
Lendo pelo celular, hein? Para uma melhor experiência, utilize o dispositivo na horizontal (modo paisagem). Boa leitura! 🤓
Renata chorava, chorava e agarrava-se às entranhas da mãe. Era hora do parto. Via a luz no fim do ventre e aterrorizava-se com o vislumbre do mundo. “Parece que eu já sentia tudo que ia acontecer, tudo que eu ia passar, tudo que ia sofrer só por ser eu”. Aos 19 anos, ela relembra um pesadelo que teve na adolescência, em que seu pavor era o próprio nascimento. Apesar do medo, Renata Moraes nasceu duas vezes. A primeira na cidade de Pelotas, em 2001, com uma vida que não a representava. A segunda, em 2018, quando fez como tantos outros gaúchos e seguiu rumo a Florianópolis, capital catarinense. Quem a conheceu na ilha foi apresentado também ao alívio de Renata por finalmente identificar-se como mulher.
Para entendê-la, é preciso ler seu corpo. As mãos exibem unhas curtas, roídas até sangrar, na ponta de dedos longos que vez ou outra seguram um cigarro. No dorso da esquerda, o símbolo da comunidade transgênera ⚧️. São mais de 20 tatuagens narrando sua história na pele.
— A minha favorita… guria, nunca pensei nisso, sabia? Acho que não tem. Eu gosto de todas! Todas têm algum significado, mesmo que não seja militante, até porque a maioria foi feita por tatuadores próximos.
Tem um taco de beisebol com pregos desenhados com a expressão “racha macho” escrita no meio. Fez uma tatuagem da amizade com “afreak-se”, resumindo o lema “seja preta, seja louca, seja tu” do grupo.
— Querendo ou não, nosso corpo, nossa vivência é uma militância. Se não for pro meu corpo ser um símbolo de resistência pras pessoas que ainda não vieram, não tem sentido em estar vivendo — A cada novo desenho, Renata registra sua própria existência como mulher transgênera e travesti no Brasil. Isso por si só já é muito, mas ela ainda faz mais.
Desde que chegou em Florianópolis, aprende a transformar em arte o que há muito guardava no peito. Conheceu os duelos de rima freestyle no centro da cidade, em especial a Batalha das Minas. Encantou-se, mas mesmo entre mulheres não se via representada completamente. As vozes ali eram de mulheres cisgêneras, aquelas que foram identificadas como meninas assim que nasceram.
Aqui, abrimos parênteses.
Renata é uma mulher transgênera. Isso significa que, por razões biológicas, determinaram em seu nascimento que aquele bebê era um menino. Ao longo dos anos, enquanto lidava com o desentendimento do seu próprio corpo, Renata passou a identificar-se como mulher.
Ser uma pessoa cis ou trans é sobre identidade de gênero, como cada pessoa se percebe e se identifica. É comum que haja confusão com orientação sexual, mas uma coisa nada tem a ver com a outra: uma pessoa trans pode ser gay, lésbica, bissexual, heterossexual. O que nada tem a ver com querer, que fique claro. Renata não é mulher porque quer, mas simplesmente porque não se vê sendo qualquer outra coisa.
Durante nossas conversas, ela faz referência a si e a outras ora como “mulher trans”, ora como “travesti” — às vezes os dois juntos. Perguntei o porquê e qual termo ela gostaria que eu usasse neste texto. Renata pediu para que eu revezasse entre os dois e explica:
— Na sociedade em que a gente vive, quando falamos "mulher trans", as pessoas pensam em uma mulher que se operou, que é branca, tem silicone, que não trabalha na prostituição, que tem um emprego formal. E aí quando falamos em "travesti", pensam em um homem que se veste de mulher, que é negra, se prostitui e vende droga.
Sinto que é preciso dizer com todas as letras: uma travesti de forma alguma é uma “mulher trans que ainda não fez cirurgia”, como já foi senso comum nesta sociedade transfóbica — termo usado para definir a discriminação que tem pessoas trans como alvo. Travesti é uma identidade de gênero que vai muito além da genitália. Quando a comunidade transgênera adota “travesti” em seu vocabulário, apropria-se de uma palavra que já foi usada na tentativa de diminuir e desrespeitar suas mulheres e envolve, ainda, um debate sobre classes sociais.
— Travesti é um termo marginalizado para a mulher trans — completa Renata, que não deixaria nada de sua personalidade ficar pelas margens, pelas beiras, e exibe nas coxas grossas a tatuagem “FURIA TRAVESTY” — uma palavra em cada perna.
Cada palavra importa quando se conta uma história. Por essa razão, ao longo deste texto algumas delas estão na linguagem neutra. A causa trans contém também pessoas não-binárias (aquelas que não se identificam nem como homem, nem como mulher) e trocar "as" e "os" por "es" é uma forma de incluir essa parcela da sociedade. A Renata tem amigues com essa identidade, então vá se acostumando.
Fecha parênteses. Voltemos às rimas.

Em Florianópolis, Renata descobriu ser artista. | Foto: Matheus Trindade
Em Florianópolis, Renata descobriu ser artista. | Foto: Matheus Trindade

São mais de 20 tatuagens pelo corpo narrando sua história. | Foto: Pedro Jorge Afrop
São mais de 20 tatuagens pelo corpo narrando sua história. | Foto: Pedro Jorge Afrop

Renata é identifica-se como travesti e mulher trânsgenera. | Foto: Pedro Jorge Afrop
Renata é identifica-se como travesti e mulher trânsgenera. | Foto: Pedro Jorge Afrop
As batalhas de hip hop são uma forma de resistir e ocupar espaço na cidade. Ali, nossa protagonista encontrou seu próprio espaço. Aos pouquinhos, incentivada pelos “Vai, Rê! Arrasa!”, criou coragem e começou a rimar.
Renata pega o microfone e berra entre as batidas. Já tem tudo guardado dentro de si há tempo demais e precisa que os outros escutem. Nas músicas, fala sobre ser travesti, mulher transgênera e as opressões que partem disso. A arte vem em voz alta, no grito, porque é forma de expressão e também pedido de socorro.
— O Brasil é o país que mais mata travestis no mundo, sabe. E eu estar ali, sendo uma travesti, neste país, rimando numa batalha cisgênera... Porra! Já é história, gata! Bi, é babado!
Renata foi uma das primeiras mulheres trans a rimar naquela batalha e viu gente sair do espaço por não querer ouvi-la. Havia, no entanto, quem ficava e escutava, por compartilhar da experiência ou pela empatia gerada através dos versos. Encontrou sua forma de resistir também pela voz. “Mas e as outras? E as minhas?”, perguntava quando olhava para os lados. Assim, com suas amigues, fundou a primeira batalha LGBT de Florianópolis, a Batalha das Monas. Um espaço onde pessoas não-héteros e não-cisgêneras são a regra e compartilham suas vivências com a boca no microfone.
Além do freestyle, Renata Moraes compõe, faz shows curtos na rua e em transmissão pela internet, já lançou um videoclipe e está elaborando a estratégia de divulgação da próxima música. No meio disso, foi convidada também para trabalhar como modelo.
— Hoje eu não falo que sou compositora, eu só falo que sou artista, porque o que tiver pra fazer de arte a gente tá fazendo! — diz ela, que deseja um país em que seja valorizada por sua arte.
Renata quer viver de palcos. Pode até ser nos bastidores, mas o que ela gosta mesmo é de “falar a real”. De dizer o que sente enquanto se exibe em um top e casaco de pelinhos, uma saia chique, óculos escuros e a maquiagem que não costuma aparecer no seu dia a dia. Imagina-se a nossa Rihanna brasileira.
Renata fala muito sobre inspiração. Quer chegar longe para ter ao seu lado pessoas com a mesma identidade e forma de viver, erguendo-se umas às outras. Quer servir de referência para que outras travestis entendam a si próprias e saibam que elas também podem muito. Que a vejam cantando em palcos e ultrapassando barreiras, e saibam que não é fácil, mas é possível, como ela sabe quando assiste à Linn da Quebrada dando entrevista no programa Altas Horas.
— Onde que em 1900 e alguma coisa você ia ver uma travesti negra racializada falando o que ela quiser na TV? Nunca!
Recusa-se a se calar e quer provar que pode lotar plateias e fazer dinheiro como artista. Esta travesti está determinada a ir contra todos os que pensam que “vai ter que se prostituir para viver". O lindo corpo de Renata a permite fazer muito: canta, dança, modela, performa, grita.
“Quero mostrar pras pessoas que tentaram me derrubar e não me incentivaram, que eu consegui, não desisti e realizei meu sonho. Quero ser referência pras outras, pras travestis que tão nascendo agora mesmo! Porque nós somos muitas”

A geração de Renata encontra-se em algum ponto no meio do caminho. Já foram várias as conquistas e ainda assim há muitas batalhas pela frente. A menina quer fazer parte da mudança e segue na luta, mas já não tem esperanças.
— Só entre janeiro e agosto de 2020, já mataram mais travestis no Brasil do que no ano passado inteiro. Então mana, não tá mudando. Parece que tá tudo piorando. A violência tá cada vez pior.
Há registro de 129 mulheres transgêneras assassinadas nos primeiros oito meses deste ano. Cinco a mais do que em todo 2019, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra. De acordo com dossiê da organização, o Brasil mantém-se como o país que mais mata transgêneros ao longo dos últimos dez anos.
Renata preocupa-se com “as suas”, como refere-se às outras travestis. Mal saiu da adolescência e vê-se parte de um legado: teme pelas que vêm e pensa nas que já se foram, as mulheres mais velhas que anos antes fizeram a mesma coisa por ela. É uma herança que não vem de família, mas de identidade, luta e resistência.
“A gente tá em 2020 e a gente não pode esquecer da nossa história, das que morreram, das que lutaram”
— E o que você pensa para o futuro?, pergunto.
— A Renata no futuro… [pausa] Tem muitos casos de feminicídio, de transfobia. A estatística mostra que a expectativa de vida de uma travesti no Brasil é de 35 anos. Eu espero muito passar disso.
O dado citado por Renata foi levantado pela União Nacional LGBT, que aponta os 35 anos como expectativa de vida para pessoas trans — homens e mulheres — no país.
Renata é bastante nova. Completou 19 anos no 16º dia de 2020. Chorou neste aniversário, como chorou nos passados, por tantas razões que não sabe nem dizer. Uma delas é estar viva. Há lágrimas endereçadas ao sentimento de vitória de cada aniversário, misturado à dúvida assombrosa de “quantos anos mais eu vou fazer?”. Os dados aparecem com naturalidade em suas falas. Ela os sabe de cor porque permeiam sua história e atormentam seu cotidiano.
— Não interessa se eu não passar da estatística. O importante é gritar pra que um dia a gente consiga viver em paz. Se eu não vou viver em paz neste ano, nesta vida, daqui a 20, 30, 100 anos eu quero que elas vivam em paz.
Paz é tudo que Renata quer, para ela e para as suas.
Celebrando a vida, ela comemorou os 18 anos em janeiro do ano passado, na casa de um amigue no morro do Pantanal, em Florianópolis. Não tinha um real no bolso, mas juntou-se com os mais próximos e fizeram um churrasco.
Neste ano, foram para uma casa no Campeche, no sul da ilha. Passaram o dia todo na piscina. “Fizeram até um bolo pra mim. Eu fiquei muito emocionada, chorei pencas. Foi perfeito!”, diz com um sorriso no rosto e olhos ternos.
Gaúcha em solo catarinense, Renata é muito grata pelas amizades que tem. Em sua maioria, com pessoas negras e LGBT como ela. Compartilham histórias, apoiam-se umas nas outras e dividem o amor e interesse pelas artes. Ela não se atreve a nomear suas “superpoderosas”: “São muitas pessoas. Seria bem uó eu citar nomes, porque são muitas amigues babadeiras que me inspiram muito!”.
Foi uma delas, inclusive, que a convidou para viver em uma ocupação nos arredores da Universidade Federal de Santa Catarina, a UFSC. Antes, já tinha morado nos bairros Campeche e Pantanal, mas não conseguia arcar com o aluguel mais. Nunca foi um plano ir para a ocupação, mas Renata não tinha onde morar e precisou daquele espaço.
Em seu quarto, havia duas beliches e eventualmente alguns colchões pelo chão. São vários os cômodos abandonados que se tornam quartos improvisados, prontos para acolher jovens que precisam. Os colegas de casa organizam-se também para conseguir comer por um preço baixo.
Renata não tem um emprego formal. Vive de trabalhos independentes como artista e fazendo bicos em bares de grandes eventos na cidade. Enquanto isso, conclui o terceiro ano do Ensino Médio em um colégio público.
Na ocupação, cercada por universitários, além de um teto, enxergou uma oportunidade de ter acesso a recursos e apoio que aumentassem suas chances de ingressar na UFSC. Quer se formar em Psicologia, “mesmo que por esporte”, para conversar, entender pessoas e ajudá-las.
— Quero cursar a universidade não só pra ter diploma ou pra dizer que as travestis não tão só na prostituição e tão na universidade, pra bater no peito e tal. É também pelo intelecto, pra alguém falar uma coisa e eu saber.
— O que mais você gostaria de aprender?
— Muita coisa! Queria costurar, fazer meus looks. Fazer meu cabelo. Queria produzir as minhas músicas sem depender de ninguém. Muita coisa mesmo!
— E o que sabe fazer bem?
— Ai que pergunta difícil! É muito louco, porque às vezes a gente não bota fé em nós mesmas. Eu não posso te dizer que faço muito bem uma coisa... Um exemplo: os policiais. Como um policial vai dizer que ele faz muito bem as coisas dele, se tudo que a gente tá vendo é que são eles quem mais maltratam pessoas racializadas? Eu não posso dizer que ele é bom. A gente é realmente bom em alguma coisa? Eu não posso te dizer que eu rimo bem, se você não entende minha rima, o conceito, a história... Não sei responder sua pergunta.

Como artista, ainda quer aprender a fazer muita coisa por conta própria, da costura dos looks à produção de suas músicas. | Foto: Arquivo pessoal
Como artista, ainda quer aprender a fazer muita coisa por conta própria, da costura dos looks à produção de suas músicas. | Foto: Arquivo pessoal
A certo ponto da conversa, Renata solta um “Ai, eu não aguento mais militar, guria...”. Faz o breve desabafo em tom suave, com um riso triste nos lábios. Lutar para viver com dignidade é, no mínimo, cansativo (além de injusto). Mesmo assim, travestis que se colocam no mundo fazem isso todos os dias com uma coragem ímpar.
— Eu escolho militar, sim, porque a gente não pode simplesmente fingir ser outra coisa e deixar isso acontecendo, a gente ser agredida, a gente ser morta.
Renata não aguenta mais viver com medo. Medo dos olhares, medo de ir a um novo lugar e não saber o que vai encontrar. Nesta história, as agressões não são números distantes. É dor vivida na pele de alguém ainda muito jovem.
Em 1º de janeiro passado, ela comemorava a virada de ano com seus amigues. Às vésperas, comeram muito e divertiram-se, estendendo a festa até o sol se juntar. À tarde, estavam em dez na Praia do Campeche. Renata saía de um mergulho do mar quando viu uma das gurias sendo agredida. Quinze homens em volta. Gente apanhando, gente juntando as coisas, gente gritando “VIRA HOMEM!” e “MERECIDO!”, e gente só olhando, sem mover um dedo. Isso tudo quinze dias antes da Renata completar 18 anos.
— A gente apanhou e não deixou de ser o que é. Eles não aceitam como nós somos e por isso nos matam. E a gente morre porque a gente não vai deixar de ser quem a gente é — ela conta a história enquanto deixa a sala, vai para a varanda da casa e acende um cigarro.
“Eu não vivo só de militância. Eu também quero ser amada e quero amar também. A militância às vezes nos fere um pouco...”
Renata está na casa do pai, João Carlos Moraes, onde também moram sua madrasta e seus irmãos. Voltou para Pelotas por conta da pandemia. Passou dois anos fora do Rio Grande do Sul, e aproveita a oportunidade de estar perto da família e poder respirar fundo.
Fala com muito carinho do pai, diz que ele sempre entendeu tudo. Puxou dele muito de sua personalidade, em especial a força e resiliência. Não precisou esclarecer que era uma mulher transgênera, porque ele já sabia.
— Eu já era muito afeminada e praticamente já me identificava como, só não falava — conta ela, que passou pelo processo de identificação e transição em etapas.
Por volta dos 13 anos, assumiu-se gay para a família. Na verdade, quem o fez foi a diretora da escola, passando por cima de qualquer decisão de Renata — que já tinha características ditas femininas, mas para o mundo ainda era um menino. Ouviu de seu pai um reconfortante “Te amo e te aceito. Qualquer problema que tu tenha, me avisa” desde o início.
Renata ainda não era ela. Passou a lidar com a depressão e flertar com drogas que a fizessem esquecer do mundo. Até que conheceu um “boy”, e envolveu-se em uma relação homossexual. Um namoro importante e necessário, limita-se a descrever. Foi através do namorado que conheceu mulheres trans pela primeira vez. Enxergou em outras a materialização do que via dentro de si e compreendeu: “Quero ser assim, quero ser assim, quero ser assim!”.
O relacionamento durou dois anos e a transição de Renata começou no meio disso. O namorado ia para Florianópolis por conta dos estudos e ela resolveu acompanhá-lo. Viu ali a oportunidade de deixar tudo para trás. Contou com o apoio do companheiro, que garantiu ter o mesmo sentimento independentemente de como ela se identificava. Dizem que o ano só começa depois do Carnaval. Pois para Renata, que chegou na Ilha de Santa Catarina no último dia da festa, o que (re)começou foi a vida.
Cumpria o destino de seu nome: Renata, aquela que nasceu pela segunda vez.
Quando voltou para o Rio Grande, foi acolhida pela família. A mãe, dona Márcia Paiva, precisou de um tempo para entender que não era uma brincadeira, nem uma fase. Quem ela via como filho, voltou com o nome de Renata e os pronomes “ela” e “dela”. Foi um pouco mais relutante que o ex-marido, mas também aceitou sua filha.
— Ninguém deu pra trás. Foi suave, graças a Deus. Um privilégio, né? Ter uma família tão boa, que me ama do jeito que eu sou hoje. [...] Estamos em 2020, sabe? O mínimo que os pais têm que fazer é nos amar e nos aceitar do jeito que a gente é. Até porque muita coisa mudou! As pessoas podem se expressar, expressar suas identidades! Então sei lá, se você realmente ama o filho que você tem, você vai aceitar — diz ela com uma certeza e maturidade que gente mais velha às vezes não tem.
Com pais divorciados, em outra de nossas conversas Renata está na casa da mãe. Enquanto fala comigo — sempre por videochamada, por conta da pandemia —, a irmã de nove anos está a seu lado. Com Manuela, Renata tem uma preocupação especial. “Pra ela, que é criança, deve ser muito complicado essa coisa da minha identidade e tal. De ir embora pra Floripa e voltar outra pessoa totalmente diferente”. Faz um trabalho contínuo de educar e explicar à irmã. Além das duas meninas, há um terceiro filho, Gibson, cinco anos mais velho que Renata.
— E como foi a sua infância?
— Eu acho que fui feliz... Me vejo muito na situação dos outros, sabe? Tem criança que passa fome, que não tem onde morar… [toma um gole de chimarrão]
— O que você diria para você mesma mais nova, ali pelos 15 anos?
“Se eu nasci assim é porque é pra gata ser assim, entendeu? 💋😘️⚧️”

Com toda sua trajetória, Renata tem um orgulho imenso de quem é. Agradece por ter nascido exatamente como nasceu (bom, “não nesse país, né…”).
— Eu não queria ser uma mulher cisgênero. Nunca quis ter nascido uma mulher cisgênero. Não que eu não ache graça, as mulheres cisgêneros sempre foram referência. Mas eu me sinto muito mais feliz do jeito que eu sou. Eu me orgulho de ser assim e não gostaria de mudar — Acredita que cada coisa tem um propósito e viveu uma longa jornada até que gostasse de si e do seu corpo.
Há cerca de três anos, Renata começou seu tratamento hormonal. O adequado seria passar por uma avaliação com psiquiatra, realizar exames para checar a saúde, ter acompanhamento psicológico e, só então, iniciar a manipulação de hormônios com um endocrinologista. Feito isso, continuam as baterias de exame para monitoramento dos efeitos (positivos e colaterais) e o acompanhamento médico multidisciplinar.
Ela, no entanto, faz tudo por conta própria. Foi ao Ambulatório Trans de Florianópolis, mas não conseguiu arcar com os custos do transporte para exames e consultas. Além disso, todo o processo médico e burocrático para que tudo seja feito de forma correta leva tempo e Renata tem pressa.
— Só vou tomando e é isso. É perigoso, eu tenho consciência de que não é seguro. Mas eu tenho que tomar, não tem o que fazer! É isso ou eu fico numa disforia fodida. Eu tomo o hormônio e meu corpo começa a mudar, eu me sinto bem, começo a me gostar.
A disforia de gênero é o desconforto intenso que pessoas transgêneras sentem com seu próprio corpo. Isso acontece porque elas nascem com características físicas que não condizem com sua verdadeira identidade de gênero. A psicoterapia e o balanço nos níveis de cada hormônio acabam trilhando o caminho da aceitação e do conforto. Mas essa estrada tem curvas tortuosas e buracos demais. Sem acompanhamento médico, são reais os perigos de utilizar um hormônio inadequado ou até não conseguir lidar com as mudanças psicológicas.
— Tem todo o processo de querer tudo cada vez mais rápido, porque você vai mudando, seu rosto vai mudando, tudo vai mudando. E aí você quer que mude MAIS rápido, sabe? Vai tomando, vai tomando, e mistura coisas que acabam fazendo mal.
Renata sabe de tudo isso, mas não vê outra opção. Compra a medicação e toma uma pílula todos os dias. Uma vez por mês, prepara um hormônio injetável e aplica em si mesma. Existem os centros de saúde às pessoas transgêneras, mas há os “poréns” como falta de dinheiro ou tempo para que se tenha o acesso efetivo a esses postos. Não é algo que se resolve em uma única consulta. Renata não foi a primeira a realizar o procedimento sozinha e certamente não será a última. Além disso, a hormonização é um processo constante. Não há um fim.
— É uma coisa que tu vai fazer pro resto da vida — ela solta uma risada cansada — É difícil ser travesti nesse país.
Parte do processo de transição envolve olhar-se muito. Um olhar sempre alerta, afortunadamente doce, que enxerga e encanta-se com as transformações que acontecem devagarinho. Nem Renata, nem qualquer outra pessoa vive só de militância. Todo mundo precisa de afeto, carinho, amizade. Mesmo as mais valentes necessitam do amor.
E Renata Moraes conquistou o que talvez seja o mais importante dos amores: o próprio. Encontra-se com ele em frente ao espelho ou à câmera do celular. As entrevistas por vídeo foram sempre à luz do dia, a seu pedido, para que a imagem ficasse melhor. Passa os dedos entre os cabelos, joga as tranças para trás, manda beijinho no fim de certas frases. Na primeira vez que conversamos, apoiou o celular em algum canto e se enquadrou de corpo inteiro. Contou sua história enquanto ajustava suas roupas pretas e ajeitava seus cabelos. Não usou maquiagem nenhuma vez, mas apareceu sempre com olhos sinceros e um sorriso largo e bonito.
Sua personalidade pode ter vindo do pai, mas a aparência é toda da mãe. Chega a rir quando pergunto se são parecidas. “Muito!!! Nariz, rostinho, até o corpo é meio parecido. Todo mundo fala, inclusive, que a gente se parece muito!”.
Renata dedica tempos se olhando. É como se entretém quando está entediada. Faz caras e bocas, experimenta poses com seu reflexo. Investe horas olhando, olhando, olhando. Admirando, apreciando, contemplando. Longe do medo, o corpo de Renata, símbolo de tanta luta e resistência, descobre o ato revolucionário que é o amor.

A cada dia, Renata aprende a se amar mais e mais. | Foto: @terra_ki_furiosx
A cada dia, Renata aprende a se amar mais e mais. | Foto: @terra_ki_furiosx
