Laços de Família

A presença polêmica da Constelação Familiar nas instituições públicas brasileiras

Quando a gente cruza as pernas, a gente se fecha. Com uma postura aberta, até dá pra relaxar mais. Então, vamos começar? Me diz, Sandra*, qual é a sua questão?

Agora, com as pernas descruzadas, Sandra permanece tímida em frente a um semicírculo de pessoas. Num tom de voz quase inaudível, revela ao constelador que gostaria de resolver a agressividade do filho. Com algumas perguntas básicas, ele vai obtendo mais informações sobre a situação da família da constelada.

O menino tinha um ano quando ela o adotou. Convivia com outros dois irmãos. Os pais biológicos, segundo ela, tinham envolvimento com drogas. Hoje, com 11 anos, o menino foi diagnosticado com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno opositivo desafiador (TOD) e faz tratamento com medicação. O filho vive com o pai adotivo, seu ex-marido, porque Sandra não consegue contê-lo quando ele tem crises de violência. 

— Então tá bom. Vamos olhar para isso. Escolhe uma pessoa.

– É que, sem óculos, eu não enxergo ninguém – Antes do início da sessão, Sandra foi orientada a tirar os óculos. Eles podem interferir no campo. – Vai pela intuição?

O constelador assente. Uma por uma, as pessoas escolhidas se posicionam num espaço delimitado por tapetes no centro da sala. Algumas ficam paradas, procurando seu lugar; outras mexem os braços, as pernas, se movem de um lado para o outro, se aproximam ou se afastam de quem está perto. Não se sabe o quê as compele a agir dessa maneira, quase como se fossem outras pessoas. Ao se conectar com aquele campo, eles passam a representar os membros daquela família, mesmo sem nunca tê-los conhecido. Após um tempo nessa dinâmica, o constelador vai até um dos representantes para tentar desvendar a situação.

– O que acontece com o pai biológico?

– A revolta não passa, não tá indo embora – responde o voluntário que representa o genitor do menino, cerrando os pulsos.

– E aqui, a mãe biológica?

– Eu tô muito aflita. Eu sinto que fui abusada, estuprada. Que eu não quero olhar para nada disso daqui. É um sofrimento profundo – diz a representante, curvando o corpo, como se sentisse fortes dores no ventre.

– E aqui, como está o menino?

– Com vontade de socar tudo.

– Minhas pernas estão pegando fogo – a representante da mãe biológica afirma.

A cada nova movimentação, o constelador segue indagando como cada membro do grupo se sente, observando as interações e fazendo com que repitam frases uns para os outros.

– Eu não te enfrento. Eu te deixo com as suas questões – o representante do pai adotivo imita as palavras do constelador, dirigindo-se à pessoa que ocupa o lugar do pai biológico – Do menino, eu cuido.

– Você é diferente de mim. Eu queria que você fosse agressivo como eu, e você não é. – O genitor responde, com a respiração pesada – Você não foi como eu, e eu tenho gratidão por isso.

 O processo dura cerca de quarenta minutos e objetiva compreender a origem da violência do garoto, supostamente passada de geração em geração na família paterna. Sandra, antes uma espectadora, se junta ao grupo. Ela confidencia que, na verdade, a mãe biológica de seu filho foi vítima de uma facada quando ainda estava grávida. Essa teria sido a violência sentida pela representante, esclarece o constelador. Os participantes terminam abraçados, consolando uns aos outros após momentos de choro e catarse. Quando a sessão é encerrada, cada um volta ao seu lugar no semicírculo e Sandra recoloca os óculos.

Psicoterapia para uns, pseudociência para outros. Explicar o que são as Constelações Familiares a quem não as conhece não é tarefa simples. O próprio criador, o ex-padre e terapeuta alemão Bert Hellinger, parecia se esquivar das definições. “Não estou capacitado a explicar esse fenômeno, mas ele existe e eu o utilizo”, disse a Gunthard Weber e Hunter Beaumont, coautores de seu livro A Simetria Oculta do Amor, quando indagado sobre como os representantes poderiam se expressar com sentimentos de pessoas que nunca viram na vida ao entrar no campo.

De forma simplificada, a Constelação Familiar busca perceber e revelar possíveis emaranhamentos para que o cliente consiga descobrir a origem de um problema e, assim, buscar a resolução. Segundo o método, todo indivíduo está ligado ao seu sistema familiar biológico através do campo, uma espécie de força invisível que reúne ações e sentimentos de seus ancestrais e molda o destino dos descendentes. O constelador é a figura apta a interpretar a movimentação dos representantes durante a Constelação Familiar. Para que ele faça esse trabalho sem julgamentos, é fundamental que receba a menor quantidade possível de informações sobre o constelado, a fim de que pré-conceitos não interfiram no campo.

Ainda que divida opiniões em relação a seus métodos, resultados e até mesmo validade científica, a Constelação Familiar é uma prática institucionalizada no Brasil. No Sistema Único de Saúde (SUS), foi uma das dez terapias alternativas mais recentes a serem integradas aos serviços oferecidos pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PICS), em 2018. Presente em poucos municípios, mas em todos os Estados, a Constelação também é oferecida a partir de projetos de extensão por algumas Universidades Federais do país - como, por exemplo, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A prática, que pode ser realizada em sessões individuais e coletivas, com representantes vivos ou inanimados, humanos ou não humanos, também está no Judiciário brasileiro. Na última década, a Constelação Familiar e o Direito Sistêmico – abordagem desenvolvida no Brasil para adaptar o pensamento de Bert Hellinger a todas as esferas da Justiça – foram incorporados pela maioria dos Tribunais de Justiça do país como ferramenta de conciliação e possuem comissões especializadas na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). 

Apesar de difundida por muitos países e popularizada no Brasil desde os anos 2000, são poucos os estudos científicos que se aprofundam na prática e fornecem dados concretos sobre os resultados da Constelação Familiar. O uso do dinheiro e da estrutura pública para promover uma prática controversa faz com que o tema seja frequentemente posto em pauta. Em 2022, uma sessão do Senado Federal realizada para homenagear as Constelações Familiares acabou tendo mais de nove horas de debate acalorado entre especialistas e alavancou discussões nas redes sociais. A polêmica se repetiu em março de 2023, após a divulgação de uma nota técnica do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que considerou a atividade como “incompatível com o exercício da Psicologia”.

*Nomes fictícios

Glossário

Constelador: Quem aplica ou guia a Constelação Familiar

Constelado: Cliente que protagoniza a sessão de Constelação Familiar

Campo: Espaço metafísico através do qual, segundo a Constelação Familiar, as ações e sentimentos dos antepassados influenciam seus descendentes

Emaranhamento: Consequências negativas de comportamentos que interferem no equilíbrio de uma família

Representantes: Membros da audiência que são escolhidos para simbolizar os familiares do cliente e formar a Constelação. Em sessões individuais, os representantes são objetos inanimados, como bonecos de madeira

PICs: Práticas Integrativas e Complementares em Saúde oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Imagem gerada pelo DALL-E 2.

Imagem gerada pelo DALL-E 2.

Reportagem produzida por Jullia Gouveia e Karol Bernardi como Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientação da professora Stefanie Carlan da Silveira.