O problema do lixo

A quem serve a privatização da Comcap em Florianópolis?

Foto: Luana Gasperi/PMF

Foto: Luana Gasperi/PMF

O avanço da pauta ambiental e sua crescente importância são inegáveis. Atualmente, usar um copo de plástico é uma heresia ambiental, e o canudinho foi banido por lei em alguns Estados brasileiros, inclusive Santa Catarina. Países se comprometeram oficialmente com metas ambiciosas para reduzir suas emissões de carbono, ainda que estejam longe de cumpri-las. O mercado percebeu a tendência, e o slogan “lixo zero” passou a ser usado nas mais diferentes instituições como um selo de preocupação com o planeta. 

Na contramão das aparências, os dados mostram uma realidade muito distinta. Desde 2000, o mundo produziu mais plástico do que nos 50 anos anteriores, segundo o Atlas do Plástico, lançado em 2020.

O aumento não encontra uma contrapartida na reciclagem. De acordo com a WWF, o Brasil é o quarto produtor de lixo plástico no planeta e recicla apenas 1,28% da produção.  Nos últimos 10 anos, a geração de resíduos sólidos (de todos os tipos) cresceu em 19% no país. 

Em Florianópolis, segundo o Plano Municipal Integrado de Gestão de Resíduos Sólidos (PMGIRS), o aumento de resíduos plásticos coletados foi de 108% entre 1988 e 2014. 

Em Florianópolis, a taxa de reciclagem de resíduos secos é uma das maiores do Brasil: 5,22%, segundo a prefeitura. A compostagem chega a 1,98% do total de resíduos orgânicos. Os índices ainda são baixos para a cidade que quer se tornar a primeira capital Lixo Zero do Brasil em 2030.

Para onde vai o lixo?

Aproximadamente 700 toneladas de resíduos são gerados por dia pelos moradores de Florianópolis. Esse material é recolhido pelos caminhões da Comcap e vão primeiro para uma Central de Triagem localizada no Itacorubi, onde depois são recolhidos por caminhões containers e despejados no aterro sanitário da empresa Proactiva que fica em Biguaçu.

Cada uma dessas toneladas de resíduos que chega ao aterro custa cerca de R$ 150, alcançando uma média de R$ 100 mil por dia. Segundo o vereador Marcos José de Abreu - o Marquito (PSOL), essa etapa, que é privatizada, pesa nos cofres públicos e poderia ser diminuída com uma educação ambiental mais ativa por parte dos munícipes na separação e destino de seu lixo.

Em média, cada habitante de Florianópolis gera 1 kg de resíduos por dia. Essa quantidade aumenta na média de 21% na temporada de verão. Segundo o PMGIRS, o acréscimo com a sazonalidade do turismo chega a aumentar em 50% o peso coletado. 

“O aterro sanitário custou R$ 40 milhões em 2020 só para enterrar lixo”, declara Marquito, que reitera a importância da separação dos resíduos por parte do cidadão florianopolitano, já que isso reduziria grande parte do que vai para o aterro e por consequência o custo aos cofres municipais. “O contrato com o aterro sanitário reprime todas as ações de melhorar a gestão de resíduos” defende. 

Foto Nick Fewings/Unsplash

Para além do aterro sanitário

Segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), apenas os rejeitos (17% dos resíduos) deveriam ser destinados ao aterro sanitário. A PNRS foi implantada em 2010 com o objetivo de extinguir os lixões e aumentar os índices de valorização dos resíduos. Dessa forma, a lei determina que não deverão mais ser enviados aos aterros as parcelas de resíduos orgânicos e recicláveis.

O Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGRS), foi lançado em 2017 com base na PNRS. A meta é que em 2030, a cidade desvie do aterro sanitário 90% dos resíduos orgânicos gerados e 60% dos recicláveis secos. Confira o que foi realizado em relação à meta no infográfico abaixo. 

Essa valorização não só é benéfica para o meio ambiente, como também tem grande potencial de economia para os cofres públicos. Esses ganhos, segundo Márcio Luiz Alves, presidente da Comcap, deverão ser de mais de R$ 50 milhões ao ano se as metas forem cumpridas. A conta é a seguinte: economiza-se com a destinação ao aterro e ganha-se com a produção de cepilho e composto orgânico. No caso dos recicláveis secos, gera-se renda aos coletores por meio das doações feitas às associações, que separam e vendem o material reciclável a empresas parceiras. Em 2020, com 8% dos resíduos desviados do aterro, a redução de gastos foi de quase R$ 3 milhões. 

Mas, na velocidade atual, dificilmente a meta do PNRS será cumprida. Apesar do alto índice de desvio do aterro em relação ao restante do Brasil, os números encontram-se estagnados entre de 6 e 8% desde 2014 (primeiro ano com dados disponíveis). 

A presidente da Associação de Coletores de Materiais Recicláveis de Florianópolis (ACMR), Sarajane dos Santos, acredita que a educação ambiental é importante para avançar nessa meta, mas não só. “Florianópolis precisa de um novo modelo de coleta seletiva. O modelo que existe hoje confunde as pessoas. Elas se perguntam porque separam o material certinho em casa, e vem o caminhão e mistura tudo”, critica.  

De acordo com Santos, essa confusão influencia nos baixos índices de reciclagem do município. E assim, apesar da imensa quantidade de resíduos recicláveis produzidos pela população em Florianópolis, organizações como a ACMR recebem poucos materiais para trabalhar. 

A Comcap vai ser privatizada?

Como muitas vezes acontece no Brasil, a crítica a organizações geridas pelo Estado toma o caminho da defesa da privatização. As polêmicas ocorridas em relação à Comcap fazem muitas pessoas se questionarem se vale a pena, ou não, sustentar a autarquia que em 2020 custou cerca de R$ 8,6 milhões aos cofres públicos municipais.

A economia e o “combate a privilégios” dos trabalhadores da Comcap foram os principais argumentos para o projeto de lei chamado “Pacotão” de medidas administrativas propostas pelo prefeito Gean Loureiro (DEM) no começo de 2021.  As medidas, que foram votadas na Câmara dos Vereadores com regime de urgência no dia 26 de janeiro, mudaram direitos trabalhistas dos funcionários da Comcap e abriram caminho para a privatização da coleta de lixo na cidade. Além disso, a nova lei dividiu as atribuições e atividades operacionais entre as secretarias de Infraestrutura e Meio Ambiente.

Muitos vereadores e até a Acif (Associação Industrial de Florianópolis) seguem na tese de que seria menos oneroso para os cofres do município privatizar a autarquia com o argumento que  a Racli, por exemplo, (uma das empresas privadas contratadas pela prefeitura em períodos de greve da Comcap) cobrava R$ 176,89 a tonelada de lixo, enquanto a Companhia cobra R$ 420,80.

O que não é considerado nesses argumentos são os diversos serviços que a Comcap realiza no município. A coleta em morros, por exemplo, é de difícil execução e uma empresa privada poderia deixar de realizá-la ou cobrar mais pelo trabalho. Se uma empresa privada fosse contratada com todos esses serviços, qual seria o valor cobrado dos cofres públicos?

Os serviços que a Autarquia disponibiliza vão para além de recolhimento de resíduos, como podemos ver no infográfico

Foto: Prefeitura de Florianópolis

Quem deve pagar a conta do lixo?

A sustentabilidade econômica na gestão de resíduos é prevista pela Lei do Saneamento Básico, de 2007 (LEI Nº 11.445, DE 5 DE JANEIRO DE 2007.. A lei determina que sejam implementadas taxas e tarifas pela coleta de lixo para cobrir integralmente os custos com a gestão de resíduos. Os municípios que não propuserem um instrumento de cobrança da taxa ou tarifa poderão ser indiciados por renúncia de receita. A característica principal de uma taxa é que ela está vinculada a alguma atividade específica, como coleta de lixo ou iluminação pública, e o recurso arrecadado só pode ser ­investido na prestação do serviço para o qual foi cobrada.

Em Florianópolis, a taxa de lixo não é nenhuma novidade. Aqui, os cidadãos pagam uma taxa calculada a partir da frequência de coleta, destinação dada ao imóvel (residencial ou comercial/institucional), número de unidade autônomas existente em um mesmo imóvel; e, área dos imóveis.

Florianópolis arrecada cerca de R$ 53 milhões por ano com a cobrança da taxa de lixo, menos da metade do custo total da coleta e destinação.

A taxa de lixo também é cobrada por 41,3% das cidades do país, segundo o Perfil dos Municípios Brasileiros 2012 (Munic/IBGE). Apesar disso, o método é questionado por não estar ligado diretamente à quantidade de resíduos gerados, o que é visto como um incentivo à geração de lixo. Os grandes geradores não são cobrados de forma diferenciada e nem têm a obrigação de garantir a logística reversa dos materiais recicláveis.

Elisabeth Grimberg, coordenadora da área de Resíduos Sólidos do Instituto Pólis, defende que não é o cidadão que deve ser cobrado, e sim o setor produtivo. “Já paga-se duas vezes: na hora que o cidadão compra um produto [por meio dos impostos embutidos], e a prefeitura paga de novo para levar ao aterro, o que é uma má administração do recurso público”, observa na live de lançamento do Atlas do Plástico 2020. Ela sugere que as empresas devam arcar com o pós-consumo, ressarcindo a prefeitura. “Não é justo que saia do nosso bolso algo que não temos condições de escolher”, critica. 

A posição de Grimberg tem respaldo na própria PNRS. A lei é clara: o responsável pelos materiais recicláveis é o fabricante, importador, distribuidor e comerciante, que deve dar o destino adequado por meio da logística reversa. Quando o serviço público se responsabiliza, ele deve ser ressarcido (confira o artigo 33, parágrafo 7º). 

A logística reversa já é aplicada a tipos de resíduos que oferecem risco ao meio ambiente e à saúde pública, como pneus, lâmpadas fluorescentes, embalagens de óleos lubrificantes e agrotóxicos - mas ainda não é aplicada com embalagens de produtos em geral, que constituem a maior parte dos resíduos recicláveis secos.

O Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS), de 2017, não menciona a logística reversa para além desses resíduos específicos. A reportagem entrou em contato com a Secretaria do Meio Ambiente para perguntar se há algo sendo feito no sentido de estender a responsabilidade das embalagens ao setor produtivo, mas não obteve respostas. 

Com a obrigação de assegurar a sustentabilidade financeira da gestão de resíduos sólidos, além de aliviar as contas dos cofres públicos, a prefeitura tinha algumas opções ao seu dispor. Uma delas seria mexer com o bolso dos grandes geradores de lixo: indústrias, promotores de eventos, proprietários de estabelecimentos comerciais que geram mais de 200 mil litros de resíduos por dia. A outra era retirar direitos conquistados pelos trabalhadores da Comcap, e foi essa que a prefeitura escolheu.

A geração de resíduos na pandemia

2020 foi marcado pela maior pandemia dos últimos tempos. Com grande parte das pessoas permanecendo isoladas em suas residências, ainda no início da quarentena a estimativa da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), era de que houvesse um aumento de 15% a 25% na quantidade de lixo residencial em todo território nacional.

Na capital catarinense, ainda no primeiro mês de pandemia, a Comcap registrou aumento entre 20% e 40% nas áreas residenciais — diminuindo em áreas de comércios e de serviços. Analisando os apontamentos do residuômetro — banco de dados da coleta de resíduos disponível no site oficial da Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) — nos três primeiros meses da pandemia, foram coletados um total de 55.365 toneladas de resíduos na cidade. Enquanto que, no mesmo período do ano anterior, haviam sido registrados 48.544 toneladas de resíduos coletados. 

Entrevista - Ulisses Bianchini - Superintendente de Gestão de Resíduos

Segundo o Superintendente de Gestão de Resíduos da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA), Ulisses Bianchinni, nesse período inicial da pandemia uma das ações preliminares tomadas pela gestão da SMMA para lidar com os desafios logísticos foi a suspensão das atividades exercidas pela coleta seletiva da Comcap durante um período de aproximadamente 40 dias. Junto disso, outro desafio que impactou o processo de coleta de lixo na cidade foi o afastamento instantâneo de funcionários com comorbidades, que atuavam na área operacional da coleta. “No início da pandemia a gente chegou a ter até 500 funcionários afastados, nós tivemos que fazer uma contratação temporária para suprir essa falta. Essa foi a nossa maior dificuldade”, relata o superintendente.

Entrevista - Ulisses Bianchini - Superintendente de Gestão de Resíduos

Com o período suspenso da coleta de recicláveis, nos primeiros três meses da pandemia foram coletadas 1.840 toneladas de materiais recicláveis. Segundo os dados do residuômetro, o número representa cerca de uma tonelada e meia a menos, em relação à quantidade total coletada no mesmo período do ano anterior. 

Entrevista - Ulisses Bianchini - Superintendente de Gestão de Resíduos

Associação de Coletores em Florianópolis e região

Contando com Florianópolis e São José, são 14 associações de triagem de material reciclável registradas na lista da Comcap — 6 em Florianópolis e 8 em São José. Todo o material reciclável seco que é separado pela população e coletado pela Comcap, como papel, plástico, metal e vidro é doado a essas associações. O material é processado e comercializado pelas associações para as 29 indústrias de reciclagem da Grande Florianópolis.

Segundo a prefeitura, com esse material doado, anualmente são gerados em média cerca de R$ 4,5 milhões em renda para as centenas de famílias de coletores vinculados às associações na região de Florianópolis. Porém, no período da pandemia, o setor de recicláveis e todos os seus coletores associados foram atingidos diretamente pela crise financeira gerada no contexto nacional e internacional. 

 A Associação de Coletores de Materiais Recicláveis (ACMR) é a maior dentre as associações da Grande Florianópolis e absorve mais da metade do material doado pela Comcap. Segundo Serjane Rodrigues dos Santos, presidente da ACMR, o cenário instaurado pela pandemia trouxe muitas mudanças e também desafios — não somente à ACMR, mas a todas as associações de coletores da região. “A pandemia nos afetou muito porque ela superaquece o mercado. O preço do material foi lá em cima. O papelão, por exemplo, que antes a gente vendia a 34 centavos, hoje está a um real, um real e pouco. E isso atraiu a atenção dos catadores clandestinos. Todo mundo que tem um carro, um reboque, uma carrocinha, resolveram “catar” recicláveis, devido à alta do preço”, observa.

Durante os 40 dias em que a coleta seletiva na cidade de Florianópolis esteve sem operar, as associações de coletores foram diretamente afetadas por estarem dependentes do recebimento do material reciclável doado para contribuir com a geração de renda de suas famílias. “A gente ficou um tempo sem renda nenhuma. Por exemplo, lá na minha casa quem trabalha é só eu e o meu marido. Nós dois trabalhamos aqui. Então a gente ficou mais de 40 dias sem nenhuma renda, as contas atrasam, é bem complicado”, relata a presidente da ACMR.

Por conta da alta dos preços dos materiais recicláveis, um dos principais desafios enfrentados durante o período da pandemia por parte das associações de coletores de Florianópolis e da região, foi a falta de material disponível para a coleta. O número de coletores clandestinos naturalmente aumentou na busca dos materiais que hoje estão sendo vendidos por cerca de 3 vezes mais do que estava sendo comercializado até o início de 2020. Segundo apontamento da presidência da ACMR, foi constatado queda de 70% do material reciclável adquirido para a triagem. Neste contexto, a exemplo da Associação de Coletores de Materiais Recicláveis, as demais organizações de Florianópolis e região têm enfrentado grande dificuldade para conseguir manter a estrutura e os custos das associações — como aluguel, água, luz, equipamentos e maquinários para triagem. 

Ao mesmo tempo, a pandemia do novo coronavírus causou uma crise sanitária, social e financeira que afetou toda a população de diferentes maneiras. Como consequência, as pessoas tiveram de se adaptar às necessidades tomando decisões diferentes das habituais. Por exemplo, como relata Serjane dos Santos, grande parte dos associados que trabalhavam legalmente no processo de triagem dos materiais, encontraram como alternativa para gerar o mínimo de renda a fim de suprir as suas necessidades financeiras, a busca clandestina nas ruas para coleta dos recicláveis.

Serjane dos Santos - Presidente ACMR

Foto: Adriana Baldissarelli/Comcap/SMMA
Foto: Cristiano Andujar/Divulgação PMF
Foto: Christian Lue/Unsplash