião sozinho”.

Michelle faz parte da história recente da Aflorem. Ela é a atual presidente da associação pela qual foi acolhida e, agora, dá continuidade ao trabalho, ajudando no apoio e orientação de outras pessoas.  Em 2015, ao mudar-se de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, para a capital catarinense, continuou  seu tratamento no centro de Ambulatórios de Neuroimunologia e Esclerose Múltipla do HU-UFSC, sob os cuidados do Dr. Adaucto Jr. Ali, conversando com a equipe médica, teve seu primeiro contato com a associação. Foi assim que conheceu Suelen, que faz questão de enaltecer o espírito alegre e otimista de Michelle, “precisamos de você aqui conosco, você é inspiração!”. Hoje as amigas são parte da rede de apoio uma da outra e lutam juntas para fortalecer a Aflorem.

O trabalho realizado nas associações e organizações da sociedade civil é mais do que apenas acolhedor, também une as pessoas na luta pelos seus direitos. Para muitos pacientes com EM, o auxílio dessas instituições pode significar o acesso à saúde. Ester, que atuou como neuropsicóloga no Grupo Alto Tietê de Esclerose Múltipla - (GATEM), ONG que atende, em maioria, pessoas economicamente vulneráveis, conta que muitos dos pacientes precisavam da organização para seguir seus tratamentos da forma adequada, “a ONG concentrava as pessoas que pegam medicamentos de alto custo, que às vezes precisam armazenar na geladeira e deixavam na da associação. As pessoas iam para ter acesso à fisioterapia, ou psicologia. Algumas iam ter alguém para aplicar a injeção da medicação, porque não queriam fazer sozinhas”.

 As organizações são espaços de reconhecimento dos direitos e das políticas públicas, dão visibilidade à luta e promovem a conscientização. Cumprem um papel fundamental ao ajudar a encurtar o caminho para reconhecer os sintomas, informar os pacientes quanto aos exames, profissionais e acesso aos medicamentos e tratamentos. “Não basta apenas acolher esse paciente. E se ele perguntar, onde eu faço fisioterapia? Estou depressivo, preciso de um psicólogo. A gente precisa saber direcionar, orientar e escutar de fato”, reforça Suelen.

Online, as associações e organizações civis também prestam um serviço importante ao compartilhar informações e manter grupos de apoio virtuais. As páginas e perfis contam com um grande número de seguidores. A AME, por exemplo, tem cerca de 20 mil seguidores só no Instagram. Os grupos privados em aplicativos como Whatsapp e Telegram chegam a reunir mais de 2 mil pessoas. No Facebook, reúnem de 500 até 10 mil pessoas com EM e suas redes de apoio. Ao utilizar a internet como ferramenta para aproximar e unir uma comunidade, encontram um espaço para fortalecer as lutas e traçar um objetivo coletivo: levar informações mais longe e empoderar pessoas com EM.  A comunidade online criada em torno da EM tem um papel importante na conscientização. Para Jéssica Teixeira “existe um compromisso social e político, eu acredito que [a internet] é um dos lugares de transformação.”

A capa do intertítulo conta com o nome da retranca em seu centro. O título é: "Sou uma pessoa múltipla".  A imagem possui um plano de fundo laranja claro, com efeito "manchado" suave. Três linhas azuis se entrelaçam no fundo. No centro da imagem, está uma sobreposição de quatro cabeças de perfil, duas olhando para esquerda, em tons de amarelo e azul, respectivamente, e duas para a direita, em azul e vermelho, respectivamente. As cabeças são preenchidas por um mosaico. Acima da ilustração, aspas acima e abaixo da citação "Sou uma pessoa múltipla", em fonte branca e caixa alta.

Ivan Baron, conhecido como Influenciador da Inclusão, caracteriza o capacitismo de três formas: social, recreativo e médico. Para Caroline Barbosa, advogada em Políticas de Diversidade e Inclusão, todas elas se encaixam no contexto dos preconceitos que sofrem as pessoas com EM. O capacitismo social está relacionado com a falta de informação, a mídia tem parte na construção de um imaginário capacitista quando se trata da esclerose, “ela traz a imagem do esclerosado, uma pessoa idosa, esquecida”. A repercussão desses estigmas reflete no que a sociedade entende por uma pessoa com EM. Caroline pontua que para combater essa forma de capacitismo é preciso conscientizar do que é a vivência com EM, ressaltando que “essas pessoas existem, estão seguindo suas vidas normalmente e está funcionando".

Quanto ao capacitismo recreativo, é uma forma de naturalizar o preconceito, através de piadas, brincadeiras e comentários informais no dia a dia. Caroline afirma que esse tipo de comportamento frente a doença é extremamente prejudicial, “quando alguém diz: ‘Ah, seu esclerosado!’, em tom de brincadeira, por exemplo. Isso diminui nossa existência e nossa vida”. Como a EM pode ser silenciosa e não enxergada com facilidade, Caroline acredita que o caminho para impedir que o preconceito se propague está na conscientização da EM, tornando natural a convivência com pessoas diversas. O próprio termo “esclerosado(a)” tem passado por um processo de ressignificação por algumas pessoas que retomaram a palavra e usam em um contexto de identidade e posicionamento político. Para Ester Horta, “é muito diferente de quando alguém vai falar de uma forma pejorativa, essa ressignificação vem depois de você ser taxado. E aí, você toma o termo para não ser mais o outro a te nomear assim. Vão construindo um ativismo para retomar esse espaço, trazendo essa problematização e a história da onde veio”. Jéssica Teixeira, adotou o termo para o seu vocabulário e se descreve como: “Uma jovem negra, periférica, estudante universitária. Eu costumo dizer que eu sou esclerosada. Sou uma pessoa múltipla”.

O capacitismo médico pode ser a primeira forma de violência que alguém com EM sofre, “não só não porque o médico está desatualizado, como por não ter uma noção de um saber médico biopsicossocial”, argumenta Caroline. Quando um médico age de forma capacitista, os pacientes tendem a confiar e acreditar no que está sendo argumentado, afinal ele é o profissional. “Ali ele destrói as primeiras esperanças da pessoa. Ela já sabe que vai mudar a vida dela, não precisa falar de uma forma que desencoraje”. A advogada cita que frases como “provavelmente você vai perder seu trabalho”, são comumente relatadas após receber o diagnóstico de EM.

A argumentação dos profissionais, somada à falta de apoio no mercado de trabalho, e as informações equivocadas e capacitistas, pode ter um impacto significativo na vida profissional dos pacientes. Segundo a pesquisa Situação de empregabilidade em pessoas com esclerose múltipla no Brasil, realizada pela Escola de Medicina na USP, em 2018, 40% das pessoas com EM não estão empregadas, ainda que 94% delas tenham tido pelo menos uma ocupação remunerada ao longo da vida.

A aposentadoria por incapacidade permanente é um direito garantido aos segurados do INSS e servidores públicos incapacitados de forma total e permanente para o trabalho. É o caso de Sérgio, repórter fotográfico, Michelle, fonoaudióloga, e Suelen, bancária, que passaram pela aposentadoria após descobrir a EM. "Uma das primeiras informações que nos entregam é essa: você pode se aposentar, mas às vezes a gente não quer. Existe até uma certa imposição dessa aposentadoria, que é problema quando é feita sem informação, pode prejudicar a pessoa. Pode significar o silenciamento de alguém”, relata Caroline.

Na maioria dos casos, a EM se manifesta durante o período de idade produtiva, afetando as dinâmicas de trabalho. Os surtos, as possíveis sequelas e os sintomas invisíveis podem impactar a rotina que era vivida antes do desencadeamento da doença. Isso não significa dizer que não é possível trabalhar com EM, mas que é necessário haver a compreensão dos empregadores e dos colegas de trabalho frente a flexibilizações e adaptações que precisam ser feitas, e políticas que amparem e assegurem o trabalhador neste sentido.  De acordo com o Global Employment Report, divulgado em 2016 pela Federação Internacional de Esclerose Múltipla, as três principais causas externas que motivam pessoas com EM a saírem do mercado de trabalho são: carga de trabalho imprevisível, falta de tempo quando necessário e falta de apoio dos colegas.

Fernanda, mesmo atuando como fisioterapeuta, não trabalha a mesma carga horária de antigamente. Foram anos sustentando uma rotina pesada de atendimentos na clínica da qual é sócia, mas desde o início de 2022, reduziu sua jornada de oito horas de trabalho para dois ou três atendimentos por dia. “O difícil não é atender, é manter a rotina. Eu posso atender oito pacientes em um dia, mas se colocar na minha semana oito pacientes, todos os dias, vai ter um dia que eu vou falhar. Eu não consigo manter constância e rotina, nem em casa, nem no trabalho. Tem horas que você não consegue. Isso é a fadiga”. Chegou a passar um período afastada do trabalho, mas sentiu falta. “Eu respeito a minha doença, mas não vivo ela. Voltei a trabalhar, faço futebol, futevôlei, crossfit, claro que eu sinto pequenas diferenças, mas sei que a atividade física me ajudou muito”.

De acordo com a Associação de Esclerose Múltipla da América, quase 80% das pessoas com EM sentem cansaço e exaustão extremos, conhecidos como fadiga, em algum momento. Para Fernanda, viver com a fadiga é uma das partes mais complexas. “Eu acho que a parte mais difícil é ficar sozinha. O medo de acontecer alguma coisa e você não dar conta é muito grande. Quando você está fadigado você não quer fazer nada. Não consegue lavar a louça, buscar filha no colégio, não quer dirigir. Me dava crise de ansiedade toda vez que eu precisava fazer algo e estava fadigada. Aí eu fui entender a limitação da doença”. Julgada como preguiça ou exagero, a fadiga é um dos sintomas invisíveis que podem ser incompreendidos no ambiente ocupacional. Segundo Caroline, quem não consegue encontrar o diálogo inclusivo no trabalho, provavelmente vai acabar saindo do mercado, “porque é considerado preguiçoso ou que só junta atestado ou que tem algum problema, né? Não conseguem compreender. Também é um peso verbalizar a sua doença, você já chega com o todo preconceito, todos sabendo que você tem, mas te dá uma certa uma certa segurança de gerir o seu tempo e as suas atividades”.

Manter a capacidade produtiva com EM é plenamente possível. Com exceção do Dr. Adaucto Jr, médico neurologista, todas as pessoas citadas nesta reportagem compartilham o diagnóstico de EM , incluindo Beatriz Gianicchi, Caroline Barbosa e Wellington Oliveira, que contribuíram com seus conhecimentos profissionais. Assim como Ester Horta e Fernanda Rougemont, cujas histórias foram contadas aqui, são pessoas que trouxeram sua vivência com a doença para agregar às suas profissões. Apesar de ser catalogada como uma doença rara, as pessoas com EM estão em todos os lugares, têm diversas idades, raças e classes sociais, têm profissões das mais variadas e exercem todo tipo de função. A questão é que muitas das pessoas que interagem com estes profissionais podem não saber que estão diante de alguém com EM, pelos sintomas flutuantes e invisíveis da doença.

Caroline pontua a imprevisibilidade da doença, “todos os dias temos que fazer um check-up do corpo: o olho está enxergando, tá mexendo isso aqui, tá mexendo as pernas”. Um ambiente de trabalho flexível e com autonomia pode significar a diferença entre exercer seu emprego e a saída do mercado de trabalho, entrando em uma aposentadoria por invalidez. A advogada aconselha: “se você acha que consegue verbalizar sua esclerose no trabalho, faça. Os seus colegas vão te ajudar, vai ser mais fácil, vão entender suas necessidades, por exemplo, trocar de horário, ter uma flexibilidade”.

Aposentadas ou não, existe muita vida após o diagnóstico. Muitas pessoas passam por processos de ressignificar seu tempo e estabelecer novos tipos de rotinas. Para Sérgio, houve um longo período de luto após receber o diagnóstico, que desencadeou uma depressão. Foram cerca de 12 anos amadurecendo e lidando psicologicamente com a doença, buscando superar o luto pela perda da saúde “perfeita”. Nesse período, surgiram novos interesses e reacenderam-se antigos, Sérgio dedicou-se à escrita e aos estudos, publicou livros de poemas e sobre teologia, aprendeu informática, ciência da computação e, hoje, explora ainda mais a grande paixão que divide com a esposa: a pesca esportiva. “Embora tenha o corpo debilitado, eu faço umas pescarias que poucas pessoas conseguem”, conta com orgulho das pescas embarcadas e com farol de milha que fazem nas praias do Sul da Ilha de Santa Catarina. São horas caminhando durante a madrugada em busca de camarões e outros frutos do mar, com auxílio de cães pescadores.

Voluntária da Aflorem, Suelen destina parte do seu tempo para fortalecer as reivindicações das pessoas com EM. Desde 2018, trabalha para profissionalizar a associação. Mais do que organizar a estrutura e colocar a burocracia em dia, ela percebeu a necessidade de marcar presença online, um espaço onde poderiam dar visibilidade à luta e levar conscientização a mais pessoas. Sempre escolheu se colocar à frente e dividir sua história com quem pudesse se identificar. Em 2009, foi convidada para contar seu relato na Telenovela Páginas da Vida, veiculada às 21hs na Rede Globo, e pôde compartilhar sua vivência nacionalmente.

Suelen não foi a única que notou a importância das mídias como canal para veicular necessidades, informações e batalhas travadas na vivência com EM. Além da dedicação ao trabalho, aos hobbies e a vida pessoal, quase todos os protagonistas desta reportagem utilizam o espaço digital para compartilhar suas experiências e lutas com aqueles que têm a mesma doença. Seja com produção de conteúdo no Instagram pessoal, como Ester e Michelle fazem em suas contas, ou como Jéssica, que escreve em blogs hospedados no site da Amigos Múltiplos pela Esclerose - AME.

Michelle, que viaja, palestra e articula ações representando a Aflorem como presidente, também tem uma relação de entusiasmo com o esporte. Em 2021, deu um novo passo em seu hobbie, participou da São Silvestre, uma corrida de rua internacional realizada anualmente em São Paulo. Os 15 quilômetros corridos a fizeram refletir sobre o capacitismo que sofreu, “médicos já me falaram que era melhor eu me aposentar mesmo, porque daqui para frente a minha doença só ia piorar”. Hoje, vê suas habilidades como um incentivo à autoestima. Mãe, corredora e presidente da Aflorem, não se resume a nenhuma dessas atividades e costuma dizer que “a esclerose múltipla é uma página, não o livro inteiro”.

GIF com fundo preto, ao centro uma imagem realística de um livro aberto, virado para cima, com luz e brilho laranja saindo dele, mudando de formato a cada frame. A citação "a esclerose múltipla é uma página, não o livro inteiro", em caixa alta e bege, está centralizada na parte inferior da imagem.
A imagem possui diversas silhuetas de cabeças e rostos, em tons de laranja e azul, se sobrepondo, encarando diferentes direções e sentidos. O mesmo um plano de fundo utilizado na capa da reportagem.