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Maria Clara é o clichê da Geração Z. Ou ao menos, diz que suas causas o são. “Vamos ser veganos e salvar o meio ambiente!”, brinca falando muito sério. Ela acredita que há o mínimo a ser feito por cada pessoa para que tenhamos um mundo com uma relação saudável entre a sociedade e o planeta. Graças ao acesso à informação e à vontade de jovens líderes, Maria confia que ainda vai ver grandes coisas acontecendo! Mas do mundo que considera ideal, sabe que ainda está bem longe.
Deixa claro desde o início que é ciente de seus privilégios sendo branca, de classe média-alta, com uma educação abrangente e de qualidade, proporcionada pela pedagogia Waldorf em uma escola particular de Florianópolis, capital de Santa Catarina. Maria sabe que quer deixar um impacto positivo no planeta — só não tem certeza ainda sobre como. “Eu vejo muito na internet pessoas da minha idade que são bastante politizadas e lideram movimentos mesmo, sabe?! E eu acho isso muito irado!”, diz ela, que por enquanto absorve de tudo um pouco e investiga o que fazer com todos os saberes que vem colecionando nesses 18 anos de idade.
Para revolucionar o mundo, detalha ela, é necessária uma reação em cadeia, a começar pela Educação. São os seres pensantes que encontram soluções — talvez por saber isso que Maria pense tanto.
Curiosa como é, descobriu que aprender também é hobby e vai pulando de um conhecimento ao outro. Na lista dos futuros aprendizados, estão: programação de computadores, andar de skate e, como boa manezinha da ilha, surfar.
Mas é pelo que já aprendeu que a primogênita dos Barretta Gonçalves Lopes se destaca, e é crítica consigo e com os outros. Para o trabalho final do Ensino Médio, estudou sobre pegada ecológica e, desde então, reduziu sua produção de lixo e tornou-se vegetariana. Aderiu ao veganismo por um tempo, mas acabou subnutrida e por enquanto não retomou o plano. Preocupa-se desde já com os filhos que quer ter só lá para os 30 anos, questionando se serão ou não de seu próprio ventre, porque Maria não esquece as mais de 30 mil crianças para adoção aqui e as outras milhares até no Iêmen, e pensa que deve ser legal engravidar, e muito sinistro dar a luz, mas lembra da crise da superpopulação mundial e todos os problemas que ela traz. São alguns dos conflitos e ponderações constantes que Maria tenta organizar dentro de si mesma.
Já está decidida que, quando mãe, vai estabelecer uma relação de humano para humano, sem a hierarquia familiar com a qual sofre hoje. Ela sustenta que lembrará que seu filho ou filha é alguém com ideias, vontades e opiniões próprias.
Debaixo dos cabelos acobreados, dá para ver o fluxo incessante de pensamentos de quem tenta encontrar respostas para questões complexas, enquanto vive em um país onde 100 milhões de pessoas não têm sequer acesso à rede de esgoto.
O colégio em que estuda não segue o modelo tradicional. A pedagogia Waldorf tem como base a filosofia antroposófica, que inclui o desenvolvimento não apenas intelectual, mas também artístico, espiritual e físico de cada criança. Maria a descreve como uma educação em que os ensinamentos a preenchem como ser humano e oferecem mais do que fórmulas para o vestibular. São vários os estímulos para os estudantes que, desde cedo, fazem tricô, jardinagem, modelagem, arte, teatro, Inglês, Espanhol, Alemão… Até forjar faca, mexer com fogo e atirar com arco e flecha Maria já atirou. “Todo mundo fala que é coisa de hippie, mas eu acho tão válido!”, opina quem foi ensinada desde pequena que há muito mais a aprender do que multiplicação e beabá.
“Quem é Maria Clara? É uma menina um pouco medrosa, mas curiosa e por isso ela faz as coisas mesmo com medo. Curiosa de tudo, de viver coisas.”
Por iniciativa própria, as causas sociais viraram objetos de estudo de Maria no tempo em que se entendeu bissexual. Ela “meio que sempre soube”, mas ficou evidente aos 13 anos, quando não viu sentido em se limitar a escolher um só gênero se gostava dos dois. Era uma menina bem triste na pré-adolescência, e não sabe até hoje exatamente o porquê. Foi nesse período que, como tantas outras, lutou consigo mesma para compreender onde se encaixava e também de que (e quem) gostava.
Por essa época, deu seu primeiro beijo. “Nossa, mas é ÓBVIO!”, bradou em silêncio quando seus lábios tocaram o de outra guria. Não demorou muito para perceber que há quem não encare com a mesma naturalidade uma relação assim entre duas mulheres.
— Vi também que eu ficando com meninas era muito sexualizado. E sabe aquele sentimento de 'isso tá errado, mas eu sei não o porquê'? Foi aí que eu comecei a ir atrás de entender — desenvolve Maria, que foi estudar sobre direitos LGBTs e, como uma coisa puxa outra, conheceu e se identificou também com as lutas feminista e anti-racista.
Maria agora enxerga o que quando pequena não via: há ignorância, há ódio e, do mesmo modo, há medo. Lembrou-se de uma conversa, quando ainda era criança, em que uma amiguinha se aproximou para lhe confidenciar a novidade:
— Sabia que eu dei um beijinho na Fulana? 🤩
— Ah é, é? 🙂
— Sim!! Mas não conta pra ninguém, tá? Porque a minha mãe vai ficar muuuito brava! 😳
— Nossa… tá bom. 👀
O acolhimento à pessoa LGBT por sua família é parte importante na garantia de seu desenvolvimento e, por vezes, garantia da própria vida. Diferente da amiga (e de muitos outros), nossa protagonista deu sorte e, nem sua mãe Anne, nem seu pai Zé ficaram bravos. No começo, é verdade que não entendiam muito bem o que é a bissexualidade, mas se esforçaram para não faltar com o respeito ou ofender a filha.
Por um lado, a filha mais velha do casal celebra o envolvimento e esforço de sua família para compreender que a opressão acontece em diferentes nuances, da violência nas ruas às piadas em casa. Por outro, lamenta pelas amigas que, enquanto suspiravam apaixonadas, fantasiando em construir uma vida com suas primeiras namoradas, sentiam-se amedrontadas por seus pais — “Cara, era muito triste, porque porra... era um primeiro amor, tá ligado? É o sonho de todo mundo que seja mágico e que você viva tudo lindo!”.
Quando nos conhecemos, Maria ficou em dúvida sobre como começar sua história (percebe-se depressa que é porque tem muito a dizer). Titubeou por um instante e decidiu me contar sobre a família: são em cinco os Barretta Gonçalves Lopes, mas é tanta a agitação naquele apartamento que parecem até dez. Ao longo das entrevistas, ouvi a voz de sua irmãzinha ao fundo, o pai a convidando para jantar, o irmão batendo ansiosamente à porta para mostrar a nova música que compôs e Maria dizendo “Tá muito bonita, mãe, acredita! Parece a Dolly Parton!... Pra onde você vai?… Traz um queijinho brie, se tiver barato?”.
Por conta da pandemia, vi apenas através de telas a menina de cachos cor de cobre, olhos verdes e pele branca — provavelmente em tons mais opacos do que ao vivo. É muito expressiva, faz biquinhos, caretas e as mãos aparecem o tempo todo querendo participar das chamadas em vídeo. A distância, conheço Maria e seus parênteses infinitos, que durariam parágrafos inteiros e a fazem esquecer constantemente porque foi que começou tal assunto.
Do bairro Itacorubi, é o quarto que lhe serve de plano de fundo. Sobre a cômoda, repousa uma releitura da capa de álbum do Frank Ocean, pintada pela própria Maria, e vasinhos de suculentas. Artista ela é há muito tempo, mas descobriu-se “mãe de planta” só na quarentena. Com a cabeça cheia, tenta deixar seu quarto o mais vazio e leve possível. É seu cômodo favorito porque ali é ela quem manda.
Eram dois apartamentos onde agora mora a família, mas quebraram uma parede e transformaram o imóvel em um só para caber toda a população dos Barreta Gonçalves Lopes: a jovem Maria, seu irmão João Pedro, a irmã Coralina, a mãe Anne, o pai José Ricardo, três gatos e algumas divindades.
Buda, Shiva, Jesus, São Jorge e Maria de Nazaré mudaram-se recentemente da sala para a varanda com a ajuda de Anne. Criada no espiritismo, Maria hoje liga a espiritualidade à física quântica e acredita sobretudo nas trocas de energia, “aquilo que você não vê e o que a Ciência também não consegue explicar direito”.
A religiosidade lhe serviu bem durante a pré-adolescência angustiante sobre a qual já conversamos. Um médium, amigo da família, deu a Maria o atestado de arcturiana: um ser que não pertence a esse mundo, “meio que alienígena”, nas palavras dela. Contente por encontrar uma justificativa para toda a estranheza que sentia, tomou a afirmação como crença e a carrega consigo desde então.
Envolto por vasos de planta, o altar com as imagens na varanda traz calmaria para a guria que se aproveita do ambiente sereno. Ali imagino Maria, ‘observadeira’, gastando o tempo como bem gosta: observando a rua, a árvore em frente ao prédio e a luz de manhãzinha que tanto adora. A varanda também tem seu coração, perdendo só mesmo para o quarto.
Aliás, voltemos a ele.

Releitura da capa do álbum 'Blond(e)', do rapper Frank Ocean, pintada por Maria. | Foto: Arquivo pessoal
Releitura da capa do álbum 'Blond(e)', do rapper Frank Ocean, pintada por Maria. | Foto: Arquivo pessoal

Releitura da capa do álbum 'Blond(e)', do rapper Frank Ocean, pintada por Maria. | Foto: Arquivo pessoal
Releitura da capa do álbum 'Blond(e)', do rapper Frank Ocean, pintada por Maria. | Foto: Arquivo pessoal
É que hoje é meu aniversário / E quando chega meu aniversário / Eu me sinto bem maior / Bem maior, bem maior, bem maior / Do que eu era antes 🎵 (confira a música)
Em mais um 14 de janeiro, Maria Clara Barretta Gonçalves Lopes foi acordada pela família com café da manhã e balões na cama. O ritual é o mesmo para todos os aniversariantes da casa — uma vez, tiveram que dar jeito de entrar com uma bicicleta no quarto do João Pedro. Lambuzam os dedos com sonhos bem recheados e se deliciam com croissants e manteiga.
No mesmo dia, Maria fez uma tattoo: um tatu com a legenda “tatu” na taturrilha. Opa, na panturrilha! Mas isso nada tem a ver com a maioridade, já que marcou a pele pela primeira vez aos 15, nas costas, e usa piercing desde os 14. À noite, foi para casa do namorado e celebraram com pizza e uma comédia-romântica adolescente.
Por conta de uma viagem, o pai dessa vez não participou da farra no dia 14. Mas logo depois, Zé, Anne e Maria saíram para jantar e beberam champanhe.

No aniversário de 18 anos, Maria fez uma tatuagem e compartilhou um bolo com a família. | Fotos: Arquivo pessoal e tatuadora Íris Palo
No aniversário de 18 anos, Maria fez uma tatuagem e compartilhou um bolo com a família. | Fotos: Arquivo pessoal e tatuadora Íris Palo
— E tu te considera adulta?, pergunto.
— MAS NEM FODENDO! — ri Maria — Mas me considero, sim, mais capaz.
Percebeu que não era adulta na mesma semana em que alcançou a maioridade. Passou horas treinando a mais nova assinatura, ansiando pelo momento de abrir uma conta corrente no banco. “Assinei o primeiro documento e foi irado! No segundo, já não ficou igual”, um tom de decepção na voz, “Acabou que percebi que minha conta era pra eu receber a mesada da minha mãe, porque nessa situação eu não consegui um emprego”.
— Sei que é minha realidade, porque tem muita gente que começou o Ensino Médio e já foi trabalhar, sustentar irmão e até filho, e talvez essas pessoas também não se sintam adultas — reflete Maria, que ainda está longe de se ver tão crescida — Minha mãe falou que pra dirigir caminhão e assinar certos contratos eu preciso ter 21 anos. Talvez aí eu me sinta adulta…
Mas Maria parece não ter pressa para atingir esse status. Ao menos não quer ser uma pessoa adulta sem graça, ranzinza, frustrada com o trabalho de todo dia, sem tempo de apreciar a vida. Esse modelo, “arquétipo do capitalismo”, é que aparece quando ela pensa em crescer. Para ela, ser adulta tem a ver com trabalhar, e trabalhar tem a ver com ser adulta — isso, claro, fazendo a ressalva sobre as mais de 2 milhões de crianças e adolescentes afetados pela exploração do trabalho infantil no país. Não por coincidência, a primeira vez que se sentiu um tanto adulta foi quando produziu, gravou, dirigiu e editou um videoclipe para a Orquidália, banda independente da capital catarinense.
Audiovisual, inclusive, é uma de suas opções para a universidade. Ao lado de Cinema, Ciências Sociais, Engenharia Mecânica, Jornalismo, Artes Visuais… Se tivesse que escolher hoje, faria Arquitetura e Urbanismo na Federal de Santa Catarina. Amanhã, Artes Liberais e Ciências do Meio Ambiente na Universidade de Tóquio, quem sabe… Ainda não entrou na primeira graduação, mas desde já visa também a segunda.
— O que eu adoraria mesmo é que, quando eu deixasse esse mundo, meu nome ficasse de modo significativo. Eu sei com certeza que quero causar uma mudança positiva — Não deseja ser atriz hollywoodiana, influenciadora digital como a Gabriela Prioli, nem uma ativista com a notoriedade online da Greta Thunberg — Eu acho bem esquisito que todo o mundo saiba meu rosto, mas acho bem legal que todo o mundo saiba meu nome.
Maria quer mesmo é ter uma base que lhe permita fazer um pouco de tudo enquanto viaja por aí, passeando pelos continentes. Sua primeira vez fora do país foi aos sete anos com a família, em um mochilão na Argentina. Foi até as Cordilheira dos Andes, quase chegando no Chile. Caminhou tanto que ficou com tendinite no pé e até hoje quando anda muito “dá uma queimação na sola”.
A última viagem foi para os EUA: em 31 de dezembro de 2018, a manezinha embarcou para seus seis meses de intercâmbio. Morou com um amigo de infância do pai, “na Palhoça de San Diego”, diz ela fazendo aspas no ar. Foi acolhida por imigrantes e constatou que o Ensino Médio norte-americano é, de fato, hostil como nos filmes. Agradece a oportunidade, reconhece o privilégio, mas confessa que seu semestre não foi lá o dos sonhos. Morar a algumas ruas da praia e ter apenas uma semana de calor pode ter tido certa influência.
As manhãs, tão queridas por Maria, também eram adoráveis em terras estadunidenses. A luz, o céu, a atmosfera única das 7h30 na costa californiana, paraíso dos surfistas, entram nos destaques do intercâmbio. Assim como aquelas três vezes em que Maria encontrou o Rob Machado (“O que aparece no ‘Tá dando onda’, tá ligado?”) na loja de departamentos da Target em Cardiff-by-the-Sea. Aprendeu sobre outras culturas, ficou amiga de uma gangster mexicana, estudou com um menino da Guatemala cuja palavra favorita em português era um palavrão — provavelmente a única que aprendeu com qualquer brasileiro — e aperfeiçoou o inglês. Mais do que isso, Maria experimentou a independência, superou o desafio que é sair para tomar café sozinha e, aos poucos, aproveitou a própria companhia.

Maria aprende aos poucos a aproveitar a própria companhia. | Foto: Arquivo pessoal
Maria aprende aos poucos a aproveitar a própria companhia. | Foto: Arquivo pessoal
Como em tantos romances por aí, foi logo antes de sua partida que nossa jovem protagonista se apaixonou — tomando a liberdade de trazer para live action partes do enredo de “Fazendo meu Filme”, da Paula Pimenta. Pela segunda vez, Maria conheceu Pedro, seu colega de classe há dez anos. Papo vai, beijo vem, e a menina reviveu o crush de infância, com quem trocava mensagens de texto aos 11 anos de idade no “tijolinho” que foi seu primeiro celular. Como toda boa história tem seu drama, alguns dias depois os dois estavam separados pelo Pacífico: ela nos EUA, ele na Nova Zelândia. Foram horas de videochamadas levando o flerte de uma ponta à outra do oceano.
De volta à Floripa, tiveram uma relação enrolada como todo relacionamento adolescente há de ser, e definiram que formavam um casal de namorados quando suas mães já pensavam que sim. Maria anda entendida do primeiro amor e adora viver uma paixão tão “frufru”. Relembra as receitas veganas que fazem e as manhãs em que Pedro lhe acompanha ao admirar a luz e os pássaros pela janela. Passam horas compartilhando ideias e os muitos pensamentos, das coisas bobas às sérias.
Pedro é o melhor amigo de Maria e Maria é a melhor amiga de Pedro, como deve ser.
— E eu gosto MUITO de tirar cochilo da tarde junto com ele. E a gente gosta também de ir na praia junto, de assistir filme... — continua — Coisas bem clichês, eu acho, claro. Ah! Saudade... — suspira.
Não mais pelo gigante oceano, desta vez o casal está separado por um minúsculo, invisível, contagioso vírus. Ficam com o coração apertadinho a dez quilômetros em vez de dez mil.
Se Maria tinha dúvidas sobre como manter a relação interessante durante o isolamento social, foi logo salva por um saber ancestral. Recebeu conselhos de uma velhinha pequena, ‘magricela’, que esbanja de uma esperteza anciã e conhecimento da tecnologia moderna ao dizer: “Vocês tão em quarentena! Têm que mandar nude pra manter a relação de pé”.
— Agora você pega essa imagem da mulher que me mandou ficar enviando nudes e imagina ela falando do relacionamento dela! — gargalha Maria ao falar de Dona Maria Zonilde, que anda rápida nas dicas. A Vó Nida reencontrou um amor antigo e também vive seu próprio romance. A sexagenária, mãe de Anne, faz umedecer os olhos de Maria, que se acaba de rir só em mencioná-la.

Os Barretta Gonçalpes Lopes com a Vó Nida. | Foto: Arquivo pessoal
Os Barretta Gonçalpes Lopes com a Vó Nida. | Foto: Arquivo pessoal
A Vó Lucinda, também muito amada, já é mais tradicional. Toma um gole de café para encerrar a conversa depois de sua neta anunciar que não daria um presente de dia dos namorados a Pedro, por julgarem a data muito comercial. Com ela, o papo se serve de uma curiosidade até então inexistente por parte de Maria sobre artesanatos e de um repentino interesse sobre como fazer fuxico e aprimorar a limpeza da casa. Aqui, a distância entre as idades é grande, e a neta vai camuflando partes de si mesma para conseguir chegar à metade do caminho:
— Às vezes é quase como se eu tivesse que criar uma realidade diferente, pra então eu e aquela pessoa falarmos a mesma língua, entende?
Pulando de geração em geração, Maria se derrete ao falar da família. Especialmente das mulheres, que sempre resolveram muita coisa sozinhas e levantaram cada vez mais fortes das várias rasteiras que levaram na vida.
Culpa a mãe por ser hoje assim tão “manteigona”, já que foi Anne quem mais lhe transmitiu os genes da amorosidade e empatia. Maria acha que nem sempre foi assim. Antes, em frente ao espelho, via as sardas no rosto de uma menina durona. “Agora é só decepção”, zomba da atual versão de si mesma, que não consegue nem cruzar os braços para fazer pose de marrenta sem se enroscar com o fone de ouvido.
Aos poucos, mãe e filha se tornaram também grandes parceiras. “Eu acho tão clichê usar essa palavra, ‘parceiras’, mas no final é isso”, dá de ombros depois de tentar ‘companheiras’ e concluir que piorou. Quando a coisa aperta, pede conselhos à mãe, às amigas e ao namorado. Mas nem sempre, porque tem coisas que Maria simplesmente não fala a outros seres humanos.
Nesse caso, recorre ao irmão, “porque ele é de outro planeta”, diz a menina-arcturiana.

Maria e sua mãe Anne, que lhe ensinou sobre amor e empatia. | Foto: Arquivo pessoal
Maria e sua mãe Anne, que lhe ensinou sobre amor e empatia. | Foto: Arquivo pessoal
Maria Clara e João Pedro têm apenas um ano de diferença, sendo ambos considerados filhos de primeira viagem. Nas memórias mais queridas da mais velha estão os sábados de manhã com cheiro de protetor solar, quando se arrumavam para ir à praia perto da antiga casa no Rio Tavares. O café da manhã ainda era só uma ‘dedeira’, como ela chama a mamadeira com leite e frutas.
Esses João e Maria têm menos casas com biscoitos e mais brigas por temperos. Os almoços de domingo são uma das atrações da família, como Brasil afora, e precisam ser feitos com cuidado e equilíbrio para se manterem divertidos. Naquele apartamento, as mãos que mexem e picam são de pessoas “muito intensas, de gênio forte”, descreve Maria. Na primeira vez que fizeram ratatouille, discutiram porque João queria triturar a cebola com a salsinha, e só depois acrescentar o sal, e então coentro, e por último cominho. Maria já não aguentava mais esperar e é firme ao dizer que, se pode otimizar o tempo batendo a cebola com o cominho, vai bater, e não tem receita que a impeça!
Apesar das horas de conversa, não consegui decifrar se o casal de irmãos é assim tão diferente ou só mais parecidos do que a primogênita gostaria de admitir. Diz que ele tem que entender que nem tudo é sobre ele ao recusar as batidas ansiosas à porta durante nossa conversa, mas logo depois desata a falar orgulhosamente sobre como é “super músico!”, está compondo uma nova canção e ela vai ajudar na gravação e a produzir o videoclipe.
A caçula da família é Coralina. Com dez anos de diferença, encontra a irmã entre desenhos, conversas e lápis de cor. Maria não sabe muito bem brincar com a pequena, mas diverte-se e acha lindo ficar assistindo. Como desde antes já gostava de ir à praia com João, agora têm também a Cora para lhes fazer companhia.
Desde 2001, quando tornou-se mãe, Anne Barretta entrou e saiu da faculdade sem conseguir concluí-la. Com a filha mais nova completando oito anos, ela está prestes a se formar em Pedagogia aos 40. Para se dedicar ao trabalho final, deixou o posto de administradora financeira no escritório do marido. José Ricardo Gonçalves Lopes, o Zé, é advogado e empresário. Maria conta dos estudos e trabalho dos pais misturando design, artes, agronegocios, investimentos, educação e advocacia — logo se vê que teve a quem puxar o vasto interesse em um pouco de tudo. Anne quer muito trabalhar com Educação, mas sua primogênita denuncia que, na alma, a mãe é artista. Era do seu próprio gosto pelas Artes, no entanto, que Maria me contava quando sua mãe bateu à porta vestida como a Dolly Parton.
Muito além de papel e telas, Maria gosta da fotografia, das artes visuais e cênicas — atuação, iluminação e produção. Quando mais nova, fez aulas de teatro, circo, violão, violino, piano, balé, dança de rua e poesia. Desistiu de muita coisa por achar que era “de menininha” ou pelo cérebro que de vez em quando fica arrogante, decide que aprendeu o suficiente e empaca. “Hoje eu acho lindo! Eu ia me achar muito chique numa ponta”, lamenta ela pela decisão do passado.
Quando criança, fez ainda aulas de natação, tênis e judô, mas os esportes não eram lá seu ponto forte. “Eu ia fazer basquete esse ano, mas o mundo resolveu acabar, daí não rolou muito”, diz nossa armadora com seus 158 centímetros de altura, “Vou cortando todo mundo, foda-se. Ninguém me segura!”.
A retomada aos esportes foi uma das últimas novidades com os amigos, também reclusos durante a pandemia. Canceladas as idas à Lagoa da Conceição e os acarajés próximo às “5 ruas”, ali no Rio Tavares, Maria não vê a hora de ir a um ‘rolê’ simples, normal, na casa da amiga Lorena, em que planejem uma bela macarronada e acabem trocando por 15 pacotes de miojo.
Com o privilégio de poder ficar em casa enquanto acontece o surto de covid-19, ela aprimora suas habilidades, aproveitando a recém-comprada mesa digitalizadora e assistindo a vídeos sobre ilustração no YouTube. Costuma desenhar um personagem careca monocromático, mas nem ela sabe o porquê. Conseguiu uns trabalhos para ilustrar e editar vídeos e fotos (não ganhou quase nada, mas ainda assim achou “bem legal”). Reveza ler Dom Casmurro para a escola com a biografia da Rita Lee por diversão.

Maria na infância e a ilustração do careca que costuma desenhar. | Fotos: Arquivo pessoal | Ilustração: Maria Clara Barretta
Maria na infância e a ilustração do careca que costuma desenhar. | Fotos: Arquivo pessoal | Ilustração: Maria Clara Barretta
Faz aulas de cursinho online e continua com o Ensino Médio no modelo remoto durante a pandemia. Com as mensalidades altas, por decisão dos pais e contra sua própria vontade, Maria trocou do colégio Waldorf para um tradicional, e vem se adequando à nova pedagogia — “É tipo quando tu trabalha com edição de vídeo e usa um software, e aí tu tem que mudar: é outro esquema de edição, ficam em outros lugares as ferramentas”, compara ela sobre o processo de adaptação para aprender a aprender.
Gasta umas boas seis horas por dia no celular e, como outras 2 bilhões de pessoas ao redor do globo, rendeu-se à febre dos vídeos de até um minuto no TikTok. Começou a assistir pelo Twitter, mas logo no primeiro dia de quarentena baixou o aplicativo.
— Eu fiquei o dia inteiro nessa merda, você não tem noção — diz Maria, que jurou de pé junto que não publicou nenhum vídeo até aquele momento — Deus me livre ser pega fazendo TikTok, cara! Mas… bom… se eu fizer de arte, na real, talvez não seja assim muito ruim.
Hoje eu sinto que cresci bastante / Hoje eu sinto que estou muito grande / Sinto mesmo que sou um gigante / Do tamanho de um elefante 🎵
Desde a ‘dedeira’ não se recorda muito bem de sua infância — são lembranças vagas, quase um borrão —, mas lembra que brincava sozinha, quase sem fazer barulho. Temia tudo e todos e não desgrudava da saia da mãe. Maria às vezes ainda é um pouco medrosa, mas é mais ainda curiosa, e faz as coisas com medo mesmo.
De vez em quando suspeita que o cérebro empacou nos 15 anos e perde o sentido dizer que tem 18. Não era como se ela ansiasse pela idade ou esperasse muita coisa, mas de repente sente que sua vida já está em outro lugar (não sabe dizer qual). E, por mais que aponte ser consciente da construção social que existe sobre atingir a maioridade, não escapa do seu simbolismo, da autoconsciência e reflexão que marcam essa nova fase.
Mais um dos “padrões de comportamentos inevitáveis”, como diria ela sobre os clichês. Perde noites em claro temendo o lugar-comum e questionando suas atitudes e as da sociedade, discutindo consigo mesma sobre o que é ser clichê?, e por que existem clichês?, e será possível ser clichê e ainda assim ser genuína? Decidiu abolir o conceito, mas foi vivendo, vivendo e quando se deu conta o “clichê” já se intrometeu de novo em seu vocabulário.
Justamente ao contrário, Maria Clara quer é ser extraordinária.
— Eu penso: qual seria o meu próximo grande passo?
Por ora, sabe a resposta: quer trabalhar e se mudar da casa dos pais assim que der. Sonhando com um mundo em que no dia 1º de janeiro de 2021 esteja erradicada a doença pandêmica, Maria reconhece desde já a dificuldade em conciliar estudo e trabalho — especialmente quando a procura por emprego é combinada com uma crise econômica. Ainda assim, imagina esse futuro próximo, palpável, no qual vive em uma casa confortável no Canto da Lagoa com seu namorado e uma amiga.
Depois disso, não sabe direito o que vem. Maria não traçou planos bem definidos e entretém-se considerando todas as opções. “Preciso experimentar as coisas!”, finca em meio a inúmeras possibilidades. Quem sabe em algum momento não vá para São Paulo, aquela amiga não lhe arranje um estágio na França ou o emprego no Uruguai? “Não tem um lugar que quero ir primeiro, eu só sei que quero ir!”
