Frutos do Cerrado por um fio


Mudanças climáticas e avanço do agronegócio ameaçam savana com maior biodiversidade vegetal do mundo

yellow daffodils in bloom during daytime

As pressões sobre a savana brasileira são inúmeras. A fronteira agrícola não para de avançar, as queimadas estão a cada ano mais devastadoras e a proteção legal da vegetação do Cerrado continua muito aquém da necessária. E, para piorar, o bioma está ficando mais seco e mais quente – tendência que, se for mantida, poderá resultar no colapso do Cerrado. 

No entanto, há resistência. Nos fragmentos de cerrado onde a soja ainda não avançou, existem riquezas que não interessam ao agronegócio. Mas geram renda, alimentam, têm importância cultural, gastronômica e afetiva: são os frutos do Cerrado.

Esta reportagem mostra uma pequena parte dessa riqueza – e explica por que, se nada for feito, ela pode desaparecer em poucos anos.

Biodiversidade na mesa

Bandeja com cajuzinhos-do-cerrado

Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

Madalena Soares sai da região rural de Padre Bernardo (GO) todas as sextas-feiras, por volta das 20h. Embarca na Kombi de um vizinho, que vai passando de casa em casa para buscar agricultores e agroextrativistas. O destino é o Distrito Federal, a cerca de 115km de casa. A viagem dura cerca de 2h até o Ceasa-DF, onde dorme em uma acomodação do local.

Antes do sol nascer, nos sábados, Madalena já está de pé: é dia de feira. Acorda às 5h para preparar a bancada onde expõe seus produtos: pimenta de macaco, semente e polpa de baru, bandejas de cajuzinho-do-cerrado, jatobá, cagaita e mangaba, entre outros. Curiosamente, seu estande é um dos únicos da feira do Ceasa-DF com frutos nativos do Cerrado – bioma no qual o Distrito Federal está inserido.

Na feira que frequenta há 6 anos, Madá (como é chamada) é uma celebridade: quase todos que passam pelo seu estande a chamam pelo nome – e vice-versa. Além disso, tem interlocução próxima com ONGs como o Slow Food, vende boa parte dos produtos que coleta para chefs de cozinha e aparece em vídeos e lives no YouTube.

Madalena faz questão de mostrar os cachos de pimenta de macaco fresca ainda sem passar pelo processo de secagem. Também oferece a polpa do baru, docinha, para os visitantes experimentarem. “A natureza nos proporciona muitas coisas”, diz. “Eu quero que todo mundo conheça os frutos do Cerrado.”

Ela própria não conhecia esses frutos até 2010, apesar de ter passado boa parte da vida no bioma. Madalena nasceu no Piauí e veio para o DF ainda criança, aos nove anos. Quando o marido teve a ideia de ir morar na “roça”, resistiu: “De roça eu não entendia nada”, relembra. 

Mas foram, e Madalena aprendeu a gostar do novo estilo de vida. Fez um curso técnico em agropecuária no Instituto Federal de Brasília, onde aprendeu a aproveitar os frutos do Cerrado e a manejar uma horta.

Hoje, Madá é extrativista de frutos nativos do Cerrado, trabalho que envolve a coleta, seleção e beneficiamento dos frutos. O bioma, que ocupa 22% do território brasileiro e abrange 9 estados, é a savana com maior biodiversidade vegetal do mundo. São 12.070 plantas já catalogadas, das quais 35% (4.208) são endêmicas – ou seja, não ocorrem em nenhum outro lugar do planeta.

Dentre elas, há pelo menos 58 frutos nativos do Cerrado que são utilizados pela população na alimentação. Os 10 mais consumidos são o pequi, a bocaiúva, a mangaba, a cagaita, o baru, o murici, a mama-cadela, o buriti, o araticum e a guabiroba.

Madalena Soares compara o tamanho do cajuzinho-do-cerrado com uma moeda

Madalena Soares compara o tamanho do cajuzinho-do-cerrado com uma moeda | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

Madalena Soares mostra a polpa do jatobá

Madalena mostra a polpa do jatobá, utilizada como farinha em bolos e pães | Foto: Mateus Mello

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Madalena com um saco de pele de semente de baru

Madalena com um saco de pele de semente de baru | Foto: Mateus Mello

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Madalena entrega a pele do baru para um cliente

Madalena entrega a pele do baru para um cliente, que utiliza o produto como ingrediente de pães | Foto: Mateus Mello

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A extrativista Madalena Soares em seu estande na feira do Ceasa-DF

A extrativista Madalena Soares em seu estande na feira do Ceasa-DF | Foto: Mateus Mello

A extrativista Madalena Soares em seu estande na feira do Ceasa-DF | Foto: Mateus Mello

Bancada do estande de Madalena Soares

Bancada do estande de Madalena Soares | Foto: Mateus Mello

Bancada do estande de Madalena Soares | Foto: Mateus Mello

Frutos do baruzeiro

Frutos do baruzeiro | Foto: Mateus Mello

Frutos do baruzeiro | Foto: Mateus Mello

Instrumento usado para cortar a polpa do baru ao meio e preservar a semente inteira

Instrumento usado para cortar a polpa do baru ao meio e preservar a semente inteira | Foto: Mateus Mello

Instrumento usado para cortar a polpa do baru ao meio e preservar a semente inteira | Foto: Mateus Mello

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A extrativista Madalena Soares em seu estande na feira do Ceasa-DF

A extrativista Madalena Soares em seu estande na feira do Ceasa-DF | Foto: Mateus Mello

A extrativista Madalena Soares em seu estande na feira do Ceasa-DF | Foto: Mateus Mello

Bancada do estande de Madalena Soares

Bancada do estande de Madalena Soares | Foto: Mateus Mello

Bancada do estande de Madalena Soares | Foto: Mateus Mello

Frutos do baruzeiro

Frutos do baruzeiro | Foto: Mateus Mello

Frutos do baruzeiro | Foto: Mateus Mello

Instrumento usado para cortar a polpa do baru ao meio e preservar a semente inteira

Instrumento usado para cortar a polpa do baru ao meio e preservar a semente inteira | Foto: Mateus Mello

Instrumento usado para cortar a polpa do baru ao meio e preservar a semente inteira | Foto: Mateus Mello

A venda dos frutos que Madá coleta no Cerrado é suficiente para garantir sua renda. Isso graças à notoriedade crescente que alguns frutos nativos do bioma têm ganhado nos últimos anos em círculos da gastronomia e por causa da crescente demanda por alimentos saudáveis e sustentáveis.

No entanto, o mesmo Cerrado cuja abundância de frutos comestíveis garante renda à Madá (e a outras 12,5 milhões de pessoas que dependem de recursos do bioma para sobreviver) está em crescente risco de extinção devido à degradação que tem sofrido. 

Da vegetação original do Cerrado, menos da metade (48%) permanece intacta. Mesmo os trechos de vegetação que restam estão altamente fragmentados, e a falta de continuidade da vegetação afeta significativamente a manutenção da biodiversidade. 

Além do desmatamento, há outra ameaça, ainda subestimada, sobre o bioma: as mudanças climáticas. Segundo o IPBES (Intergovernamental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services), elas serão o principal vetor de pressão sobre a biodiversidade nas Américas até 2050.

Além disso, as mudanças climáticas em curso no planeta colocam a própria dança das estações em risco. Para a natureza, a primavera (quando há maior oferta de frutos comestíveis do Cerrado) não se inicia com uma data, e sim com determinados gatilhos, como chuva e variações na temperatura – aspectos diretamente afetados pela crise climática. Esses gatilhos dão início a uma série de processos interconectados, como o florescimento das plantas e a polinização dos insetos.

O IPCC (Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas) já indica que a região central do Brasil (onde está localizado o Cerrado) está ficando mais seca, e as chuvas diminuirão entre 10% e 20% nos próximos 10 anos. 

Além de mais seco, o Cerrado também está ficando mais quente. O PBMC (Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas) indica um aumento na temperatura de até 5,5% até 2100. Isso no cenário mais positivo.

Embora não tenham o poder de frear as mudanças do clima, os extrativistas de frutos do Cerrado contribuem com a valorização e a preservação do bioma – pelo menos frente ao avanço do desmatamento. Essas pessoas, que ocupam lugares do bioma em que a vegetação ainda é conservada, são com frequência chamados de “guardiões da biodiversidade”. Mas ainda existe um abismo entre o potencial alimentício do Cerrado e a valorização dessas riquezas.

Entre a fama e o desprezo

Por seus altos teores de proteínas, vitaminas e minerais, alguns dos frutos do Cerrado são considerados “superalimentos”. O mais conhecido é o baru, que tem apresentado crescente valor no mercado internacional e é procurado pela alta gastronomia.

A produção de sementes de baru em 2019 foi de 69,3 toneladas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e quase metade é vendida para o exterior (25% para a Europa e outros 22% para os EUA). A demanda deve crescer 25% nesta década.

“O que vai acontecer com o baru é provavelmente o que aconteceu com o açaí. Estava à margem das grandes cadeias e em algum momento se tornou uma fruta popular, a demanda explodiu. Hoje, o açaí é uma commoditie”, diz Fernando Rocha, pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Cerrado. 

Mas nem sempre foi assim. Os primeiros estudos com o baru foram para a exploração madeireira, e o fruto foi negligenciado por décadas. Por outro lado, era comum que fazendeiros deixassem os baruzeiros em pé quando limpavam a área de pastos para que servissem de sombra e alimento para o gado.

Enquanto a demanda pelo baru disparou, os demais frutos nativos do Cerrado continuaram na invisibilidade. Um dos motivos para isso é que a cadeia produtiva do baru é uma “cadeia seca”, o que facilita o transporte e armazenamento, explica Ana Paula Boquadi, porta-voz do movimento Slow Food Cerrado e fundadora e chef do Buriti Zen, restaurante de Brasília que usa ingredientes do Cerrado. “Outros frutos são muito sensíveis, então a logística é diferente”, diz.

Outro motivo para a invisibilidade da maior parte dos frutos do Cerrado é que, embora os produtos do extrativismo estejam ganhando notoriedade em alguns espaços da sociedade, a demanda por eles ainda é muito pequena.  “Os produtos do agroextrativismo têm alcançado visibilidade na gastronomia, mas não podemos tomar essa projeção social como fator de mudança significativa nos padrões de consumo desses produtos”, explica Luís Carrazza, diretor-executivo da Cooperativa Central do Cerrado, em debate realizado na Universidade de Brasília (UnB).

O desconhecimento acerca da biodiversidade do Cerrado ainda é predominante. O próprio Mauro Mendes, governador de Mato Grosso (que abriga 17% do bioma) não reconhece a riqueza presente no seu estado. “O Cerrado era altamente improdutivo. Tiravam alguns pequis, umas frutas nativas, mas não tem valor econômico”, afirmou em seminário realizado pela Folha de S. Paulo em abril de 2021.

Para apoiar as comunidades extrativistas e facilitar a venda dos frutos, Ana Paula defende a organização dos consumidores por meio de grupos de compras coletivas. Como, em geral, essas comunidades têm poucos recursos para armazenamento e transporte, os frutos não vendidos correm o risco de serem perdidos. Com vendas em maior quantidade, as comunidades têm mais condições para se organizar com a logística. 

Mas ela observa que a iniciativa individual não deve ser o único amparo. A chef lembra que, de um mês para outro, quando seu grupo não comprou cajuzinhos-do-cerrado de extrativistas do Quilombo Kalunga, a venda do fruto pela comunidade diminuiu de 600kg para 100kg. Esse tipo de lacuna na demanda impacta diretamente a renda da comunidade, que fica à mercê do comportamento dos consumidores e tem mais dificuldade para fazer planos a longo prazo.

Ana Paula destaca que são necessárias políticas públicas, como incentivos fiscais e programas de fomento, para apoiar as iniciativas comunitárias. Uma alternativa para garantir uma demanda mais estável, por exemplo, seria a compra de frutos nativos pelo Estado para oferecer nas escolas. “Os frutos têm que ocupar lugares menos elitizados, é preciso desgourmetizar um pouco e politizar mais”, destaca.

Para a porta-voz do Slow Food Cerrado, a valorização dos frutos passa por uma corrente entre diversos atores sociais – entre eles cientistas, nutricionistas e chefs de cozinha. “As comunidades tradicionais já conhecem o poder dos frutos, mas cabe à ciência validar esse conhecimento”, afirma. Em relação aos chefs, Ana Paula acredita que é preciso “romper com o medo de não agradar o paladar das pessoas”. 

Além do Buriti Zen, a capital federal ainda tem poucos estabelecimentos que utilizam ingredientes do Cerrado, embora esteja localizada no coração do bioma. “A gastronomia é muito eurocêntrica”, observa a chef. Atualmente sem estrutura física, o Buriti Zen funciona apenas por encomendas e delivery.

Chef Ana Boquadi com cheescake vegano de castanha do caju e baunilha do cerrado, "nutella" de castanha do pequi e physalis

Chef Ana Boquadi com cheescake vegano de castanha de caju e baunilha do cerrado, "nutella" de castanha de pequi e physalis | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

A chef Ana Boquadi prepara um prato com cajuzinhos-do-cerrado

A chef Ana Boquadi prepara um prato com cajuzinhos-do-cerrado | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

A chef Ana Boquadi prepara um prato com cajuzinhos-do-cerrado

Chef Ana Boquadi prepara um prato com cajuzinhos-do-cerrado | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

A chef Ana Boquadi prepara um prato com cajuzinhos-do-cerrado

Chef Ana Boquadi prepara um prato com cajuzinhos-do-cerrado | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

Cajuzinhos-do-cerrado refogados no azeite de dendê com cogumelos sobre cama de polenta

Cajuzinhos-do-cerrado refogados no azeite de dendê com cogumelos sobre cama de polenta | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

“Os frutos têm que ocupar lugares menos elitizados, é preciso desgourmetizar um pouco e politizar mais”
Ana Paula Boquadi, chef e porta-voz do Slow Food Cerrado
Chef Ana Boquadi

Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

Domesticação e cultivo

Embora o Brasil abrigue cerca de 20% da biodiversidade vegetal do mundo, a alimentação da população brasileira é composta, majoritariamente, por espécies estrangeiras. As frutas que estão no topo do ranking das mais consumidas pelos brasileiros (banana, laranja, melancia, maçã e mamão) são todas exóticas, apesar de já serem produzidas em território nacional. 

O cardápio no mundo todo é muito limitado: 90% dos alimentos mais consumidos vêm de apenas 20 plantas, apesar de existirem mais de 300 mil espécies vegetais comestíveis no planeta.

Um dos motivos para o cardápio limitado da população é a dificuldade em domesticar plantas, sobretudo árvores, para cultivo. Exemplos de domesticação recentes são raros. Segundo o pesquisador da Embrapa Cerrados Fernando Rocha, o último caso foi a macadâmia, nativa da Austrália, domesticada na década de 90.

Rocha é líder do projeto que avalia espécies nativas (baru, mangaba e pequi) em sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta. A domesticação das plantas frutíferas do Cerrado tem sido estudada como uma solução para responder à crescente demanda por determinados frutos. 

Isso porque a explosão da demanda, como aconteceu com o açaí na Amazônia e está acontecendo com o baru no Cerrado, pode desencadear um processo oposto ao que se quer com a valorização dos frutos: a própria extinção dos mesmos. 

Rocha explica que uma das maiores preocupações com o extrativismo severo é um problema chamado gargalo genético. “Quando as pessoas vão coletar frutos na natureza, elas procuram as árvores mais produtivas, e são recolhidos os frutos com melhor genética. Os que sobram, que são exatamente os que acabam se reproduzindo na natureza, são aqueles indivíduos que produzem muito pouco ou tem alguma característica que não torna eles interessantes para o extrativismo, levando ao pioramento genético”, diz. 

Mas o pesquisador destaca que são necessários muitos anos de estudos para tornar o cultivo de frutos nativos mais produtivo, regular e previsível. “Não dá para pedir a um produtor que trabalhe com determinada espécie sem saber dizer quanto tempo ela demora para produzir, quanto ela produz e por quanto tempo”, diz.

“Eu considero que a maior ameaça ao Cerrado é o seu desconhecimento e desvalorização”, diz o doutor em botânica Marcelo Kuhlmann, autor do projeto “Frutos Atrativos do Cerrado". "Nesse sentido, o cultivo das nossas espécies nativas é uma forma de agregar valor ao bioma e evitar a sua extinção”, afirma.

Kuhlmann destaca, ainda, que o extrativismo e o cultivo podem caminhar juntos: “Por que não plantar mais cajuzinhos em uma área de extração de cajuzinhos?”, questiona.

Para que haja cultivo, é preciso investimento em pesquisa. Mas, antes disso, Kuhlmann destaca que é preciso interesse da população. “O primeiro passo para a gente conservar o Cerrado é conhecê-lo. O Cerrado é muito rico, ao contrário do que o agronegócio pregou nos últimos 70 anos, dizendo que o Cerrado não serve para nada, não gera renda e é um problema para a economia”, diz.

Leiteira (Tabernaemontana solanifolia A.DC.)

Leiteira (Tabernaemontana solanifolia A.DC.) | Foto: Mateus Mello

Leiteira (Tabernaemontana solanifolia A.DC.) | Foto: Mateus Mello

Maminha de porca (Zanthoxylum rhoifolium Lam.)

Maminha de porca (Zanthoxylum rhoifolium Lam.) | Foto: Mateus Mello

Maminha de porca (Zanthoxylum rhoifolium Lam.) | Foto: Mateus Mello

Pimenta de macaco (Xylopia sericea)

Pimenta de macaco (Xylopia sericea) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Pimenta de macaco (Xylopia sericea) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Mama-cadela (Brosimum gaudichaudii)

Mama-cadela (Brosimum gaudichaudii) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Mama-cadela (Brosimum gaudichaudii) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Araticum (Annona crassiflora)

Araticum (Annona crassiflora) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Araticum (Annona crassiflora) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Chichá do cerrado (Sterculia striata)

Chichá do cerrado (Sterculia striata) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Chichá do cerrado (Sterculia striata) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Pera do Cerrado (Eugenia klotzschiana)

Pera do Cerrado (Eugenia klotzschiana) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Pera do Cerrado (Eugenia klotzschiana) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Gabiroba (Campomanesia velutina)

Gabiroba (Campomanesia velutina) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Gabiroba (Campomanesia velutina) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Pinha do brejo (Magnolia ovata)

Pinha do brejo (Magnolia ovata) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Pinha do brejo (Magnolia ovata) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Tradição e renda

O uso de frutos nativos do Cerrado acompanhou toda a história de ocupação humana do bioma, explica Mônica Nogueira, antropóloga e pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília). “Os povos indígenas seminômades que perambulavam por essa área tinham um modo de vida baseado na caça, na coleta e na agricultura. Esses povos têm profundo conhecimento sobre essas espécies, e 'profundo' porque bastante antigo”. 

Mais tarde, comunidades tradicionais, como quilombolas e geraizeiros (povos que habitam o norte de Minas Gerais), se estabeleceram no Cerrado e desenvolveram um modo de vida adaptado aos recursos naturais, entre eles os frutos nativos.

Hoje, o conceito de “Povos e Comunidades do Cerrado” abrange, para além das populações tradicionais, grupos mais recentes como agricultores familiares em assentamentos de reforma agrária. 

Cerca de 12,5 milhões de pessoas dependem dos recursos naturais para sobreviver e sofrem intensa pressão com a perda da vegetação nativa do bioma, segundo o artigoUndervaluing and Overexploiting the Brazilian Cerrado at Our Peril”, publicado em 2016.

“São comunidades que têm grande conhecimento sobre os ciclos ecológicos, a forma de coleta que tem menos impacto, os diferentes usos que se pode fazer”, explica Nogueira.

No quilombo Kalunga, maior território quilombola do Brasil, a maioria das 2.000 famílias tira seu sustento da agricultura de subsistência e da coleta de frutos do Cerrado. Com cerca de 300 anos de ocupação, o quilombo está localizado na região da Chapada dos Veadeiros e abrange uma área de 262 mil hectares nos municípios goianos de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre.

“Todo esse conhecimento, acumulado por muitas gerações, pode simplesmente desaparecer em poucos anos. Nós perdemos em diversidade biológica e nós perdemos em humanidade, porque uma parte da experiência humana está ameaçada por esse avanço”


Mônica Nogueira

Fruto do jatobá

Fruto do jatobá | Foto: Mateus Mello

Fruto do jatobá | Foto: Mateus Mello

Devido à conservação da biodiversidade no território Kalunga, a comunidade recebeu o primeiro título Ticca (Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais) do Brasil. O título é concedido pela ONU a comunidades tradicionais que mantêm profunda conexão com o local que habitam, preservando a natureza e o bem-estar de seu povo.

Cida Coutinho, 42, mora na comunidade do Vão do Moleque, que integra o território Kalunga. Ela conta que consome os frutos do Cerrado desde criança. Quando o baru ainda era desconhecido da maior parte da população, Cida já comia a farofa e a paçoca de baru que sua avó fazia.

“Naquela época, não tinha saída para vender os frutos”, observa. Mas viu o interesse crescer nos últimos 4 anos, quando os extrativistas da comunidade começaram a levar os frutos coletados para vender em feiras em Cavalcante e Alto Paraíso. 

A comunidade, que só veio a ter acesso à energia elétrica em 2020, também começou a receber visitas de chefs e outras pessoas interessadas em conhecer a comunidade e comprar frutos do Cerrado diretamente dos coletores.

Hoje, frutos como o baru, o cajuzinho-do-cerrado e a mangaba são fonte de renda para as famílias e para as mulheres – que são a maioria dos coletores, conta Cida. Antes de começarem a vender os frutos, era mais comum que as mulheres ficassem em casa cuidando da casa e das crianças, sem renda própria, enquanto os homens trabalhavam fora.

O extrativismo passou a ser, então, uma solução para geração de renda alinhada com o modo de vida da comunidade e a preservação do Cerrado. 

Extrativista Madalena Soares quebrando baru

Extrativista Madalena Soares quebrando a polpa do baru na feira do Ceasa-DF | Vídeo: Mateus Mello

Extrativista Madalena Soares quebrando baru na feira do Ceasa-DF | Vídeo: Mateus Mello

Altair de Souza, 54, extrativista do assentamento Andalucia, em Nioaque (MS), também come os frutos do Cerrado desde cedo. Aprendeu com seus pais, por exemplo, como quebrar o jatobá e consumir sua farinha e como consumir a castanha e a polpa da bocaiúva.

Altair trabalhou boa parte da vida como “boia-fria”, expressão que designa trabalhadores que não têm vínculo empregatício. Em 1989, conheceu o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). “Um ano depois, abracei a luta da reforma agrária e fui para o acampamento com a minha família”, relata.

O acampamento, que foi reconhecido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em 1996, deu origem ao assentamento Andalucia.

A comunidade começou a trabalhar com o extrativismo dos frutos do Cerrado em 1998. Em 2005, Altair participou da fundação do Ceppec (Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado), associação que reúne cerca de 100 famílias de coletores, processadores e vendedores. Atualmente, Altair é secretário da entidade.

O extrativista conta que só o baru, carro-chefe da produção, garante em média R$2.000 para cada uma das famílias que trabalham com atividades relacionadas ao fruto. A venda cresce substancialmente desde 2016, e em 2021 chegou a 75 toneladas.

Mas, para além da renda, Altair destaca que o trabalho com os frutos despertou a consciência ambiental na comunidade. “Aprendi a não ver o baru de forma monetária, mas da perspectiva da preservação do meio ambiente”, conta.

Tanto o quilombo Kalunga quanto o assentamento Andalucia estão ameaçados com o avanço do agronegócio no Cerrado. Embora sejam territórios demarcados, as monoculturas causam desequilíbrios nos ecossistemas que ultrapassam a área de cultivo.

Para Mônica Nogueira, o avanço do agronegócio no bioma coloca em risco não só a permanência dos povos tradicionais em seus territórios, mas também os sistemas de conhecimento associados aos modos de vida desses povos. 

“Todo esse conhecimento, acumulado por muitas gerações, pode simplesmente desaparecer em poucos anos. Nós perdemos em diversidade biológica e nós perdemos em humanidade, porque uma parte da experiência humana está ameaçada por esse avanço”, alerta a antropóloga. 

Cerrado ameaçado

silhouette of trees during sunset

Foto: Marcelo Kuhlmann

Photo by Daniel Costa on Unsplash

Em agosto, a arara dá o primeiro sinal que o baru está no ponto. Quando a extrativista Madalena Soares vê a ave trazendo o fruto no bico e deixando-o já roído longe do pé, sabe que chegou a hora de começar a coleta.

O baru é o carro-chefe das vendas de Madalena, que precisa ser ágil para coletar os frutos antes do início das chuvas (com os frutos molhados, o aproveitamento da polpa é inviabilizado). Também é preciso ser mais rápida que os animais, já que o baru é um banquete para araras, lebres e cupins.

A sazonalidade do baru depende de cada região. No geral, o baruzeiro frutifica de agosto a dezembro. A coleta, no entanto, não pode ir muito além de outubro, quando começa o período de chuva. 

Na comunidade quilombola do Vão do Moleque, o baru também é o fruto mais procurado. Mas Cida Coutinho, extrativista da comunidade, diz que a coleta não rendeu muito em 2021 devido à falta de chuva no período úmido, que vai de setembro a maio. “Em ano que tem pouca chuva, dá pouco fruto”, relata Cida. “Quem colheu, colheu”, contou no início de outubro a extrativista.

Altair de Souza, extrativista de Nioaque (MS), diz que observou uma mudança no período de coleta do baru nos últimos 10 anos. Antes, começava a colher os frutos em setembro e seguia até janeiro. Hoje, a coleta começa em agosto e termina em outubro. 

“Existe um período de recuperação da folhagem das plantas para, depois, nascer a flor e o fruto. Isso tem mudado um pouco porque a chuva chega de forma imprevisível”, observa.

Dados corroboram as observações dos extrativistas. De acordo com o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), em 2021 as chuvas ficaram 25% abaixo da média em relação ao período que vai de 1980 a 2019. Mas a queda na média de chuvas já vem acontecendo progressivamente desde 2012. 

Em relação ao Cerrado, um estudo da UnB constatou que as chuvas diminuíram 8,4% em 33 anos (de 1977 a 2010). A redução foi mais acentuada em áreas desmatadas, o que sugere a correlação entre a retirada da vegetação e a diminuição da precipitação.

Para os próximos anos, o IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) alerta para a continuação dessa tendência: o painel prevê uma redução de 10% a 20% das chuvas até 2040 na região central do Brasil, e até 45% no final do século. 

Essas mudanças no regime de chuvas podem afetar diretamente as plantas do bioma, que têm seus ciclos de floração e frutificação em consonância com os regimes de seca e chuva. "As plantas têm uma série de adaptações para produzir frutos na época que for melhor para elas dispersarem sementes", explica o biólogo e doutor em botânica Marcelo Kuhlmann.

Além disso, as mudanças climáticas em curso no planeta colocam a própria dança das estações em risco. A maior parte das plantas que oferecem frutos comestíveis no Cerrado floresce e frutifica na primavera, quando começa o período de chuvas. Da mesma forma, a chegada da primavera estimula os insetos e morcegos polinizadores a fazerem seu trabalho essencial para a reprodução das plantas. As mudanças na temperatura e na precipitação desencadeiam esses processos biológicos. Se as plantas começarem a florescer antes, ou depois, elas podem perder a sincronia com os polinizadores. 

Libélula no Parque Nacional de Brasília

A libélula é um dos insetos polinizadores do Cerrado | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

Mas Kuhlmann acredita que ainda é cedo para afirmar que esteja ocorrendo uma mudança permanente na sazonalidade dos frutos do bioma. “As plantas respondem à temperatura, umidade e nutrientes para a floração e produção de frutos e sementes. Cada planta pode responder diferentemente a essas mudanças”, pondera o biólogo. “Só o tempo pode dizer se essas mudanças são exceções ao que está acontecendo agora ou se vão se tornar novos padrões”.

Ainda assim, de acordo com o IPCC, as exceções tendem a se tornar cada vez mais parte do chamado “novo normal”. Já é consenso entre a comunidade científica que as mudanças climáticas causarão o aumento de eventos climáticos extremos, o que inclui períodos de escassez hídrica e de excesso de chuvas. A força e a frequência desses eventos dependerá da quantidade de gases de efeito estufa que serão emitidos daqui para frente. 

Essas mudanças climáticas causadas pela ação humana não acontecerão em um futuro longínquo — pelo contrário, já estão sendo observadas em todo o mundo. Desde a revolução industrial, a temperatura média do planeta subiu 1,07 ºC. Os efeitos desse aumento da temperatura já são vistos no cotidiano: chuvas acima da média e secas mais longas e severas. Além disso, o nível global médio dos oceanos subiu cerca de 20 centímetros desde 1901, de acordo com o painel.

Mesmo no melhor cenário projetado pelo IPCC, a temperatura global continuará a subir até alcançar, no mínimo, 1,5 ºC em duas décadas. No entanto, para viabilizar o melhor cenário, é preciso reduzir drasticamente (e imediatamente) todas as emissões. Caso contrário, o aquecimento da Terra pode ultrapassar 2°C ainda neste século, o que causaria prejuízos ainda mais intensos à vida no planeta. 

É importante lembrar que essa projeção de 1,5 ºC é resultado de uma média global. Ou seja: alguns lugares sofrerão menos com o aquecimento, e outros, mais. O Cerrado se encaixa no segundo grupo. O PBMC (Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas) estima que a temperatura no bioma deverá aumentar entre 5 ºC e 5,5 ºC até 2100 por conta da crise climática — o que coloca o Cerrado como o bioma com maior projeção de aumento de temperatura entre os biomas brasileiros.

Clima: mais quente e mais seco

O agronegócio, que será o setor da economia mais afetado pelas mudanças climáticas, é também o maior responsável. Cerca de 73% de todas as emissões de gases de efeito estufa no Brasil são resultado das atividades agropecuárias, segundo o Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa) do Observatório do Clima. Essas emissões são, em parte, causadas pelo desmatamento.

As plantas nativas do Cerrado são conhecidas por sua alta capacidade de estocar carbono. Quando retiradas do solo, esse carbono é liberado para a atmosfera. Além disso, elas deixam de capturar o carbono em seus processos de fotossíntese. Outros fatores que entram na conta são o uso de fertilizantes e a criação de rebanhos bovinos, cujos processos digestivos resultam na emissão de metano.

Diversas pesquisas mostram um agravante: as mudanças no uso da terra provocadas pelo agronegócio também causam um aquecimento regional, que se soma ao aquecimento global provocado pela emissão de gases. 

De acordo com uma pesquisa publicada em 2021 na revista Global Change Biology, partes do Cerrado já estão 4 Cº mais quentes do que nos anos 60. Esse aquecimento é muito superior ao de 0,2 Cº por década projetado pelo IPCC para o hemisfério Sul (o IPCC só projeta o aquecimento global com base na emissão de gases de efeito estufa, e não considera os efeitos diretos do desmatamento no clima). Nesse mesmo período, a umidade do ar caiu 15%. Juntos, os dois fatores podem favorecer a dispersão do fogo em caso de incêndios. 

Essas alterações no clima do Cerrado, segundo os autores, estão sendo causadas pela substituição da vegetação nativa por plantações e pastagens.

“Conforme você desmata, vai ter menos plantas retirando água do solo, então a superfície fica mais quente e mais seca”, explica a meteorologista Maria Elisa Siqueira, professora de Climatologia da USP (Universidade de São Paulo), que não tem relação com o estudo. 

Por sua vez, esse clima mais quente e mais seco causa diversas reações em cadeia que podem afetar a sobrevivência das espécies do bioma. 

Um dos impactos alertados pelos autores é a diminuição progressiva da duração do orvalho noturno. Essa é a principal fonte de água para diversas espécies do Cerrado durante a estação seca – entre eles as abelhas, principais polinizadores do bioma. A redução do orvalho poderia, portanto, causar a extinção dessas espécies, inviabilizando a reprodução das plantas.

Além disso, muitas espécies de plantas do Cerrado têm sua polinização reduzida quando expostas à umidade do ar muito baixa, diz a pesquisa. “Como muitas espécies lenhosas no Cerrado florescem nos meses de setembro e outubro, período em que registramos as maiores mudanças climáticas regionais, surge uma grande incerteza sobre a manutenção do sucesso reprodutivo dessas espécies no futuro”, escreveram os autores. 

Se esse cenário não se alterar, as espécies do bioma perderão até 60% da sua distribuição até 2050 e 55 serão extintas Os dados são de outro estudo, publicado em 2019 na revista Diversity and Distributions, que projetou cenários com base nos principais fatores que impactam a biodiversidade: as mudanças climáticas e o desmatamento.

Outro artigo, publicado em 2017 na revista Nature Ecology and Evolution, resumiu a urgência da situação do Cerrado: “A tempestade perfeita de expansão do agronegócio, desenvolvimento de infraestrutura, baixa proteção legal e incentivos de conservação limitados está prestes a desencadear um episódio de extinção de importância global”.

A adaptação é possível?

As plantas estão acostumadas a se adaptar a mudanças climáticas que ocorrem em longos períodos de tempo. A diferença é que o aquecimento provocado pelo homem está acontecendo de forma muito mais rápida e intensa do que eventuais aquecimentos naturais.

“O aquecimento atual está ocorrendo pelo menos dez vezes mais rápido do que no fim da última glaciação e de todas as outras glaciações anteriores”, conta a jornalista Elizabeth Kolbert no livro “A sexta extinção: uma história não natural”. “Para continuarem vivos, os organismos terão de migrar, ou se adaptar, pelo menos dez vezes mais depressa”. 

Um dos efeitos das mudanças climáticas, por exemplo, é na distribuição geográfica das espécies. Com o aquecimento, muitos habitats naturais podem se tornar inadequados para a sobrevivência.

Se animais respondem às mudanças climáticas com o deslocamento para lugares com clima mais adequado, as plantas fazem isso por meio da dispersão de sementes. Assim, as plantas começam a “brotar” em locais com condições climáticas mais favoráveis. 

No entanto, há limites a essa adaptação. O grau de vulnerabilidade de uma espécie é medido de acordo com sua ocorrência dentro de áreas protegidas. Uma vez que já existem poucas reservas ambientais no Cerrado (8% do bioma), há poucas chances de uma espécie encontrar refúgio fora delas. 

Por isso, a mitigação contra os efeitos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade deve envolver, sobretudo, a criação de corredores ecológicos e o aumento no número e tamanho de reservas.

Danos irreversíveis

Com 65 milhões de anos, o Cerrado é um dos ambientes mais antigos do planeta. Segundo o antropólogo e arqueólogo Altair Salles Barbosa, uma das maiores autoridades sobre o bioma, o Cerrado já chegou ao seu clímax evolutivo. Portanto, estaria em vias de extinção. "Uma vez degradado, não vai mais se recuperar na plenitude de sua biodiversidade”, declarou o pesquisador em entrevista concedida em 2014.

Outro motivo para o dano ao bioma ser irreversível, segundo o pesquisador, é o crescimento lento das plantas do Cerrado. “Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, os buritis que vemos hoje estavam nascendo. Eles demoram 500 anos para ter de 25 a 30 metros”, disse Barbosa na mesma entrevista. 

Esse crescimento lento, na verdade, é só na superfície. Muitas plantas, principalmente de formação savânica (como pequi, mangaba, araticum e cagaita), desenvolvem antes o seu sistema de raízes. O objetivo é buscar água nas profundidades do solo do Cerrado. “Elas primeiro garantem o seu acesso ao recursos hídricos para só depois desenvolverem a parte superior”, explica o biólogo Marcelo Kuhlmann.

É por causa dessa fixação de água, inclusive, que as plantas do Cerrado conseguem sobreviver por cerca de 6 meses sem chuva nas estações secas. 

As mesmas raízes longas que permitem às plantas buscarem recursos hídricos no solo profundo também contribuem para a própria absorção de água pelos lençóis freáticos e aquíferos. A manutenção das plantas nativas é, portanto, essencial para a preservação das nascentes que alimentam 8 das 12 bacias hidrográficas do Brasil.

Ao contrário do professor Altair, Marcelo Kuhlmann acredita que ainda é possível regenerar o bioma por meio de medidas que envolvem, principalmente, o aumento da eficiência da agricultura (plantar mais no mesmo lugar) e a recomposição de terras degradadas. “Eu tento ter uma visão mais otimista. A restauração do Cerrado, exatamente igual, é muito difícil, para não dizer impossível. Mas podemos considerar sua recomposição, que é uma etapa anterior à restauração”, diz Kuhlmann.

Fotos: Marcelo Kuhlmann/via Flickr

O avanço da agropecuária

Cientistas do clima preveem cenários catastróficos que são complexos e, de certa forma, ainda abstratos e difíceis de compreender. Por isso, a crise climática acaba ficando em segundo plano quando lidamos com problemas mais visíveis e imediatos – como, por exemplo, o avanço da fronteira agrícola no Cerrado.

“O que mais afeta os frutos é a expansão do agronegócio, principalmente por causa do uso dos agrotóxicos e o impacto na polinização das abelhas”, afirma o extrativista Altair de Souza, de Nioaque (MS).

Claudomiro De Almeida Cortes, coletor de sementes e presidente da associação Cerrado de Pé, diz perceber uma série de mudanças no bioma nos últimos 20 anos. 

Filho de agricultores e garimpeiros, Claudomiro é nascido e criado na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. A região é um reduto de Cerrado cercado por quilômetros de soja a perder de vista. 

“A cada ano que passa, eu vejo que, mesmo que o pé tenha muito fruto, dificilmente você vai achar um bom. Há 10, 20 anos atrás, você raramente pegava um com bicho”, conta. Claudomiro atribui esse fato ao desmatamento ao redor da chapada para o plantio de soja: "A gente tá perdendo todo o Cerrado. Então nas áreas onde ainda tem vegetação e frutos, os insetos estão atacando mais”, diz. 

Em seu perfil no Instagram, Claudomiro denuncia a perda de água que vem observando no Cerrado. "É impressionante a quantidade de nascentes que a gente já viu secar aqui na Chapada. As veredas estão virando campos úmidos, os campos úmidos virando campo seco, as nascentes pequenas estão secando e as grandes, vem num processo de secagem lenta", disse em publicação de agosto de 2021.

Nesta outra publicação, ele mostra um rio que teve sua área significativamente diminuída:

Publicação de Claudomiro em seu perfil no Instagram

O arqueólogo e antropólogo Altair Sales Barbosa também costuma dizer, nas entrevistas que concede, que “10 rios de médio porte desaparecem por ano no Cerrado”. Entre os principais motivos para essa redução está o avanço da agropecuária, que retira a vegetação nativa para plantar cultivares sem a mesma capacidade de fixação da água nos lençóis freáticos. 

“As famílias assentadas estão sendo encurraladas pelo sistema predatório do agronegócio”, conta o extrativista Altair de Souza. “A monocultura mais próxima já está há menos de 60 km do assentamento Andalucia. Há 10 anos, eram 110 km de distância”, diz o extrativista. Sidrolândia, cidade localizada a 113 km de Nioaque, está entre as 20 maiores produtoras de soja do país.

O "primo pobre" da Amazônia

Após a colonização do Brasil, o Cerrado foi deixado em paz por quatro séculos. As próprias características do bioma o mantiveram longe das antenas do desenvolvimento econômico: o solo é ácido, árido e pouco produtivo para plantas não adaptadas às estações secas. 

Essa paz foi perturbada na década de 1950, quando pesquisadores perceberam que a agricultura chegara no limite da expansão nas florestas tropicais (principalmente a Mata Atlântica, reduzida a 12,4% da sua vegetação original). 

Frente ao dilema de reflorestar as áreas desmatadas ou levar a agricultura a terras ainda não exploradas no Centro-Oeste, a segunda opção prevaleceu. 

O processo de “conquista” do Cerrado envolveu anos de pesquisas para melhorar a fertilidade dos solos e adaptar os cultivos às terras ácidas. Ao mesmo tempo, o incentivo migratório para a colonização das novas terras contribuiu para a modificação do ambiente e a crescente urbanização, intensificada a partir da década de 1970.

Hoje, a agropecuária se estende por 36,9% do território do Cerrado, de acordo com dados de 2021 do projeto MapBiomas (13,2% são plantações e 23,7%, pastagens). Só a soja, carro-chefe das exportações brasileiras, ocupa 90% (15,6 milhões de hectares) da área agrícola do bioma.

Com isso, o que resta de vegetação original no Cerrado é menos que a metade: 48%. Mesmo a vegetação que sobrou, muitas vezes apresentada como o “copo meio cheio”, está intensamente fragmentada. Essa divisão fragiliza o bioma e dificulta a reprodução da fauna e flora. 

Além disso, apenas 8,21% do bioma está localizado em áreas protegidas por lei, sendo que 2,85% são unidades de conservação de proteção integral e 5,36% são unidades de conservação de uso sustentável. 

A maior parte da vegetação remanescente do Cerrado está dentro de propriedades privadas, e o Código Florestal exige a preservação de apenas 20% a 35% das áreas de Cerrado nesses locais. Já as propriedades privadas localizadas em áreas da Amazônia Legal devem preservar, por lei, 80% da vegetação. 

Embora a floresta amazônica também sofra com desmatamento crescente, sua situação é mais favorável que a do Cerrado. A maioria das terras na Amazônia são públicas. Ainda que sejam alvo constante de grilagem (invasão e desmatamento de terras públicas seguida de reivindicação da terra como patrimônio privado), o poder público tem mais instrumentos para protegê-las. 

A moratória da soja, um importante instrumento de mercado para conter a devastação da Amazônia, não é aplicada ao Cerrado. A moratória consiste em um acordo assinado por entidades ambientais, empresas e governo para inibir a compra de soja de locais desmatados na Amazônia após 2008. As negociações para a adoção da medida no Cerrado enfrentam forte resistência de produtores rurais, que têm apoio do atual governo de Jair Bolsonaro (PL).

No âmbito federal, o descaso com o Cerrado é um dos raros consensos que unem espectros políticos opostos. Transformar o bioma em “celeiro do mundo” é política de Estado, em consonância com uma visão de desenvolvimento dependente da exportação de poucas matérias-primas. 

Pouco se faz para proteger o bioma, e o que se faz, não avança: uma PEC que transforma o Cerrado em patrimônio nacional, por exemplo, já tramita há 10 anos no Congresso Nacional.

Apesar de as políticas voltadas à preservação do Cerrado nunca terem sido suficientes para conter a devastação, a gestão do presidente Jair Bolsonaro tem sucateado as já frágeis medidas existentes.

Desde o início do seu governo, em 2019, o desmatamento no Cerrado cresceu 17%. Em 2021, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) registrou o maior número de focos de incêndio desde 2012 no Cerrado. Nos 8 primeiros meses foram 31.566 focos – e, só em agosto (na estação seca), 15.043. 

A despeito desse aumento significativo da devastação do bioma, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) anunciou em janeiro de 2022 a suspensão do programa de monitoramento do Cerrado por falta de verbas. Os dados oficiais que mostram a situação do bioma deixarão de ser produzidos em abril.

Fogo: o natural, o criminoso e o cultural

O Cerrado é um ambiente naturalmente adaptado ao fogo. “Existem registros fósseis de presença do fogo no Cerrado na ordem de 8 a 10 milhões de anos, que foi quando os capins se desenvolveram e se tornaram dominantes”, explica o doutor em botânica Marcelo Kuhlmann. 

Por isso, muitas espécies vegetais do bioma têm características de resistência às queimadas, como cascas grossas, sistemas de raízes profundas e alta capacidade de rebrota. Outras, ainda, gostam tanto do fogo que têm mais facilidade para germinar ou florescer após sua passagem. A mais conhecida é uma planta chamada cabelo-de-índio.

Flor “cabelo-de-índio”, que floresce 24h após a passagem do fogo | Foto: Alessandra Fidelis/Arquivo Pessoal

Flor “cabelo-de-índio”, que floresce 24h após a passagem do fogo | Foto: Alessandra Fidelis/Arquivo Pessoal

Outro efeito benéfico do fogo para o Cerrado é o controle da biomassa seca (como gramíneas), que compete por luz e nutrientes nas áreas savânicas. Ao mesmo tempo, a queimada dessa biomassa fornece nutrientes ao solo, uma vez que as cinzas do fogo são ricas em fósforo. 

Como essa biomassa é inflamável, seu controle também é essencial para evitar grandes queimadas na estação seca, quando a maior parte do fogo é causado por ação humana.

Isso porque todo fogo natural no Cerrado é causado por raios – e raios só ocorrem com chuva. “O único fogo natural que tem respaldo em estudos científicos é o que ocorre na primavera, no começo da estação chuvosa, quando ainda tem muita biomassa seca de capins. Todo fogo fora desse período é de origem antrópica”, explica Kuhlmann. 

O biólogo também alerta que o Cerrado não é homogêneo, e cada tipo de vegetação (floresta, savana e campo) responde diferentemente ao fogo. “Se passa um fogo numa região florestal, onde vive o baru e o jatobá, essas plantas podem ser completamente queimadas ou demorarem muito tempo para rebrotar”, diz Kuhlmann. 

Portanto, para o fogo ser benéfico, é preciso que ele ocorra no tempo e nos lugares certos. Do contrário, as consequências podem ser devastadoras.

De 2000 a 2019, quase metade do Cerrado queimou: foram mais de 825 mil km², ou 41% do território do bioma, segundo dados do MapBiomas. É bioma brasileiro mais afetado pelo fogo nas últimas duas décadas.

“O pequi floresce na estação seca, entre julho e agosto. Mas nesse período está tendo muita queimada, o que prejudica o desenvolvimento do fruto”, conta Joel Diniz, vendedor de pequi. 

Assim como o pequizeiro, outras plantas também precisam florescer na estação seca para darem frutos na primavera. E é justamente na estação seca que ocorrem mais focos de incêndio no Cerrado, todos causados pela ação humana. 

“Cada ano tem mais incêndio. Quando o fogo vem e queima, as plantas que estão investindo no fruto e querendo produzir sofrem muito mais que espécies que não dão fruto”, observa Claudomiro De Almeida Cortes, coletor de sementes. 

Os frutos não só são parte importante da geração de renda de milhares de famílias do Cerrado, como também são fundamentais na reprodução das plantas. Sem flor, não há fruto. E, sem fruto, não há novas plantas. 

Manejo do fogo

O uso antrópico do fogo, no entanto, não precisa ser desastroso. Kuhlmann aponta que os registros da prática do fogo por seres humanos no Cerrado remontam a 12 mil anos atrás, quando se estima que os primeiros homo sapiens chegaram à América do Sul. 

“Desde tempos remotos, o fogo vem sendo usado pelos seres humanos no Cerrado para modificar o ambiente, limpar áreas para pastagens e plantios”, explica o biólogo. “Porém, dado o aumento populacional e expansão do desmatamento no cerrado, essa prática ancestral vem se intensificando e se tornando insustentável”.

Em outubro de 2021, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo. O texto estabelece regras para o uso controlado do fogo, que será permitido para práticas agrícolas (com autorização prévia), combate a incêndios, práticas culturais e de subsistência de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, entre outras situações. A proposta aguarda votação pelo Senado. 

O CMBio e o Ibama/Prevfogo implementaram um programa piloto de manejo integrado do fogo em 2014. Segundo o ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), o programa conseguiu reduzir, em 3 anos, 57% das áreas queimadas por incêndios em algumas unidades de conservação.

Pequi: o ouro do Cerrado

Pequi (Caryocar brasiliense) | Foto: Marcelo Kuhlmann

Pequi (Caryocar brasiliense) | Foto: Marcelo Kuhlmann

O pequi (Caryocar brasiliense), fruto do Cerrado mais consumido e símbolo do Centro-Oeste brasileiro, é um polêmico divisor de opiniões. Para quem o experimenta pela primeira vez, costuma-se dizer que a reação é invariavelmente uma das duas: amor ou ódio.

Seu nome vem do tupi (py: pele, qui: espinhos) e, traduzido, seria algo como “pele espinhenta”. Isso porque o pequi guarda um segredo perigoso entre a polpa e a amêndoa: uma camada de minúsculos espinhos que podem machucar e são muito difíceis de remover. Por isso o pequi não é uma fruta que se morde, mas se rói.

Do pequi, tudo se aproveita: a casca é usada para fabricar sabão e farinha. A polpa, rica em vitamina C, vitamina A e lipídios, protagoniza receitas típicas da região, como o frango com pequi ou o arroz com pequi. É da polpa que também se extrai o óleo, tradicionalmente usado na pele por povos indígenas como repelente, protetor solar, cicatrizante e hidratante. Mais recentemente, o óleo também tem sido utilizado na culinária devido a suas propriedades nutricionais. Já a amêndoa, semelhante a uma castanha, é consumida torrada e tem altos níveis de proteínas, gorduras boas, fibras e minerais. 

“É a carne do pobre. Eu gosto muito mesmo”, conta Eliane Santos de Jesus, de 50 anos, que costuma comer o pequi com arroz, com açúcar ou com farinha.

Eliane mora em Pirapora, no norte de Minas Gerais, e a maioria das pessoas que ela conhece compartilham o mesmo sentimento: “Na minha família todo mundo gosta, lá em casa todo mundo é apaixonado por pequi”.

No norte de Minas Gerais, os pequizeiros são abundantes. “No bairro onde eu moro, eu pego pequi na porta de casa”, diz. “Se eu achar, eu como todo dia”.

Outras frutas, entretanto, não têm a mesma sorte. “Tem frutas que hoje a gente não vê mais. Coquinho macaúba, nem ouve mais falar, mas sente falta. A gente foi criado com aquilo. Mangaba, murici, baru, mutamba, faz anos que não se vê”, conta Eliane.

Foto: Joserlan Gomes/Facebook

Foto: Joserlan Gomes/Facebook

Foto: Guilherme Henrique Silva/Facebook

Foto: Guilherme Henrique Silva/Facebook

Joel Soares Diniz Soares/Facebook

Joel Soares Diniz Soares/Facebook

Sabor de saudade

Dizem que o pequi é “bom para a memória”: quem come uma vez, nunca mais esquece o sabor e o perfume penetrante.

Luiza Costa é natural de Goiânia, mas atualmente mora em Florianópolis. Mais de 1.500 quilômetros separam as duas capitais. Comer pequi, para ela, é uma forma de lembrar do lugar onde nasceu e cresceu. "Pequi tem sabor de casa. Eu posso estar em Floripa, mas se eu tenho pequi congelado e faço uma receita com ele, o olfato e o sabor realmente me evocam a memória da minha casa, da panela de ferro enorme da casa da minha vó", conta.

Wellington Soares é mineiro, mas mora no Rio de Janeiro desde criança e só conheceu o pequi aos 20 anos de idade, no mercado municipal de Belo Horizonte. Mas foi amor à primeira vista. “Primeiro me encantei com o cheiro. Depois da primeira vez que comi, veio a paixão pelo fruto”, conta. 

De volta ao Rio de Janeiro, Wellington procurou o fruto, mas só encontrou uma vez. Ainda assim, não levou o pequi para casa. “Fui no sacolão comprar legumes, e logo que cheguei na porta senti o cheiro de pequi e falei para a minha esposa, emocionado: ‘eu não acredito!’”

“Quando cheguei na banca haviam poucos frutos, e uma senhora estava com eles na mão. Falou que tinha visto na TV, mas não sabia como comer. Então pedi licença e expliquei. Ela me agradeceu e foi embora levando os últimos frutos e me deixou sem nenhum”, conta.

Como não encontrou mais o pequi no Rio de Janeiro, Wellington entrou no grupo “Amantes de pequi”, no Facebook. Por lá, faz contato com vendedores que enviam o “ouro de Goiás” para sua cidade. 

O grupo conta com mais de 1.700 membros. Pessoas de todos os Estados e até de fora do país usam o espaço para trocar experiências e entrar em contato com vendedores de pequi. Muitas delas dizem que cresceram comendo o fruto no Centro-Oeste. Dessa forma, buscam ativar, através do sabor peculiar do fruto, a memória afetiva da infância.

Reprodução/Facebook

Reprodução/Facebook

Em determinada publicação, uma mulher perguntou quais eram os benefícios do pequi para a saúde. Joel Diniz, administrador do grupo, não respondeu a pergunta logo de cara, mas foi assertivo: “Eu particularmente acho que o pequi tem um sabor de saudades boas, de lembranças de tempos bons. Sempre que converso com pessoas que estão com vontade de comer novamente esse fruto, elas falam um pouquinho de sua infância”.

Joel nasceu em Buritiá Alegre, no interior de Goiás, e diz que tem 40 anos de história com o pequi – hoje ele tem 52. 

Quando criança, saía com os irmãos em uma carroça para “apanhar” pequis no meio do cerrado. Pegava os que tinham caído do pé, depois colocava para “madurar”. O processo consiste em cavar um buraco no chão, forrá-lo com palha, colocar o pequi e cobrir com mais palha. Após 2 dias, conta Joel, está pronto para comer. 

Na adolescência, mudou-se com a família para Goiânia em busca de melhores condições de vida. “Sentimos muito em deixar para trás os pequizeiros. Por sorte, fomos morar numa rua com feirantes que vendiam pequi. Foi aí que comecei a vender também”, conta.

Joel (à esq.) e seu amigo Ailton (à dir.) vendendo pequi em Goiânia em 1987 | Foto: arquivo pessoa de Joel Diniz

Joel (à esq.) e seu amigo Ailton (à dir.) vendendo pequi em Goiânia em 1987 | Foto: arquivo pessoa de Joel Diniz

Joel e seu filho, Danny Willightom, em Goiânia em 1987 | Foto: arquivo pessoal e Joel Diniz

Joel e seu filho, Danny Willightom, em Goiânia em 1987 | Foto: arquivo pessoal e Joel Diniz

Ponto de venda de pequi de Joel em Ribeirão Preto (SP), em 1997 | Foto: arquivo pessoal de Joel Diniz

Ponto de venda de pequi de Joel em Ribeirão Preto (SP), em 1997 | Foto: arquivo pessoal de Joel Diniz

Joel com caixas de pequi em 2021 | Foto: arquivo pessoal de Joel Diniz

Joel com caixas de pequi em 2021 | Foto: arquivo pessoal de Joel Diniz

“Eu particularmente acho que o pequi tem um sabor de saudades boas, de lembranças de tempos bons. Sempre que converso com pessoas que estão com vontade de comer novamente esse fruto, elas falam um pouquinho de sua infância”.
Joel Diniz

Economia invisível

O pequi movimenta uma cadeia extensa de coletores, comerciantes, ambulantes e varejistas no Centro-Oeste do país. A renda de comunidades e municípios inteiros, como é o caso de cidades localizadas no norte de Minas Gerais, gira em torno do extrativismo do fruto. “Muita gente tem casa boa, carro bom, só de colher e vender os frutos do cerrado”, conta Eliane. 

Mas não existem dados oficiais que registrem essa movimentação, uma vez que ela ocorre principalmente na informalidade. Tampouco é possível saber a quantidade de pequizeiros que existem no Cerrado ou até onde vai a capacidade da espécie de suportar o extrativismo.

Alguns estudos, no entanto, ajudam a dimensionar o tamanho dessa cadeia. Segundo a pesquisa “Economia invisível, sociobiodiversidade e conservação do cerrado: o panorama do pequi mineiro”, de 2017, os dados oficiais registram a extração de quase 68.000 pequis por ano em 96 municípios com ocorrência do fruto em Minas Gerais.

Ainda assim, o artigo conclui que há grande subestimação da situação real do extrativismo do fruto. “Pequis e seus produtos são comercializados preferencialmente em feiras locais ou em outros locais como rodovias, praças, ‘de porta em porta’, ‘nas ruas’, ‘sob encomenda’ e ‘para atravessadores’ [...] sem emissão de nota ou qualquer outro controle de mercado”, escrevem os autores.

O estudo calcula que “131.343 pés de pequi seriam explorados sem nenhuma política pública de manejo específica para essa importante espécie do Cerrado”.

Colheita de pequi em Tocantins | Vídeo: Joel Soares Diniz/Facebook

Colheita de pequi em Tocantins | Vídeo: Joel Soares Diniz/Facebook

Manejo sustentável

Com o objetivo de contribuir para a preservação do fruto, o biólogo Washington Luis de Oliveira e o engenheiro florestal e pesquisador da Embrapa Aldicir Scariot desenvolveram o Guia de Manejo Sustentável do Pequi, uma cartilha voltada a comunidades rurais e tradicionais, técnicos e organizações que desejam coletar de maneira sustentável os frutos do pequizeiro. 

A cartilha foi criada com base em pesquisas científicas e no conhecimento de coletores experientes, que aprenderam desde cedo que manter o pequizeiro saudável não só ajuda a preservar a biodiversidade, mas também é vantajoso por aumentar o ciclo produtivo da planta e gerar mais renda.

Algumas das recomendações de boas práticas são coletar apenas os frutos do chão, não quebrar os galhos e cuidar para não pisar nas mudas. 

Além do extrativismo severo, o corte dos pequizeiros para uso da madeira também coloca a espécie em risco. O pé de pequi é protegido por lei em Minas Gerais desde 1992. A nível nacional, uma portaria de 2019 do Ministério do Meio Ambiente proibiu o corte do pequizeiro em áreas fora da Amazônia. Apesar disso, cortes irregulares em propriedades privadas são comuns.

Mesmo se a lei fosse respeitada, especialistas alertam que a proteção da espécie isolada não seria suficiente. “O bioma como um todo está ameaçado, dado o desmatamento acelerado nos últimos 60 anos principalmente para a agricultura, pecuária, mineração e urbanização. É preciso considerar o ecossistema de forma integrada”, alerta o doutor em botânica Marcelo Kuhlmann.

“A conservação dos pequizeiros também depende dos animais, que por sua vez, dependem da presença de outras plantas do Cerrado. Para garantir o futuro do pequi, precisamos conservar as outras plantas e os animais do Cerrado”, aconselha o Guia de Manejo Sustentável do Pequi. 

Os principais polinizadores do pequizeiro são os beija-flores e os morcegos. Já o trabalho de dispersão das sementes é realizado por mamíferos, como cotias, catetos, queixadas, lobos guará e antas, além de aves como gralhas e araras.

Dois catetos no Parque Nacional de Brasília |

Queixadas no Parque Nacional de Brasília | Foto: Mateus Mello

Foto: Mateus Mello

Uma pesquisa de 2007 do Programa de Pós-Graduação em Ciências Genômicas e Biotecnologia da UCB observou que os morcegos não estão levando o pólen para áreas distantes dos pequizeiros, porque preferem permanecer em áreas de vegetação preservada. Dessa forma, a distribuição da espécie tende a ficar cada vez mais restrita. 

A dispersão de sementes também está ameaçada. "Quando a gente olha para o mapa do Cerrado, vemos pontinhos verdes fragmentados. São necessários projetos para criar corredores ecológicos, conexões entre esses fragmentos, para que tanto a flora quanto a fauna possam transitar entre esses fragmentos mantendo as funções ecológicas”, explica Kuhlmann. 

Existe uma expressão popular no Centro-Oeste que diz: “É pra acabar com os pequis de Goiás”. A expressão denota o absurdo de algo inconcebível de acontecer, tamanha a abundância do fruto. Apesar disso, esse cenário já não está tão distante.

Cerca de 15 anos depois de sair de Buritiá Alegre, Joel voltou para visitar a cidade da sua infância. Era 1998. Diz que chorou ao ver que nada sobrara dos frutos que, antes, eram abundantes. No horizonte, só via soja. “Eu fico muito triste em pensar que talvez meus netos não vão conhecer o pequi, o araticum, o cajuzinho”, conta Joel.