"O CIDADÃO PASSA PELO
REMO E NÃO VÊ"
O esporte mais popular da década de 20, hoje sobrevive em Florianópolis

Silêncio. Antes mesmo da cidade acordar, das portas se abrirem, dos motores ligarem e cruzarem as pontes, os barcos já deslizam impulsionados pelos remos. Amanhece a rotina dos remadores e timoneiros na capital de Santa Catarina.
O esporte mais popular do país no início do século passado é também considerado um dos mais completos por trabalhar diversos músculos do corpo. Símbolo de potência e força física, viu seus atletas se tornarem heróis ao passo que transformou cidades e foi vítima de transformações.
Em Florianópolis resiste na figura de três clubes em Florianópolis: Riachuelo, Martinelli e Aldo Luz. As margens da correria do Centro, em baixo das pontes que ligam continente e ilha, atletas rivais dividem as águas para a prática do remo. A atividade centenária é muitas vezes esquecida e até ignorada pelos que passam à beira-mar, mas alguns juram que foi inventada antes da roda.



A origem
Mas se hoje o remo é parte figurante na bela paisagem formada entre ilha e continente, por muito tempo foi o esporte protagonista não apenas em Florianópolis, mas em todo o Brasil. A prática que por muito tempo foi símbolo de virilidade e dos ‘corpos perfeitos’, atravessou o Atlântico para chegar ao Rio de Janeiro no final do século XIX e permanece sem consenso a respeito de sua verdadeira origem, sendo apontada por pesquisadores em diversos períodos da história, em diferentes berços. Ainda assim, sua popularização e organização como esporte competitivo se iniciou ainda no Velho Continente, na França.

A popularização
As primeiras Sociedades de Regatas no país europeu datam do ano de 1853 e viriam a modificar o espaço urbano da cidade, atraindo espectadores, a atenção da imprensa e do próprio governo francês que passaria a incentivar a atividade. Tudo isso, em um contexto de revolução industrial que levou à expansão da urbanização, à modernização de metrópoles e ao aumento de sentimentos nacionalistas. Fatores que juntos, tornaram o fomento ao esporte prioridade em governos como o francês e inglês. No caso da França, o resultado ficou claro na primeira Olimpíada com participação do remo, em 1900, onde os franceses dominaram a competição levando 6 das 14 medalhas possíveis em Paris.

A chegada
Remando para o outro lado do Atlântico, o esporte se tornaria o número um do Brasil a partir de influências estrangeiras. Segundo Carina Sartori, em sua dissertação “Na Alvorada de um Sport”, foram justamente os imigrantes europeus (franceses, alemães e italianos) que organizaram os primeiros Clubes Náuticos em cidades do litoral do Brasil, como Rio de Janeiro, Porto Alegre e Florianópolis. Porém aqui, o desenvolvimento do esporte se daria sem qualquer apoio de governos municipais e federais, pelo menos até as primeiras décadas do século XX. Uma das figuras que denunciavam a falta de qualquer investimento na época era o poeta Olavo Bilac, que definia os remadores como verdadeiros heróis em suas crônicas.
Se a popularização do remo teve como pano de fundo um momento de efervescência na urbanização europeia, por aqui não foi diferente. O pesquisador Mário Farias explica em Remo versus Aterro que na cidade onde o mar era necessário para subsistência e locomoção dos locais, o remo encontrou seu lugar na elite que dominava a política da região. O esporte ajudou a consagrar a elite local enquanto se tornava fator importante na modernização do espaço urbano da Capital. Por aqui, a história do esporte acompanha e se mistura com a história da cidade.

Regatas ocorridas na década de 20 em Florianópolis. Acervo Casa da Memória
Regatas ocorridas na década de 20 em Florianópolis. Acervo Casa da Memória
Pensar no início da trajetória do remo na capital catarinense evoca uma Florianópolis que já não existe mais, pelo menos em parte. Quando ainda levava o nome de Desterro, a ilha viu a primeira organização de uma sociedade náutica na ainda província de Santa Catarina em 1861. O momento era de contato constante com os portos de Rio de Janeiro e Rio Grande, ao mesmo tempo em que o Brasil Império se via cercado de problemas políticos e econômicos, assim, viu-se no remo uma oportunidade de “aliviar as tensões políticas e econômicas” na sociedade desterrense. Neste período, escreve Carina Sartori, é que as baías sul e norte receberiam suas primeiras regatas promovidas pela Marinha.

Aglomeração de pessoas para assistir às competições de regatas. Acervo Casa da Memória
Acervo Casa da Memória
Apesar de ter seus primeiros lampejos no fim do século XIX, foi no início dos anos 1900 que a prática do remo se popularizou na região, já no regime republicano, quando algumas das famosas ruas da Capital ainda não eram distantes do mar. Pelo contrário, o Mercado Público, do qual hoje não se enxerga o mar, era banhado pelas águas da baía sul, por onde chegavam as mercadorias que após o aterro passaram a chegar exclusivamente sobre quatro rodas. Outras tantas ruas famosas que ficavam à beira-mar eram como arquibancadas para o público que acompanhava as competições cada vez mais recorrentes. Neste contexto é que surgiram os três centenários, clubes de remo que sobrevivem até hoje cruzando diariamente as águas que separam ilha e continente.

OS TRÊS CENTENÁRIOS
Foi na região do Rita Maria que nasceu o primeiro azul e branco da Capital. Em 11 de junho de 1915, comerciantes do centro fundaram o Clube Náutico Riachuelo, que levava em seu nome uma referência à Batalha do Riachuelo, uma batalha naval decisiva na Guerra do Paraguai. Além do remo, o clube promovia festas, encontros entre os membros e recorrentes homenagens aos rowers (remadores), figuras símbolos de virilidade e força valorizados por popularizar o esporte. Dessa maneira, o clube ultrapassava os limites do litoral, se tornando um local de interação entre membros de uma sociedade elitizada e que buscava no esporte ares de modernidade e civilidade. Suas cores foram emprestadas ao Avaí, time que utilizou camisas do Riachuelo em seu primeiro jogo e também veio a adotar o nome de uma batalha naval.
No mesmo ano, pouco mais de um mês depois, jovens da alta sociedade florianopolitana fundaram o Clube Náutico Francisco Martinelli, rival histórico dos primeiros. O time rubro-negro teve sua primeira casa na baía norte, porém logo depois se mudou para o centro comercial da cidade, e passou a disputar as primeiras competições entre as equipes pioneiras. A fundação do clube também representou uma segunda porta de entrada para os atletas e associados, e ficou marcado pela posição menos elitizada de seus membros.
O terceiro centenário que resiste até os dias de hoje foi fundado três anos depois, por atletas dissidentes do Martinelli. Nascido com o nome de Club de Regatas Florianópolis e vestindo as cores vermelho e branco, logo foi rebatizado Aldo Luz, em homenagem a um de seus fundadores. A partir de 1919, surge também a Confederação Catarinense do Remo, que passou a organizar as competições com clubes filiados em diferentes partes do estado, como Laguna, Blumenau e Joinville. As regatas então passaram a acontecer com regularidade, geralmente nos meses de abril e novembro, enquanto a cidade entrava em uma nova era de modernização.
Assim, guiados pelos três clubes a regata saiu dos mares, se tornando assunto debatido no cotidiano da população e pauta recorrente nos jornais da cidade. Entre notas e notícias sobre os clubes e seus rowers, eram comum também concursos como o de “Clube mais querido da cidade” vencido pelo Martinelli, o de “rower mais simpático” e da “torcida mais organizada”. Mas após 100 anos, muita coisa mudou, na cidade, no esporte e na forma como o remo é visto e consumido.
De lá pra cá, Florianópolis passou por mudanças que mexeram em sua estrutura, identidade e seus principais símbolos. Com a ideia de modernizar a Capital a partir do centro, foi na década de 20 que moradores da região começaram a ter redes de água, esgoto e energia elétrica. Também nessa época surgiram espaços importantes para o as regatas da cidade, como o trapiche Miramar, e o início da construção da ponte Hercílio Luz.
A maior mudança, porém, seria representada na figura dos aterros nas baías sul e norte, obra que fez parte de um momento de intensa modificação urbana em todo país. No sentido literal e figurado, o mar foi aterrado, se distanciando do cotidiano da população. Sobre isso, Mário Farias escreve que “dentre outras medidas, são exemplos deste progresso urbano que rumavam para um mesmo sentido, isto é, para uma nova Florianópolis que rompia com tradições – e o remo poderia ter sido uma delas.”



"UMA ILHA DENTRO DE UMA ILHA"

Antônio Faria Filho, apelidado carinhosamente como Naco, morava na rua Maria Rita no final dos anos de 1960. Da janela de casa, o menino via os remadores em seus barcos. Inspirado, Naco começou a remar e fez seu caminho no esporte. Nas ruas, todos discutiam o remo, como hoje acontece com o futebol.
Essa efervescência foi se perdendo com o passar dos anos e os clubes náuticos foram aterrados juntamente com a cidade de Florianópolis. Naco avalia essas mudanças e o remo como “uma ilha dentro de uma ilha”. O esporte é pouco, ou quase nada, visto na capital. Treinando hoje debaixo das pontes que conectam o continente à ilha, as dificuldades dos atletas são gigantescas.
O acesso aos clubes é ruim. Sem passarela ou transporte público que chegue até o local, muitas vezes, a única alternativa segura é ir de carro. Isso já faz com que as pessoas, principalmente crianças, se distanciem desse esporte.
O segundo problema é o projeto do Parque Urbano e Marina Beira-mar. Essa iniciativa deve ser executada com recursos privados a partir da concessão do espaço pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF). A área é de 350 mil m². Essa ideia surgiu de um grupo de empresários que viram a viabilidade do empreendimento no local. Assim, a Prefeitura avaliou a proposta e instaurou um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). O PMI é um instrumento para propor estudos, projetos e soluções à Administração Pública. Dessa forma, foi criado um Grupo Técnico composto por equipe multidisciplinar da PMF para analisar as questões desenvolvidas pelo PMI.
Todo esse processo existe desde 2016 e já foram realizadas duas consultas públicas no período. Em 2019, foi lançado o edital de concessão, que garante o uso do espaço por 30 anos, vencido pela empresa Jota Ele Marina SPE S/A, do Paraná.
A ideia consiste na construção de uma estrutura que toma parte da Beira-mar Norte, abrangendo terra e mar, onde as equipes de remo treinam. O local é considerado bom para a prática do esporte, devido às condições da água e vento.
A discussão sobre a construção da marina é grande. Ao mesmo tempo que prejudica a prática esportiva, a Prefeitura projeta que o espaço vai abrigar 684 embarcações e fortalecer as atividades econômicas existentes na região.
Um outro ponto crítico é que o remo não evoluiu nos últimos anos. Thiago Almeida, conhecido como Capi e técnico do Clube Náutico Riachuelo, avalia que o esporte estagnou.
A manezinha Fabiana Beltrame, ex-atleta e campeã mundial de remo, concorda com essa visão. “Apesar de ter uma história muito bonita no Brasil, o remo não evoluiu entre os esportes. A canoagem, por exemplo, que é uma modalidade muito mais nova, já tem medalha olímpica e o remo não tem”, comenta a ex-atleta. Fabiana pontua que é difícil ver uma equipe despontando com o esporte. Geralmente, os atletas se destacam individualmente e vão para o Rio de Janeiro, como aconteceu com ela, seu marido, o também remador Gibran Cunha, e Capi.
Diante desse desafio, Florianópolis precisa se destacar no cenário nacional. Um exemplo, é o que está sendo feito no Clube Náutico Riachuelo. O técnico, Thiago Almeida, conta que em seus 22 anos como remador, pouco se ouviu sobre o clube que hoje treina. Agora, a equipe consegue estar nos campeonatos brasileiros e medalhar. Orgulhoso, o exigente técnico enxerga no time feminino o esforço e a esperança de conquistas maiores.




"DNA DO REMO"

Os olhos atentos, a fala firme e o sorriso fácil indicam uma atleta, que futuramente, como ela mesmo diz, será de alto rendimento. Layla Luiza Borges da Silva Rodrigues tem 19 anos e já coleciona algumas medalhas no remo. A jovem que olhava os galpões localizados embaixo da ponte, não imaginava que ali encontraria uma segunda casa. Ou melhor, nem passava pela sua cabeça que o remo fazia parte do seu DNA.
O bisavô de Layla, conhecido como Bóia, foi remador no Clube Náutico Riachuelo. Não só ele, mas tios e primos também praticaram o esporte no mesmo clube, que a jovem conheceu em 2018. Há quatro anos, Layla treina no Riachuelo e sua primeira conquista com o esporte não tem tons metálicos, ela carrega as cores do afeto. A atleta trouxe a mãe, Andreza Borges da Silva, para remar junto dela.
Dentro do mar, mãe e filha se tornam companheiras de equipe. Como elas falam “o que acontece na água, fica na água”. As duas dividem a rotina de treinos e as conquistas no esporte. A estreia da dupla foi em uma competição em Blumenau que rendeu medalha de ouro.
Essa relação profissional é perpassada pelo afeto e por muito companheirismo. Em uma dessas brincadeiras de família, Andreza prometeu que se a filha ganhasse medalha individual no Campeonato Brasileiro de Remo, pintaria o cabelo de azul junto com Layla. Depois do torneio, ocorrido em setembro de 2021, mãe e filha tiveram que tingir os cabelos. Layla foi bronze na Single Skiff Sub-23 Peso Leve.

Layla no barco na competição brasileira ocorrida em setembro de 2021.
Layla no barco na competição brasileira ocorrida em setembro de 2021.

Filha e mãe foram campeãs da Prova 4- Sênior Feminino, disputado em Santa Catarina.
Filha e mãe foram campeãs da Prova 4- Sênior Feminino, disputado em Santa Catarina.
Layla conta que quando entrou no galpão e encontrou os barcos seus olhos brilharam. O que cintila nos olhos da jovem atleta é o futuro do remo. A ambição e o foco de atleta estão estampados em sua postura. Um esporte que teve seus anos de ouro no início do século passado, pode voltar a conquistar traços dourados mais de cem anos depois a partir das remadas de Layla.



AGRADECIMENTOS
Ao Clube Náutico Riachuelo pela recepção e colaboração.
Ao fotógrafo e amigo Marcos Albuquerque, que nos auxiliou nas fotos e vídeos dessa reportagem.
À Casa da Memória que cedeu arquivos fotográficos para a composição da matéria.
CRÉDITOS
Fotografias do Clube de Regatas Francisco Martinelli foram retiradas das redes sociais da equipe. Da mesma forma que as fotos do Clube Náutico Aldo Luz.
As fotos de Layla e Andreza Borges foram cedidas pelas atletas.
As demais fotos e vídeos foram produzidas por Marcos Albuquerque e Bianca Anacleto.
O texto foi feito por Bianca Anacleto e Gabriel Oliveira para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital, ministrada pela professora Stefanie Carlan, com apoio do estagiário docente Maykon de Oliveira, no semestre de 2022.1.

Bastidores da conversa com o técnico Tiago Almeida, conhecido como Capi.
Bastidores da conversa com o técnico Tiago Almeida, conhecido como Capi.

Renato Lisboa Müller, vice-presidente do Clube Náutico Riachuelo, nos apresentou as estruturas do local.
Renato Lisboa Müller, vice-presidente do Clube Náutico Riachuelo, nos apresentou as estruturas do local.

Para a apuração, acompanhamos um treino do Clube Náutico Riachuelo.
Para a apuração, acompanhamos um treino do Clube Náutico Riachuelo.

Conversa com o Naco, uma enciclopédia sobre a história do remo e do Clube Náutico Riachuelo.
Conversa com o Naco, uma enciclopédia sobre a história do remo e do Clube Náutico Riachuelo.