Rara interação entre botos e pescadores é documentada de forma inédita pela ciência
Escassez de tainha pode ameaçar cooperação, indica estudo com dados coletados ao longo de 15 anos
Pesquisadores descrevem com dados inéditos a complexidade de uma relação entre espécies
Uma dança sincronizada. Uma colaboração cheia de instantes decisivos. Uma interação que resulta em benefícios para o boto e para o pescador. Tradicional e reconhecida no Sul do Brasil e no mundo, a parceria entre botos pescadores e homens na pesca da tainha foi documentada de forma inédita pela ciência, em um trabalho que envolveu a Universidade Federal de Santa Catarina, a Oregon State University (OSU), nos Estados Unidos, e o Max Planck Institute, na Alemanha (MPI). A sincronia perfeita necessária entre o sinal emitido pelo animal e a soltura da rede e os riscos que uma possível escassez de tainha podem trazer à prática estão entre os principais resultados do estudo.
Munidos de drones, imagens subaquáticas e tecnologia de captação de sons marinhos, a equipe, na UFSC liderada pelo professor Fábio Daura-Jorge, do Departamento de Ecologia e Zoologia, registrou detalhes em frações de segundos do comportamento dos botos e dos pescadores, além de ter se alimentado de um banco de dados de mais de 15 anos de monitoramento da cooperação - uma das poucas registradas na biologia.
“Sabíamos que os pescadores estavam observando o comportamento dos botos para determinar quando lançar suas redes, mas não sabíamos se os botos estavam coordenando ativamente seu comportamento com os pescadores”, disse Maurício Cantor, professor da OSU, colaborador da UFSC e líder do estudo.
“Usando drones e imagens subaquáticas, pudemos observar os comportamentos de pescadores e botos com detalhes sem precedentes e descobrimos que eles capturam mais peixes trabalhando em sincronia”, disse Cantor. “Isso reforça que esta é uma interação mutuamente benéfica entre os humanos e os botos.”
Essa sincronia é determinante para o sucesso do pescador e para a manutenção da pesca tradicional, explica Daura-Jorge, que coordena, na UFSC, um Programa Ecológico de Longa Duração do Sistema Estuarino de Laguna e adjacências, financiado pelo CNPq. “Temos um longo histórico de estudos da UFSC sobre essa interação, que é muito valorizada localmente”, comenta o professor. “Desde a década de 1980, importantes descrições de como funciona essa interação vêm sendo feitas, mas desta vez, com ajuda de tecnologia apropriada, pudemos testar algumas hipóteses e confirmar que se trata de uma interação com benefícios mútuos”, explica.
Os avanços tecnológicos foram fundamentais para os resultados assertivos desse novo estudo. Uma metodologia multiplataforma identificou um “sincronismo fino entre as duas partes”, com benefícios para ambas. A pesquisa, publicada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, uma das principais da área, rastreou simultaneamente tainhas, botos, e pescadores acima e abaixo da água para desenvolver uma compreensão em escala fina de suas interações.
O estudo também teve como objetivo quantificar as consequências dessa cooperação, além de combinar os dados em um modelo numérico para prever o destino e propor ações iniciais para conservar essa interação rara. “A tainha é o principal recurso dessa interação, por isso nós utilizamos os dados da pesca local, que sugerem uma provável redução nos estoques de tainhas, para prever o que pode acontecer no futuro caso persista esse processo de redução da sua abundância”, explica Daura-Jorge.
Eles também descobriram que a sincronia de forrageamento - a busca pelo alimento - entre botos e pescadores aumenta substancialmente a probabilidade de pescar e o número de peixes capturados. Outro dado importante identificado pelo estudo é que a interação é benéfica à sobrevivência dos animais, já que aqueles que praticam a pesca cooperativa têm um aumento de 13% nas taxas de sobrevivência. De acordo com Daura-Jorge, isso também ocorre porque, enquanto estão entretidos cooperando e interagindo com os pescadores, os botos ficam longe de outros perigos quem podem leva-los à morte, como pescarias ilegais que ocorrem na área.
A pesquisa também apontou que a compreensão dos pescadores sobre a tradição da pesca correspondia às evidências produzidas por meio de ferramentas e métodos científicos. “Questionários e observações diretas são maneiras diferentes de olhar para o mesmo fenômeno e combinam bem”, disse Cantor. “Ao integrá-los, pudemos obter a imagem mais completa e confiável de como esse sistema funciona e, mais importante, como ele beneficia tanto os pescadores quanto os botos”.
Desorganização do cardume facilita a pesca
O estudo descreveu os mecanismos da cooperação entre botos e pescadores a partir de imagens aéreas e subaquáticas e de hidrofones. Os resultados confirmam que os botos empurram o cardume de tainhas para a barreira de pescadores, à margem do canal. Quando os pescadores lançam suas tarrafas, após uma sinalização dos botos - que pode ser, por exemplo, um bater de cauda - o cardume de tainhas se desorienta, tornando-se presa fácil para os botos.
“Uma das curiosidades que registramos é que, quando botos e pescadores sincronizam esse comportamento, os botos emitem um som específico, geralmente utilizado para captura de presas. Quase sempre, quando havia uma grande captura de tainhas pelos pescadores, esse som era registrado, sugerindo que os botos também tentam capturar algo neste momento”, explica Cantor. 86% de toda a captura registrada pelo estudo veio da sincronia.
“Quando os botos estão presentes, os pescadores são 17 vezes mais propensos a pescar tainha, e capturam quase quatro vezes mais”, sinaliza Cantor. “Os botos claramente geram benefícios para os pescadores, mas aparentemente, esta fina sincronia, depende da disponibilidade de tainhas, e não ocorre quando estas estão ausentes”, completa.
Durante interações síncronas, ocorridas em cerca de 45,8% de 2.805 eventos independentes, os dois predadores coordenam suas ações: botos abordam pescadores de perto, a uma distância aproximada de 12m a 3,95 m, fazem uma sugestão comportamental - geralmente, um mergulho profundo repentino - que os pescadores interpretam como o momento certo para reagir e imediatamente fazer o lançamento das redes.
Os cientistas documentaram, ainda, outros três tipos de interações classificados como assíncronos e definidos por ações e reações incompatíveis: ou apenas um predador age ou os pescadores reagem incorretamente. Nesses casos, as capturas de tainhas pelos pescadores são muito menores, ou inexistentes
Redução na disponibilidade de tainhas pode ameaçar a interação boto-pescador
A equipe de pesquisa também trabalhou com dados sobre a pesca da tainha ao longo dos últimos anos. Os indicadores sugerem que, com o passar do tempo, o volume de peixes vem caindo. “Se essa tendência se confirmar e continuar, nosso modelo matemático sugere uma redução dramática na frequência dessa interação, com consequências importantes para a conservação dos botos”, explica Daura-Jorge.
Isso porque, quando começar a faltar alimento ou a interação se tornar pouco benéfica, os animais passarão mais tempo distantes de onde ficam mais seguros, conforme indicam os próprios dados do estudo.
De acordo com o artigo, o estoque de tainha no sul do Brasil é superexplorado localmente pela pesca regional de pequena escala e pela pesca industrial, o que contribui para o declínio da disponibilidade local de tainha. Por consequência, isso pode ter um impacto na parceria documentada pela pesquisa. “Falhas na disponibilidade de tainha podem reduzir os benefícios mútuos, fazendo com que os pescadores abandonem sua cultura e expondo os botos à captura acidental de práticas de pesca, transformando o raro mutualismo em mais um conflito”, pontuam os cientistas.
O artigo alerta que conflitos entre humanos e animais selvagens têm consequências graves para os cetáceos, por isso também é importante que se pense em ações de conservação para garantir o futuro da prática. Tanto os botos quanto os pescadores dependem de uma população de peixes forte e saudável para que o relacionamento seja bem-sucedido. “Não sabemos o que vai acontecer no futuro, mas nosso melhor palpite, usando nossos melhores dados e melhores modelos, aponta que, se as coisas continuarem como estão agora, chegará um momento em que a interação deixará de ser do interesse de pelo menos um dos predadores”, explica Daura-Jorge.
Para evitar que isso ocorra, seria necessário, por exemplo, garantir um manejo sustentável da pesca da tainha, além da redução do uso de redes de pesca ilegais que geram capturas acidentais de botos. Desenvolver políticas de valorização da atividade do pescador que interage com botos, tanto do ponto de vista cultural quanto econômico, também pode garantir a continuidade mesmo em cenários de menor volume de tainha disponível. “Esse fenômeno de interação mutuamente benéfica entre animais selvagens e humanos está se tornando cada vez mais raro e parece estar em risco global”, alerta Cantor. “Assim como a diversidade biológica, a diversidade cultural também é importante; é essencial preservar ambas”, complementa.
Onde estão e quem são os botos pescadores
Os botos pescadores vivem há anos no sistema estuarino de Laguna e são reconhecidos por suas características morfológicas, sendo também batizados com nomes pela comunidade de pesca. No ano passado, Caroba, o mais antigo boto pescador da região morreu aos 50 anos, possivelmente de causas naturais.
A equipe liderada por Daura-Jorge realiza o monitoramento dessa população há 16 anos. Ele explica que nem todos praticam a pesca cooperativa com pescadores. Na localidade, há entre 50 e 60 botos, mas menos da metade - por volta de 40% - são cooperativos.
Algumas hipóteses são sugeridas para explicar porque apenas alguns botos se envolvem na interação com pescadores. “Essa prática envolve questões de aprendizado e desenvolvimento cultural animal, algo bem discutido na literatura, e alguns botos podem ser mais propícios que outros a aprender, talvez por um traço de personalidade ou por consequência de suas relações sociais com outros indivíduos”, explica.
De acordo com ele, no que se refere à população do local, aparentemente não há variações significativas ao longo dos anos, apesar das muitas atividades humanas que contribuíram para a morte não natural de alguns indivíduos. “Esse número constante de indivíduos é uma boa notícia, mas não o suficiente para despreocupações e comemorações. Para uma espécie que pode viver mais de 50 anos, que começa a reproduzir só depois dos 10 anos, uma população de 50 indivíduos é uma população muito pequena e que estará sempre em risco de extinção”, explicou, em texto no qual descreve a atividade de monitoramento.