Foto: Arquivo pessoal

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Por Ilana Cardial

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Lendo pelo celular, hein? Para uma melhor experiência, utilize o dispositivo na horizontal (modo paisagem). Boa leitura! 🤓

Viver em um parque de diversões é o sonho de muitas crianças. Lorena cresceu exatamente assim: revezando a cama elástica com a piscina de bolinhas, entre o barco viking e a montanha-russa. Morria de medo do brinquedo kamikaze, aquele pêndulo enorme que faz a volta de 360º. Dormia na barraca de tiro ao alvo, embaixo do balcão ou tirando pequenos cochilos na caixa de munição de rolhas de cortiça.

Lorena de Jesus compartilha o sobrenome com o Parque de Diversões do Bom Jesus, empreendimento da família. Começou a trabalhar no negócio aos 14 anos, mas desde antes já viajava pelo interior de São Paulo com a mãe e os avós. Deixavam Ribeirão Preto na sexta-feira e percorriam os 30 quilômetros até Sertãozinho (ou talvez os quase 200 até Brotas), armavam as barracas de jogos e trabalhavam até a noite de domingo. Com o parque itinerante, os finais de semana e as horas de serviço não tinham cidade definida, nem hora para acabar.

Lorena no parque de diversões da família. | Fotos: Arquivo pessoal

Lorena no parque de diversões da família. | Fotos: Arquivo pessoal

Agora as atividades de Lorena têm local e data. Ela mantém duas cópias de seu planejamento semanal: uma na escrivaninha, para si, e outra na porta do quarto, para informar a mãe e o padrasto. Passa a maior parte do dia em frente ao computador, em seu quarto em Ponta das Canas, no norte de Florianópolis, ilha catarinense. 

Cursa a graduação a distância em Publicidade e Propaganda da Uninter, faz cursos de computação gráfica e trabalha na área de marketing em uma empresa. Deu início, há alguns meses, ao seu próprio negócio, através do qual presta serviços de design. 

— O nome é Glitch. Sabe aquele chuvisco na TV? Então! Eu queria que fosse algo autêntico, e acho glitch algo muito bonito e meio aleatório. Não era pra acontecer, mas acontece, e as pessoas aproveitam pra fazer algo legal — diz ela referindo-se ao Glitch Art, movimento que transforma em arte os ruídos de cores da falha digital comum em televisores e câmeras. 

Lorena flerta com as artes visuais. Acima do quadro de cortiça com sua agenda e post-its, ficam dois nichos de madeira com tintas, cola, esmalte, pincéis e canetas. Ao lado, um quadro com a Betty Boop e o Puro Osso no meio de dezenas de outros personagens feitos com tinta nanquim. Em outra parede, acima da cama, um painel de colagens que mescla rostos estampados na Vogue com elementos surrealistas. Todas as peças produzidas por Lorena. 

Com uma organização metódica e detalhes cor-de-rosa, o quarto é seu espaço favorito na casa. “Eu acho muito minha cara: doida, virginiana e rosa!”. Normalmente, é seu lugar de sossego e tranquilidade, onde realiza suas tarefas sem “ninguém em cima”. 

Durante o isolamento social que marcou 2020, porém, o cômodo virou seu escritório e as preocupações se meteram entre as quatro paredes. A empresa em que trabalha também sofreu com os efeitos econômicos da pandemia e, como outros milhões de brasileiros, Lorena viu o salário ser cortado pela metade. 

— Eu tenho curso e faculdade pra pagar. Comprei um tênis caríssimo porque vou voltar pro esporte. E aqui em casa a situação de emprego tá instável, ninguém sabe se amanhã vai tá empregado ou não — preocupa-se Lorena. A redução anunciada em abril durou poucos meses, mas a incerteza perdura — E se eu for demitida e a gente tiver que pagar algo? A gente vai ter que pegar dinheiro emprestado, e aí tem juros, gera dívidas…

Em segundos, Lorena desenha uma série de consequências em efeito dominó. Qualquer solução que enxerga para driblar os problemas financeiros depende somente dela. Mesmo com dinheiro reservado para emergências como essa, a autocobrança cresce rápido. Ela é responsável por suas contas pessoais, mas as da casa ficam a cargo da mãe Vanessa e do padrasto Edson.


Vanessa de Jesus trabalha na área de finanças de um supermercado. Formou-se em Administração lá em Ribeirão Preto. Deixou o interior paulista quando Lorena tinha 11 anos e foi para Santa Catarina começar uma nova vida. Em Ribeirão, a imagem de Vanessa era muito atrelada à de seu pai, Paulo, então foi em busca de sua própria história. A filha ficou com os avós mais alguns meses e chegou em Florianópolis aos 12.

— Minha mãe é a pessoa com quem eu mais saio, brigo e converso. A primeira pessoa pra quem eu conto sobre garotos, brigas, séries... — “Quem é o mestre da sua vida? Se tiver dificuldade com a resposta, pensa na pessoa que mais te irrita”, ouviu Lorena esses tempos — E, cara, minha mãe é a mestra da minha vida. 

Quando enfrenta algum problema, Lorena até tenta se segurar e não contar à mãe. Sonha com o dia em que vai solucionar tudo por conta própria e dali a meses concretizar o diálogo ensaiado:

— Ah, mãe, você lembra quando aconteceu tal coisa? Eu resolvi de tal maneira 💁

— Não, você não me contou! 😮

— Ah, é? Pois é, eu resolvi sozinha! ✌️😙

Por enquanto, a conversa só fica em sonho mesmo e qualquer coisa que acontece Lorena já corre: “Vaneeessa, você não vai acreditar!” seguido de um “E aí, o que eu faço?”. 

A adolescência das duas foi completamente diferente. Lorena é caseira e está sempre tentando resolver algo, desconhece a palavra “entediada”. Vanessa, quando se via sem ter o que fazer, pegava o carro e ia com as amigas a alguma festa a dezenas de quilômetros. Foi criada com bastante independência, bem solta, como diz Lorena, e agora virou essa “mãe coruja”. 

Ainda assim, compartilham muito uma com a outra. “Lorena é a Vanessinha de bolso”, brincam os mais próximos. Juntas, adoram viajar e fazer compras. Com a dedicação ao trabalho, a falta de tempo é o maior de seus problemas — “Mas olha, ela acabou de me mandar mensagem pra gente assistir filme hoje à noite”, Lorena informa ao checar o celular. 

— Às vezes eu sou um pouco grossa e bastante rígida, mas isso também puxei dela — justifica — Minha mãe é pisciana com ascendente em câncer, só que ela parece o capeta, é muito brava. Ela reclama muito do pai dela, mas é igualzinha ao meu avô: bem casca grossa!

Quando Lorena era bebê, com a mãe Vanessa, no parque de diversões da família. | Foto: Arquivo pessoal

Lorena e Vanessa gostam de fazer compras e assistir a filmes juntas. | Foto: Arquivo pessoal

Mãe e filha em uma das viagens de carro que tanto adoram. | Foto: Arquivo pessoal

Quando Lorena era bebê, com a mãe Vanessa, no parque de diversões da família. | Foto: Arquivo pessoal

Lorena e Vanessa gostam de fazer compras e assistir a filmes juntas. | Foto: Arquivo pessoal

Mãe e filha em uma das viagens de carro que tanto adoram. | Foto: Arquivo pessoal

“Minha família é pequena, mas bem unida. A gente não é de reunião, nem grupo no WhatsApp, mas é um livro aberto”

Seu Paulo de Jesus, o avô, é gaúcho e deixou o Rio Grande do Sul aos 15 anos. A geada acabou com a plantação de sua família, o circo chegou na cidade e, de repente, Paulo caiu no mundo. Foi com o circo trabalhar. Pulou de parque em parque, atravessou cidades e estados até que, aos 19, chegou no interior de São Paulo. 

O parque de diversões foi armado em um campo de futebol, onde ele jogava bola antes do expediente. Em uma dessas manhãs, acabou conhecendo uma moça bonita, alta, que trabalhava logo ali na frente, em uma barraca de salgados. “Olha, Cida, olha aquele moreno te olhando!”, ouviu ela da amiga. Se ainda hoje Dona Maria Aparecida de Souza é vaidosa e tem grande apreço por seus cabelos grisalhos, imaginemos o cuidado com a imagem na juventude. A menina largou o então namorado e começou sua história com Paulo.

— A amiga da minha avó tava ficando com um cara do parque. Meu avô foi embora e a minha avó descobriu que tava grávida. Ele tava no Centro-Oeste. Graças a amiga que tinha contato, minha avó pegou um endereço e mandou uma carta pra avisar da gravidez. E dependia dele, não era nada fixo. Ele podia muito bem “excluir”, jogar fora a mensagem, mas começou a mandar carta e dinheiro pra minha vó. Ele só conseguiu vir pra São Paulo quatro meses depois. 

Dona Cida havia trabalhado como cozinheira e faxineira, mas, depois da barraca de salgados, passou a se dedicar ao parque. “Ela é apaixonada pelo meu avô. Tudo que ela faz se resume a ele. ‘Ah, porque o Paulo tá me ligando, o Paulo pediu isso…’”, diz Lorena. Seu Paulo teve vários chefes até a criação do Parque de Diversões do Bom Jesus, há quase meia década. Começou com uma dessas barracas em que paga-se para acertar o alvo com uma argola. Juntou dinheiro, fez negociações, adquiriu os grandes brinquedos e convidou os irmãos para trabalhar — até então, voltava para o Rio Grande só quando tinha dinheiro para dar à família. 

— Meu vô trabalhava sempre no parque. Só ia pra casa por uns dias quando tinha mudança e as coisas estavam desmontadas. Tinha festa que durava um fim de semana, mas quando ele ficava em terrenos sem festa específica, com alvará de prefeitura, era de um a três meses fora.

Apesar da distância física, seu Paulo era próximo à Lorena, com quem dividia pequenos rituais. “A gente tem uma tradição de pescar. Minha vida inteira foi isso: esperar o ano inteiro pra gente pescar”, conta a neta. Enquanto as mulheres da família ficavam papeando, Lorena e Paulo concentravam-se em pegar dois peixes cada um. Às vezes mais, quando decidiam competir. 

A pesca para Paulo era sagrada. Afastavam-se de todo o resto para as vozes não espantarem os peixes, e ficavam ali, ele e Lorena. Depois, entregavam as varas, pediam ao restaurante que preparassem a comida e se deliciavam com os frutos de sua conquista. Pelo menos uma vez por ano, quando a menina sai de Florianópolis e visita os avós em Ribeirão Preto, a ida ao pesqueiro acontece. Para a Lorena, o pesqueiro sempre foi lugar de extrema paz.

Neste ano, porém, talvez não haja pesca. Ou haja pesca, mas não seja tão grande a paz. 2020 é um ano triste, marcado pelo medo, doenças e morte. As dores e despedidas assombram as famílias de Norte a Sul do país. 

Durante a apuração desta reportagem, em agosto, seu Paulo se foi. Teve um ataque cardíaco fulminante, dizem os médicos. Morreu mesmo foi de tristeza, de ficar em casa, com o parque parado, diz a neta. 

Semanas depois, Lorena me escreveu por mensagem: “Hoje em dia já tô com o pé no chão. Sobrevivendo como posso. Até hoje a gente prefere acreditar que ele tá viajando, sabe? Que ele tá longe e logo volta. Eu não consegui nem ir ao cemitério, e provavelmente nem vou. [...] é estranho, porque ele era mais saudável do que eu kkkk [...]. Tá tudo bem, vamos dizer que ele tá fazendo mudança do parque”.

Assim como acontecia durante as viagens de Paulo, as mulheres da família devem ficar reunidas de novo. Em abril, Lorena havia dito que adoraria ter os avós perto e não se importaria se morassem todos juntos na mesma casa mais uma vez. Adora viver em Florianópolis, mas sente falta de tudo em Ribeirão. Agora, sem o marido, Dona Cida não vê mais razão para estar em São Paulo. Prepara o baú com os antigos gibis da neta e mais de sessenta anos de história para juntar-se à Lorena e Vanessa no norte da Ilha de Santa Catarina.

Lorena com os avós, seu Paulo e Dona Cida. | Fotos: Arquivo pessoal

Lorena com os avós, seu Paulo e Dona Cida. | Fotos: Arquivo pessoal

“Enquanto meu avô ficava cuidando do parque, ficavam só as mulheres em casa. A gente brincava que era a casa das sete mulheres”

Antes que Lorena fosse para Florianópolis, moravam todos juntos na casa de três andares em Ribeirão Preto: a bisavó Maria, Vó Cida, Vô Paulo, Tia Vivian, a mãe Vanessa e Lorena, além de duas cadelas. Sempre foram chegados em uma festa e não deixam passar nada em branco. “A gente fica que nem pinto no lixo!”, conta a mais nova, lembrando-se dos aniversários, viradas de ano e natais. 

Em 24 de dezembro, Dona Cida prepara a torta de abacaxi que aprendeu com Ana Maria Braga. No ano novo, assa um bolo e coloca uma moeda de cinco centavos no meio — quem a encontra tem fortuna até o próximo réveillon, reza a lenda. Nos últimos anos, quando não têm celebrado juntas as festas, Lorena até tentou imitar a receita, mas nada fica tão bom quanto nas mãos da avó. 

O avô viajava à beça, mas as mulheres ficavam juntas em casa. Uma vez por mês reuniam-se passando a Revide de mão em mão. Folheavam a revista semanal mais antiga da cidade, liam as resenhas e debatiam qual restaurante seria o próximo. Depois de muito “Esse é legal!”, “Ah, não, esse aqui a gente já foi…”, “E esse?”, “Hmmm, não sei, não....”, “E que tal esse???”, lá iam elas. 

Além dos restaurantes, a família aproveitava os bares no calor de Ribeirão. Depois de fechar o parque, nas noites em que tudo corria bem, dividiam-se entre o carro e a moto da Tia Vivian. Era uma da manhã e a família desfrutava da música ao vivo em barzinhos, sentada nas mesas e cadeiras amarelas de plástico pelas ruas. A pequena Lorena ia junto. Hoje, um de seus entretenimentos favoritos na capital catarinense é beber cerveja em algum lugar da Avenida Hercílio Luz. As mesas e cadeiras exatamente iguais às da infância. 

Para as praias, marca registrada de Florianópolis, Lorena tem um mapa no qual sinaliza as que conhece. Ela adora fazer trilhas. Foi umas duas vezes para a do Gravatá e umas quatro para a da Lagoinha do Leste. 

— Tem toda essa emoção de se preparar, acordar cedo... cedo pra caramba, porque demora umas três horas pra chegar daqui de casa. Chegar lá, se reunir no estacionamento, em que todo mundo fica se olhando, tipo “ó, gente, última chance pra desistir” — mas não desistem, e com frequência Lorena sai de casa às cinco da manhã e volta só lá pelas nove da noite, depois de ter conhecido mais uma ponta da ilha. 

Até quando não se sente bem, é alguma trilha que lhe dá conforto. Escolhe uma fácil, vai sozinha e chora, chora, chora. Quer marcar na pele a relação que tem com a natureza e planeja várias pequenas tatuagens, como uma onda do mar, uma tartaruga, o sol… A mãe e a avó detestam, enquanto a Tia Vivian quer que façam uma juntas. As duas não são muito de falar pelo telefone, mas quando estão reunidas, ficam “super grudadas”, conta a sobrinha. 

Lorena já teve muitos planos, aliás, mas todos “meio que deram errado”. Agora ela confia que “o que tem que acontecer, vai acontecer”. O foco é a vida profissional. Lorena é romântica, namorou duas vezes (e não vê a hora de uma terceira), mas não pensa muito sobre ter uma família tradicional, com marido e filhos. Adora um amor clichê e gostaria, sim, de ir a churrascos de domingo na casa da sogra, mas Lorena quer mais andar pelo mundo. Anseia por um amor que seja um companheiro, antes de qualquer outra coisa.

Por enquanto, sua companhia de aventuras é um caderno, em que registra o que encontra de belo pelos caminhos. Mal pode esperar pela hora de preencher páginas com desenhos das paisagens do Sudão e as largas avenidas da França. Se pudesse fazer um desejo hoje, pediria um imóvel na Haddock Lobo, uma das ruas de alto padrão na capital paulista, colocaria para alugar e usaria o dinheiro para ir viajar.

— Eu gostaria muito de morar fora, principalmente na Europa, na França. Falo inglês e tô aprendendo francês. Quero morar lá pra usar roupa de frio, principalmente, e porque eu sou muito apaixonada pela história e o estilo “vamos queimar carros nas ruas de Paris!”.

Lorena é feminista e aposta no poder da Educação, mas quer ser mais ativa e engajada politicamente.

— Uma das coisas que me grila na minha geração é que ela tem toda a informação pra ser melhor que a passada e tá fazendo merda. Por exemplo, eu vejo entre gente da minha idade preconceitos que não fazem sentido existir e que existem na geração dos pais, pessoas que nasceram nos anos 1970, 1960. Lá não tinha internet com a rapidez e a informação que a gente tem hoje. E por algum motivo, nesses 30 anos de evolução tecnológica, parece que tá fechando os olhos pra isso e cometendo os mesmos preconceitos dos nossos pais. (...) É como se você tivesse uma bomba no seu quarto, e você sabe que só vai explodir se você tocar nela, aí você não faz nada: ah, é só eu não tocar nela e deixar ali no canto.
“Esperava que a gente fosse mais flexível, mas vejo minha geração cometendo os mesmos erros das passadas. Já dizia Elis Regina: ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais.”

Grande fã de viagens, fez a mais longa aos oito anos. Em 2009, percorreu com a mãe os quase 1.100 quilômetros entre Ribeirão Preto e Rondonópolis, no Mato Grosso. Elas amam viagens de carro, mas dessa vez optaram pelo avião. Depois de tomar Dramin, Lorena dormiu quase a viagem toda até a cidade onde encontrou seu pai. 

— Eu me arrependi pra caramba, porque ele não deu bola pra mim. A gente ficou na casa da irmã dele e ele não apareceu. Apareceu, na verdade, pra me levar um remédio pra rinite atacada e sumiu — Ela não o via desde os três ou quatro anos de idade. 

Depois, o pai tentou contato por telefone e Facebook, mas Lorena não queria mais saber. A única coisa que guarda dele é um par de brincos que ganhou no primeiro ano de vida. Quando a menina tinha três anos, ele a “esqueceu” com uma prima em um campo de futebol — encontraram um papel com o telefone da Vanessa na bolsinha da filha. Agora, quem resolveu esquecê-lo foi Lorena.

— Então, ele não é muito relevante, sabe? — E Lorena é bem seletiva quando se trata de pessoas que permite serem relevantes para ela. 

Escolhe a dedo porque acompanha de perto quem considera importante em sua vida. Quando pergunto do que se orgulha, Lorena desvia o olhar para baixo e mexe no cabelo: quando olha para dentro, não vê motivo de orgulho. “Orgulho pra mim é uma coisa muito forte”, explica ela, mas não mede palavras para contar de como se orgulha de sua mãe, sua família e seus amigos. 

A mãe, Vanessa, até cutuca Lorena reforçando que ela tem muito potencial e não deve desperdiçá-lo, mas a cobrança parte mesmo da própria menina. Mora com a mãe, mas é responsável por sua educação e outras despesas. Como aquela vez em julho de 2019, em que precisou extrair os sisos e pagou os 700 reais sozinha.

— O boleto caro pra caramba tava no meu nome. Eu fiz uma cirurgia e eu mesma paguei! — nesse dia Lorena sentiu-se adulta como nunca antes — Minha mãe não pôde ir comigo, então foi muito rocha eu ir sozinha. Voltei de lá dopadassa, sangrando e de ônibus. Na segunda vez, chamei um amigo pra ir comigo. E isso também é muito adulto: chamar um amigo e não seus pais!

O sentir-se adulta não quer dizer que Lorena se considere uma. Nega para si mesma e para todos os demais, não sabe se por medo ou porque ainda não alcançou “esse nível”. 

— Uma pessoa adulta é uma pessoa que não tem tempo pra si própria, é quem vive pelos outros, pela família, pelo trabalho. Uma pessoa que não olha mais pra dentro. Não que isso seja ruim. Se eu trabalhasse na Disney, eu seria uma pessoa adulta com orgulho!

Uma vez que Lorena se disser adulta não tem volta. Segue sem pressa, enquanto aproveita o acordo silencioso estabelecido entre a sociedade e quem tem 18 anos.

— É a idade de você fazer merda, de se descobrir. Não tem diferença de quando você tem 17 anos e 11 meses ou 19 anos e 1 mês, mas as pessoas te permitem fazer mais coisas e você também se permite. É um acordo silencioso da sociedade.

“Sabe a música do Rappa? ‘Não me deixe sentar na poltrona no dia de domingo’. Dezoito anos é sobre não ficar parado, sabe? Muita coisa acontece”

Maquiagem artística é um dos interesses de Lorena. Na foto, a gatinha é a Lily Allen. | Fotos: Arquivo pessoal

Maquiagem artística é um dos interesses de Lorena. Na foto, a gatinha é a Lily Allen. | Fotos: Arquivo pessoal

Depois de pensar alguns minutos como comemorou a maioridade, Lorena arregala os olhos e começa a rir: “Foi uma confusão!”. Ela e Vanessa acordaram às cinco da manhã, já atrasadas naquele 26 de setembro. O voo para Brasília saía às cinco e quinze. Juram que ouviram o avião passando por cima da casa, onde choravam e se desesperavam por perder a passagem — “É cara pra caramba!”. Depois do desespero, mãe e filha entraram no carro e correram para o Hercílio Luz, antigo aeroporto de Florianópolis. 

— Minha mãe inventou uma história pro cara da bilheteria. Eu tenho asma e ela começou a falar que eu tinha passado mal e mostrou meu remédio. Aí apareceu na tela “voo para Brasília em 45 minutos”. Faltando 15 minutos, o atendente veio nos chamar e dizer que conseguiram fazer a transferência. E eu fazendo tudo pra fingir que tava passando muito mal. “Lorena, faz cara de pálida” — termina imitando a voz da mãe. Quando finalmente estavam no céu, fizeram a festa. 

Tiveram uma escala no Rio de Janeiro e, quando no Distrito Federal, atravessaram a cidade até o apartamento alugado. Lorena arrumou-se correndo e percorreu oito quadras em passos velozes (“de saltinho!”, destaca) até o Brasília Shopping. Finalmente, chegou ao evento anual de moda da Vogue no país. O aniversário de Lorena é em 8 de setembro, mas a viagem aconteceu no fim do mês para que conseguisse participar do Vogue Fashion’s Night Out. 

A moda é um dos interesses de Lorena. Ela já esboçou alguns modelitos, criou painéis de referência e aos poucos monta seu portfólio. Nunca trabalhou na área, mas adoraria se aventurar pelas ilustrações ou marketing de moda. Seguidora da francesa Caroline de Maigret, no guarda-roupa, ela mescla o estiloso com o confortável. Os looks dependem do dia, lugar e humor, mas uma jaqueta jeans é sua fiel companheira

Durante uma de nossas conversas, intermediadas por telas de computador e internet durante a pandemia, Lorena vestia uma camiseta verde militar de mangas curtas e usava um chapéu bucket em tie dye rosa e azul neon sobre o tecido branco. Atrás dela, a gata empoleirada no batente da janela. As cores da “siamês de rua” destacavam-se na madeira branca contra a parede também branca. 

— Essa daqui vai fazer cinco anos — Lorena diz enquanto olha para sua imagem na tela e aponta para a gata Lily Allen — A outra tá jogada na cama dormindo aqui do lado, tem uns oito meses. O nome é Lúcifer. A Luci tem pelo preto e marrom, quase da cor do meu cabelo — Lorena tinge os cabelos desde os 12 anos. Sustentou o cor-de-rosa, vermelho, azul, preto… No momento, as madeixas são castanhas com um toque alaranjado.

Para celebrar seus 18 anos, Lorena viajou à Brasília e participou do evento de moda anual da Vogue. | Fotos: Arquivo pessoal

Para celebrar seus 18 anos, Lorena viajou à Brasília e participou do evento de moda anual da Vogue. | Fotos: Arquivo pessoal

Na última entrevista, o inverno se aproximava. Lorena vestia uma jaqueta de moletom no estilo daquelas de beisebol, com mangas compridas brancas e o restante em preto. Como mora perto da praia, também usou calças e meias que não apareceram nas videochamadas. Curte o street style e abusa de bonés e acessórios da Nike. 

Durante o semestre em que estudou Design de Jogos, não se deu bem com ninguém na sala. Por conta das roupas, alegavam que ela era “rolezeira demais”. Pois para ela, os colegas é que eram muito nerds. Aliás, Lorena até teve o sonho de trabalhar na Riot Games, desenvolvedora do League of Legends, mas logo passou. Agora, ainda tem conhecimento das inúmeras denúncias de sexismo na empresa. Largou a graduação de jogos e então encontrou-se na área de Comunicação.

Apesar do frio, enquanto conta os detalhes de suas histórias, Lorena visita uma Brasília quente pelas memórias. Entre avião, carro e ônibus, foi quatro vezes à cidade. A alegria começa logo na estrada, quando avista a paisagem do Cerrado. Encanta-se com a vegetação. Lorena adora a capital do país: “Até já entrei em uma discussão no Twitter por causa disso. Eu sempre fiquei na Asa Norte e é tudo lindo! É simétrico!”. 

Além disso, o parkour na cidade planejada promove outra experiência. “Lá é incrível! Aqui as ruas são tudo torta”, constata Lorena, que se aventurava na prática esportiva. O parkour é uma atividade que une corpo e cidade. Com roupas confortáveis e tênis, escadas, corrimãos e demais obstáculos urbanos viram espaços para saltos e manobras. “Meu hobby era pular muro e dar pirueta”, diz sorrindo. 

Lorena aposentou-se cedo da carreira de atleta. Teve de deixar o parkour, o contorcionismo e as aulas de circo fitness após uma lesão em 2018. Levou um tombo na escada do colégio e até hoje ouve o cóccix estalar quando se deita. “Inventaram que o Samu tinha ido na escola por causa de um tiro”, conta, referindo-se a uma página de humor local que não tem qualquer compromisso com a realidade. 

Por enquanto, ela deixa guardada a vontade de aprender a dar um backflip (mortal para trás) e contenta-se em fazer musculação e andar de patins em pistas de skate. O importante para Lorena é não ficar parada e aproveitar tudo que um corpo jovem tem a oferecer. 

— Acho que é um dos últimos anos que a gente tem um metabolismo realmente legal. Depois a dor na coluna vai vir. A gente perde muitos momentos por procrastinação, preguiça, insegurança, falta de autoestima…

Ela lembra das festas que não foi, das fotos que não publicou, dos namoradinhos que deixou de ter quando mais nova. Acreditava que circulava entre os adultos um histórico secreto que atrapalharia na faculdade ou algo assim.

— Com 15 anos, faz o que der na telha! Quer faltar na aula, com responsabilidade? Falta! Quer socar aquela guria? Soca! Ninguém ia se matar. Posta aquela foto no Instagram, mesmo que tenha gente que não goste de você e vai zuar depois. Eu devia ter feito mais o que eu queria...

Aos 18, Lorena busca seguir o próprio conselho e não falar mal da imagem no espelho. Sabe que daqui a dez anos é a aparência dessa jovem que vai desejar ter. Aproveita os acontecimentos e prepara-se para as preocupações da vida adulta. Com o fim do acordo silencioso entre ela e a sociedade, “dar um soco tem muita burocracia”.

— Se não estiver preparada, em qualquer tempestade o barco vira — atesta Lorena — Eu sou um pouco abstrata, não sei se deu pra entender tudo...

Lorena no dia a dia. | Foto: Arquivo pessoal

Lorena no dia a dia. | Foto: Arquivo pessoal

Lorena no dia a dia. | Foto: Arquivo pessoal

Lorena no dia a dia. | Foto: Arquivo pessoal

Lorena no dia a dia. | Foto: Arquivo pessoal

Lorena no dia a dia. | Foto: Arquivo pessoal