Pesquisadora da UFSC desenvolve método para analisar contaminação de pescado por petróleo
Estudo desenvolvido em conjunto com Ministério da Agricultura e Pecuária utilizou máquina de café para determinar presença de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) após derramamento de petróleo em 2019.
Em 2019, o Brasil foi palco do mais grave desastre ambiental ocorrido em seu litoral e um dos maiores já registrados no mundo – os primeiros registros ocorreram na Paraíba, e em poucos meses, o poluente identificado como petróleo bruto atingiu 11 estados, numa faixa litorânea de mais de 4.000 km, do Maranhão ao Rio de Janeiro. Dada a natureza tóxica dos contaminantes envolvidos e do potencial efeito nocivo à saúde dos consumidores, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) precisava examinar a contaminação de pescado após o desastre. No entanto, a questão era: como realizar essa avaliação?
A solução veio de uma parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Alimentos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o Laboratório Federal de Defesa Agropecuária do Rio Grande do Sul (LFDA-RS) por meio do Setor Laboratorial Avançado em Santa Catarina (SLAV-SC). A então doutoranda em Ciência dos Alimentos e bolsista da CAPES Ana Paula Zapelini de Melo desenvolveu métodos analíticos capazes de mensurar hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) em pescado de forma ágil e com confiabilidade metrológica dos resultados. Os HPAs, compostos com propriedades carcinogênicas para humanos, fazem parte da composição química do petróleo e são considerados marcadores de contaminação petrogênica em alimentos.
Foram desenvolvidos métodos de extração de alta eficiência analítica e detecção por espectrometria de massas para dar suporte às decisões governamentais de enfrentamento ao derramamento de petróleo. O estudo utilizou cápsulas de café, em máquinas comuns, adaptadas para extração dos contaminantes vindos do petróleo. ‘Espressos’ de peixe, camarão, polvo, ostra, dentre outros foram analisados como forma de garantir a segurança do pescado logo após o desastre ser identificado. “A máquina de café espresso, que simula a extração por líquido pressurizado (PLE), foi utilizada no Brasil em um momento de emergência sanitária devido ao desastre. Precisávamos de um método rápido e de baixo custo que tivesse confiabilidade metrológica para determinar esses compostos. Como já havia sido desenvolvido um método analítico para determinação de resíduos de medicamentos veterinários usando a máquina de café espresso, acabamos adaptando isso para os HPAs”, relata Ana.
O estudo resultou na tese de doutoramento de Ana Paula, na publicação de artigos científicos em revistas internacionais de alto fator de impacto, recebendo reconhecimento por parte de importantes órgãos internacionais, como o United States Department of Agriculture (USDA) e International Spill Control Organization, além de ter recebido menção honrosa no Simpósio Internacional da Associação Brasileira para a Proteção dos Alimentos (ABRAPA) em 2023. Em paralelo, o trabalho do Laboratório também respaldou a investigação forense do desastre, conduzida pela Polícia Federal, com o objetivo de responsabilizar os envolvidos nos crimes ambientais. A determinação de HPAs em aves, mamíferos e répteis desempenhou papel fundamental, contribuindo para o veredicto: um navio petroleiro de bandeira grega foi indiciado pelos crimes de poluição, descumprimento da política de proteção ambiental e danos às unidades de conservação. “As elevadas concentrações de HPAs mensuradas nos órgãos dos animais, chegando até 39.000 µg kg-1, confirmaram a contaminação desses animais com petróleo”, diz a pesquisadora.
Devido ao caráter interdisciplinar do trabalho, englobando áreas como Ciência dos Alimentos, Química Analítica, Toxicologia, Estatística e Saúde Pública, foi necessária uma equipe diversificada de pesquisadores altamente qualificados, a fim de abordar os complexos desafios propostos pelo escopo abrangente do estudo. Os doutores Fabiano Barreto, Luciano Molognoni e Heitor Daguer, além da mestranda Thais de Oliveira estavam entre os pesquisadores envolvidos.
“Era um grande desafio para Ana e todo o pessoal do laboratório desenvolver de forma rápida uma metodologia confiável e reprodutível, que entregasse resultados consistentes de desempenho”, avalia o orientador dela no Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Alimentos, Pedro Luiz Manique Barreto, que também elogiou a criatividade para superar os obstáculos. O estudo foi desenvolvido durante todo o período da pandemia, ressalta o professor: “Uma tese de doutorado abrange um ciclo de quatro anos; isso deixa claro que tanto a UFSC quanto o MAPA mantiveram sua dedicação em fornecer soluções à sociedade durante esse período desafiador, e de forma inequívoca demonstraram que o pescado estava seguro para consumo”.
Coorientador da tese de Ana Paula, Rodrigo Barcellos Hoff também trabalha como Auditor Fiscal Federal Agropecuário do MAPA no Setor Laboratorial Avançado em Santa Catarina. Ele destaca a importância do aperfeiçoamento de processos como os apresentados na tese da pesquisadora para os laboratórios de defesa agropecuária. “Constantemente surgem novos desafios e demandas e é fundamental que o laboratório possa fornecer respostas rápidas à sociedade brasileira frente a questões de saúde pública como é caso dos contaminantes em alimentos”.
No começo do doutorado, por volta de março de 2019, Ana iniciou suas atividades no laboratório e trocou sua área de interesse, justamente para determinação de HPAs em produtos cárneos, provenientes principalmente de defumação e outros processamentos, uma demanda do MAPA. Durante os seis anos anteriores, ela concentrou suas pesquisas na nanoencapsulação de compostos ativos, porém, no decorrer do doutorado, realizou uma alteração estratégica em sua trajetória: “A ideia de trabalhar com HPAs surgiu em uma conversa com meu coorientador Rodrigo, e meu colega de trabalho, Luciano. Naquela época, o derramamento de petróleo ainda não havia ocorrido. No entanto, tudo mudou quando o desastre aconteceu. Como eu já estava imersa no mundo dos HPAs, foi possível adaptar de forma ágil e decisiva o meu projeto para enfrentar essa demanda emergencial", diz Ana.
Inicialmente, o SLAV-SC recebia amostras exclusivamente dos estados atingidos pelo desastre com derramamento de petróleo; depois, eram enviados espécimes de todo o litoral brasileiro, ou seja, chegava uma grande quantidade de amostras semanalmente (cerca de 15 a 20), e todas precisavam ser analisadas em triplicata (ou seja, analisadas três vezes, da mesma maneira). Diante do aumento do número de amostras, surgiu a necessidade de desenvolver um novo método de extração. “Embora a máquina de café espresso tenha desempenhado um papel valioso nas análises iniciais, é importante notar que seu propósito original é o uso doméstico, limitando a utilização de solventes orgânicos. Para superar essa limitação, o laboratório adquiriu um novo equipamento de extração dispersiva guiada energizada (EDGE). A principal finalidade desse equipamento era ampliar a capacidade analítica do laboratório, abrangendo não somente a determinação de HPAs, mas também outros métodos de rotina”, diz Ana. O novo método avançado EDGE foi validado conforme as diretrizes do MAPA e da União Europeia e atualmente é utilizado como método oficial de extração de HPAs em amostras de pescado. Ana ainda explica: “Os resultados do estudo indicaram que o desastre foi de baixa preocupação à saúde dos consumidores de pescado. Apesar disso, a exposição aos HPAs deve ser mantida o mais baixo quanto razoavelmente possível”. Com trabalho da tese de doutorado da Ana, “desenvolvemos, otimizamos, aperfeiçoamos e validamos um ensaio que produziu as respostas necessárias para averiguar a segurança do consumo do pescado nas regiões atingidas pelo derramamento de petróleo de 2019, de forma a fornecer ao Ministério da Agricultura e Pecuária os dados laboratoriais de suporte às tomadas de decisão”, completa o coorientador.
Hoje, a capacidade operacional do Laboratório para determinação de HPAs é de 10 a 15 amostras semanais. “Um grande ganho em relação à capacidade operacional de outros laboratórios para este mesmo ensaio. Apesar da metodologia desenvolvida ser simplificada em relação aos métodos tradicionais, segue sendo um método analítico bastante complexo”, aponta Rodrigo.
Agora como Pesquisadora de Desenvolvimento Tecnológico e Industrial do MAPA, Ana continua atuando na segurança dos alimentos: sua demanda de pesquisa atual é desenvolver um método para determinação de nitrito, nitrato e N-nitrosaminas em produtos lácteos. A pesquisadora destaca: “O estudo colaborativo entre a UFSC e o MAPA ofereceu não apenas uma abordagem criativa para avaliar a contaminação de pescado com petróleo, mas também destaca a importância de soluções inovadoras para enfrentar os desafios ambientais e de segurança alimentar. Além disso, demonstrou a importância do esforço conjunto de pesquisadores e agências reguladoras no enfrentamento de um dos maiores desastres com petróleo do mundo”.