Pílulas da
inteligência

Amanda Miranda
amanda.souza.miranda@ufsc.br
Jornalista da Agecom/UFSC

Medicamentos para aumentar performance cerebral levam ao fenômeno do doping cognitivo

No livro Flores para Algernon, Charlie Gordon é um homem ingênuo e com sérias limitações intelectuais - até passar por um experimento, uma cirurgia revolucionária, que faz com que sua vida mude dramática e drasticamente. Charlie se torna mais inteligente do que os próprios médicos que o operaram, mudando completamente a sua percepção do mundo.

A obra de ficção científica de Daniel Keyes é de 1966, mas não está muito distante do que milhares de pessoas parecem buscar quando o assunto é melhorar a performance cerebral. Nootrópicos ou fármacos largamente difundidos para o tratamento de doenças psíquicas estão entre as promessas da indústria para ajudar o cérebro a trabalhar melhor, mais rápido e com mais intensidade.

Uma pesquisa realizada na Universidade Federal de Santa Catarina em 2020 descobriu que 16,7% dos estudantes de graduação e pós-graduação entrevistados utilizavam substâncias por acreditar que elas ajudam a estudar. Doping cognitivo ou psiquiatria cosmética são alguns dos termos utilizados para designar um fenômeno ainda pouco estudado pela ciência e cujas consequências também são desconhecidas.

De acordo com o professor do departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Tadeu Lemos, essas drogas são referidas como drogas da inteligência e potencializadores cognitivos. Os nootrópicos - termo usado pela primeira vez em 1972 - atuam sobre o sistema nervoso central e, em tese, não devem ser tóxicos e tem baixa incidência de efeitos colaterais.

Essa classe de produtos tem sido cada vez mais usada por indivíduos saudáveis. Justamente por conta da ausência de efeitos colaterais e dos níveis de toxicidade, expandem-se entre usuários que buscam aumentar a capacidade cognitiva. É o caso do jornalista Fábio Almeida, que começou a utilizar o Noopept em 2019. De acordo com a descrição do produto, trata-se de um dipeptídeo sintetizado como um análogo do piracetam. A promessa é de que tenha ação superior e imediata na cognição .

A descrição sugere ainda que, apesar de apresentar efeitos e mecanismo de ação semelhante ao piracetam, o Noopept é estruturalmente diferente e apresenta rápido resultado no sistema nervoso central. Um trabalho de conclusão de curso defendido na UFSC trata o piracetam como fármaco pioneiro desta classe única de drogas que afetam a função mental.

“Estudos demonstram que o fármaco melhora a eficiência das funções telencefálicas superiores do cérebro envolvidas em processos cognitivos, como aprendizado e memória”, explica a pesquisa. “Concomitantemente, mesmo em dosagens relativamente altas, é desprovida de qualquer atividade sedativa, analéptica ou autonômica”.

Fábio começou a utilizar o nootrópico com acompanhamento médico. Seu primeiro contato com o fármaco foi em uma pesquisa realizada para um trabalho, em que identificou uma reportagem que comentava os efeitos positivos e negativos do uso. Depois, recorreu ao médico, que receitou uma opção que não funcionou. “Na minha primeira tentativa eu não senti alteração nenhuma, era como se não tivesse tomado nada”, conta. Mas na segunda tentativa as coisas mudaram.


“Percebi uma grande vantagem já no primeiro momento. Eu precisava fazer um trabalho grande, que eu levaria de três a quatro dias normalmente e consegui resolver em uma tarde. Era um trabalho complexo, em que eu precisava ler, interpretar e escrever um texto longo”, comenta.

Os efeitos colaterais também foram percebidos. Como ele usa o fármaco há dois anos, logo notou que não poderia fazer uso contínuo. “O que sinto é que depois de vários dias tomando o cérebro fica exaurido, esgotado. Por isso, uso quando preciso e em dias espaçados”, explica. “Percebo que existe um limite de efeito, uma linha onde o efeito colateral se torna maior que o benefício”, diz.

No estudo realizado na UFSC, o piracetam é enquadrado na categoria de medicamentos prescritos. Ao lado de substâncias como o metilfenidado, a lisdexanfetamina e a modafinil, é categorizado como “utilizado para tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade: aumento da performance de aprendizado, concentração e memória”.

Na mesma pesquisa, a substância também é apontada como sendo uma das mais difundidas e utilizadas de forma indevida, sendo citada amplamente por estudos que investigam o assunto. Ainda, aponta que “o mecanismo de ação do piracetam ainda não é bem esclarecido”.

Sinopse do livro: Com excesso de erros no início do romance, os relatos de Charlie revelam sua condição limitada, consequência de uma grave deficiência intelectual, que ao menos o mantém protegido dentro de um “mundo” particular – indiferente às gozações dos colegas de trabalho e intocado por tragédias familiares. Porém, ao participar de uma cirurgia revolucionária que aumenta o seu QI, ele não apenas se torna mais inteligente que os próprios médicos que o operaram, como também vira testemunha de uma nova realidade: ácida, crua e problemática. Se o conhecimento é uma benção, Daniel Keyes constrói um personagem complexo e intrigante, que questiona essa sorte e reflete sobre suas relações sociais e a própria existência. E tudo isso ao lado de Algernon, seu rato de estimação e a primeira cobaia bem-sucedida no processo cirúrgico.

Perturbador e profundo, Flores para Algernon é tão contemporâneo quanto na época de sua primeira publicação, debatendo visões de mundo, relações interpessoais e, claro, a percepção sobre nós mesmos. Assim, se você está preparado para explorar as realidades de Charlie Gordon, também é a chance para perguntar: afinal, o mundo que sempre percebemos a nossa volta realmente existe?

Efeitos são desconhecidos

O professor do Departamento de Farmacologia , Tadeu Lemos, recentemente proferiu uma palestra sobre o doping cognitivo para estudantes da UFSC. Na apresentação, falou sobre o conceito de um ponto de vista histórico e também abordou um tema relacionado - o da sociedade do cansaço. O excesso de trabalho, os prazos apertados e a falta de energia para a execução das tarefas contribuem para o cenário.

“Até o momento a gente não tem comprovação, de fato, de que essas substâncias melhoram a performance ou desempenho cognitivo”, explica Lemos. “Isso é o que as pessoas buscam, mas não necessariamente, e até o momento a gente não tem comprovação, de fato, de que seja isso que essas substâncias fazem”.

O professor explica que a atividade cerebral que é utilizada por estudantes, por exemplo, envolve processos de aquisição de conhecimento pela compreensão, pelo raciocínio. A operação do saber, nestes casos, também passa pelo pensar e pelo lembrar. “Então tudo isso envolve pensar, envolve saber, envolve memória, envolve capacidade de julgamento e de resolução de problemas e, de fato, não tem nenhuma substância que faça isso”.

Da cafeína à nicotina, passando pelo cloridrato de mietilfenidato, conhecida no mercado como Ritalina, há inúmeros recursos utilizados na busca por atenção e desempenho cognitivo. “Essas substâncias são, em geral, estimulantes da atividade do sistema nervoso central. Isso significa que elas têm a capacidade de gerar algum grau de ativação do cérebro que se traduz comportamentalmente, como um estado de maior atenção ou até de euforia”, explica.

O uso da Ritalina entre estudantes universitários já foi tema de estudos. Uma pesquisa publicada no Caderno de Saúde Coletiva investigou como esse medicamento está inserido na Universidade Federal de Minas Gerais, sendo consumido sem prescrição. Dos acadêmicos que responderam a pesquisa, 96,7% afirmaram conhecer o medicamento e 4,3% disseram utilizá-lo por motivos não prescritos. A justificativa para o uso era o melhoramento cognitivo, e a universidade foi mencionada como o local de início da medicalização.

Em vídeo, o biólogo e divulgador da ciência Átila Iamarino fala sobre nootrópicos e doping mental

A pesquisa também traz um dado de 2014, que já indicava o aumento no consumo do medicamento, que passou de 94 kg em 2003 para 875 kg em 2012. Neste período, o aumento da produção nacional e da importação foi de 373%. “Isso aponta para a necessidade de se estudar e compreender melhor o perfil de uso do metilfenidato, a fim de informar profissionais de saúde para que saibam indicá-lo de forma adequada, baseando-se em evidências científicas, além de fornecer subsídio para orientações à população”, pontua o estudo, assinado por uma equipe de pesquisadores de Minas Gerais.

Uma pesquisa realizada na Universidade Federal de Santa Catarina também questionou universitários sobre uso de substâncias psicoativas não prescritas, como álcool, drogas ilícitas e medicamentos psicotrópicos não prescritos. Cerca de 79% afirmaram já terem utilizado alguma dessas substâncias.

O mesmo estudo também ouviu os estudantes sobre os sentimentos com relação à dificuldade do seu curso e a pressão que dizem sofrer nas atividades universitárias. Em uma escala de 1 a 5 em que 5 significava concordar totalmente com a afirmação, a média de resposta foi de 3,49 para a dificuldade e 3,76 para a pressão.

Segundo Lemos, a maior atenção prometida por essas substâncias não significa necessariamente uma maior capacidade de consolidação de memória, nem de aprendizado. “Mas é aquilo que os usuários dizem sobre ficarem ‘mais ligados’. Por exemplo: ‘Ah, eu tô sonolento, vou tomar um cafezinho’. E aí a gente vai ter substâncias que vão desde a cafeína até a cocaína, com um grau de hiperativação mega acentuada”, contextualiza.

Essas substâncias são, em geral, estimulantes da atividade do sistema nervoso central. Isso significa que elas têm a capacidade de gerar algum grau de ativação do cérebro que se traduz comportamentalmente, como um estado de maior atenção ou até de euforia
Tadeu Lemos, professor da UFSC

Ritalina é tratamento para
déficit de atenção


A Ritalina é um medicamento comumente indicado para tratar Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). De acordo com Lemos, a doença é causada por um desequilíbrio no âmbito da neurotransmissão das substâncias químicas que são os sinalizadores de comunicação entre os neurônios. A substância Metilfenidato teria a função de recompor esse equilíbrio, para voltar a estabilizar esse processo.

Apesar de ser um recurso de tratamento, o metilfenidato tem uso controlado, constando no Anexo II de acordo com o Regulamento do Uso Indevido de Drogas de 2001. Seu mecanismo de ação é o mesmo da cocaína, e a utilização como tratamento eficaz no TDAH, de acordo com o professor Tadeu Lemos, está associado ao aumento da atividade dopaminergética e noradrenérgica no córtex pré-frontal.

Imagem do filme baseado no livro Flores para Algernon

Imagem do filme baseado no livro Flores para Algernon

Um estudo assinado pela professora Sandra Caponi e pela pesquisadora Fabiola Stolf Brzozowski explica que o fármaco é estimulante do Sistema Nervoso Central com estrutura similar às anfetaminas, sendo a Ritalina o tratamento de primeira escolha e o mais utilizado em casos de TDAH desde o início de sua comercialização, no final dos anos de 1950.

O artigo também argumenta que o aumento no consumo do medicamento pode ser explicado por um fenômeno cada vez mais comum: o uso de medicamentos para condições que não estão relacionadas com o TDAH. A partir de estudos de outros autores, aponta que “há uso incorreto de estimulantes entre estudantes do ensino médio e universitários”. Há, então, um aumento na popularidade do fármaco entre o público em geral, estimulando o debate sobre seu uso como uma forma de aprimoramento cognitivo.

A professora recorre ao termo de psicofarmacologização para explicar um fenômeno que acompanha em seus estudos: o de medicalização da sociedade no nível psicológico. “Isso tem feito parte do dia a dia das crianças, que usam Ritalina e antidepressivos. São recursos que foram entrando na vida das pessoas, normalizando-se. Dentro desta lógica podemos discutir os nootrópicos”.

Nesse sentido, a professora lembra que substâncias que prometem aumentar a atenção sempre estiveram presentes na vida das pessoas, como a cafeína e a coca-cola, por exemplo. Mas que o reforço ao uso de medicamentos que trazem a promessa de aumentar o foco e a concentração pode gerar uma necessidade somada a efeitos severos pelo resto da vida.

“No caso do uso entre as crianças, cria-se a ilusão de que serão mais focadas, concentradas. Mas o medicamento não traz capacidade crítica e reflexiva. Passa de ano, mas vai precisar dessa medicação e dos seus efeitos severos para o resto da vida”, alerta. A pesquisadora lembra que a banalização na utilização desse tipo de medicamento é um risco e também está relacionada à ideia de biologização de fatos sociais.

Descrição do vídeo: Confie no seu cérebro. Uso de medicamentos desse tipo para melhorar a concentração sem indicação é um erro.

Esse fenômeno, explica Sandra, se dá a partir da ideia de que os fatos sociais - como a busca desenfreada pelo sucesso, por exemplo - podem ser tratados como se fossem biológicos. Seguindo essa direção, também há uma ilusão de que há medicamentos para tudo. “No caso da Ritalina, há uma série de fatores que explicam a sua popularização, desde o relacionamento do laboratório com os médicos, até o financiamento de organizações de pais de crianças com TDAH”, explica.

A pesquisadora também problematiza a individualização de questões sociais. “Ao analisarmos fenômenos como estes, vemos que os indivíduos são atomizados, como se cada um fosse responsável exclusivamente por seus êxitos e fracassos. Não se pensa como sociedade e como essa imagem do sucesso permanente é inatingível. A ideia do mérito, da competição e do ganhar a qualquer custo geram um sofrimento psíquico que é uma questão social”, diz.

De acordo com a pesquisa realizada na UFSC, a maioria dos estudantes que respondeu o questionário considerava seu desempenho no curso bom ou muito bom (64,8%), mas quase 10% consideravam seu desempenho medíocre. O estudo também apontou que há um nível maior de autoclassificação medíocre entre os estudantes de graduação (11,1%) e um nível maior de autoclassificação muito bom entre os estudantes da pós-graduação (38,5%). Por outro lado, mais de um quarto dos respondentes afirmaram que possuem algum diagnóstico
psiquiátrico, a maioria do sexo feminino.

“No caso do uso entre as crianças, cria-se a ilusão de que serão mais focadas, concentradas. Mas o medicamento não traz capacidade crítica e reflexiva. Passa de ano, mas vai precisar dessa medicação e dos seus efeitos severos para o resto da vida”
Sandra Caponi, professora da UFSC

Essa busca da pílula milagrosa para resolver problemas, para diminuir o stress, da pílula milagrosa que vai te deixar mais confortável, com uma capacidade cognitiva maior acabam contribuindo com a disseminação desses medicamentos
Tadeu Lemos, professor da UFSC

Meditação, natureza e apoio especializado podem ajudar


O Laboratório de Psicologia Ambiental (Lapam) da UFSC também já abordou o assunto, destacando a utilização do Adderall, que pertence à classe das feniletilaminas, com essa mesma finalidade. Ao lado da Ritalina, é um medicamento prescrito para aumentar o desempenho de estudantes. “O Adderall e a Ritalina não têm essa finalidade e, apesar de ajudarem a curto prazo, seus efeitos são incertos a longo prazo”, explica o post.

O professor Tadeu Lemos lembra que a forma como as informações se propagam atualmente também geram uma ilusão de que são informações qualificadas e de que qualquer pessoa é capaz de compreender o que está sendo disseminado. “Essa busca da pílula milagrosa para resolver problemas, para diminuir o stress, da pílula milagrosa que vai te deixar mais confortável, com uma capacidade cognitiva maior acabam contribuindo com a disseminação desses medicamentos”.

O post do Lapam menciona o contato com a natureza como forma de aprimorar a inteligência, melhorando a percepção, a criatividade e a capacidade de prestar atenção e pensar com clareza. Além disso, indica uma pesquisa da Universidade de Illinois que descobriu reduções significativas nos sintomas de TDAH em crianças que se envolvem com a natureza.

Esses caminhos alternativos também são considerados por Lemos. Mas a primeira sugestão para indivíduos que sentem algum tipo de sofrimento mental ou psíquico crônico é a busca de atendimento especializado para que haja uma avaliação e, caso necessário, a indicação de medicamento. Quando não for necessário, há outras opções que podem contribuir, como a meditação, por exemplo. A higiene do sono também é recomendada para aqueles que buscam mais foco e concentração no dia a dia. “Boa alimentação, bom sono e prática de atividade física se complementam como alternativas”, reforça.

Professor Andrei Mayer fala sobre a higiene do sono em seu canal do Youtube



O estudo realizado na UFSC concluiu, em 2020, que a minoria dos estudantes universitários sabiam onde procurar ajuda na universidade quando estão sofrendo. O Serviço de Atenção Psicológica (Sapsi), as atividades do Programa Institucional de Apoio Pedagógico aos Estudantes (Piape) são alguns caminhos para aqueles que precisam de apoio.