
Em meio ao calor do verão chileno, com sensação térmica beirando os 40 graus, Alex se viu sentado na calçada, chorando ao mesmo tempo que comia um burrito horrível e lembrava dos desastres daquele dia. Começou com um primeiro dia de aula no doutorado, em que ficou perdido no idioma, e terminou com ele ficando trancado para fora de casa, sem conseguir abrir a porta com a chave que tinha. Enquanto vivia a cena dramática, se perguntando o que estava fazendo ali, longe de casa, tentava se consolar recordando as escolhas que o levaram a Santiago.
Para entender o momento de Alex Moreira, de 33 anos, é preciso voltar ao começo dos anos 2000. O então adolescente paulista de origem humilde não tinha perspectivas de entrar no Ensino Superior logo depois de terminar o Ensino Médio. Ninguém da família tinha feito faculdade e o mais provável era seguir a trajetória de sair da escola, trabalhar para ajudar em casa e, talvez, juntar dinheiro para estudar no futuro. Apesar do rendimento escolar acima da média, a baixa auto estima não o deixava associar as boas notas à sua capacidade, por isso nem considerou prestar vestibular em universidades públicas na época.
— Em São Paulo temos USP, Unifesp, Unesp, o celeiro da educação superior. De maneira geral, você tem muita oportunidade, mas eu nunca pensei em fazer Fuvest. Hoje, quando eu olho para trás, eu acho que eu teria chances de passar, mas era o tipo de sonho que se você fosse mais pobre você não sonhava.
A mudança de cenário ocorreu com o incentivo de uma professora. “Tem uma prova que se chama Enem, você deveria fazer porque eu acho que é uma prova que você vai super bem”. Com essas palavras a educadora apresentou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o estudante. A professora fez a inscrição e Alex foi fazer a prova. O resultado veio um tempo depois pelos Correios, uma carta com gráficos que mostravam suas notas bem acima da média dos demais estudantes brasileiros. Ali, pela primeira vez na vida, se deu conta de que era inteligente.
Naquele ano de 2004, a prova passou a ser uma porta de entrada para instituições privadas, com bolsas de estudo do Programa Universidade para Todos (Prouni). Quando entrou na página do programa começou a entender que poderia ter uma bolsa para estudar em uma faculdade. Enquanto fuçava o site, tentava aliar qual universidade e curso escolher, até que veio a decisão: Pedagogia na Universidade Cruzeiro do Sul. Hoje, ele acredita que a escolha, de certa forma inconsciente na época, se deu pela importância de duas professoras em sua vida.
— Tem uma tia minha que me deu aula e ela foi muito importante pra mim e tem essa professora que me matriculou no Enem. Por isso que eu acredito muito que bons professores fazem muita diferença na vida das pessoas. Minha família não sabia o que era Enem e nada disso. Eu vim de um histórico e cultura que se você fizer toda a Educação Básica você vai trabalhar para ajudar sua família.
Alex realizou todo o processo de matrícula sozinho e sequer avisou a tia (que o criou e a quem ele também se refere como mãe), que só ficou sabendo quando o rapaz chegou com a notícia de que tinha ganhado uma bolsa. Como a universidade ficava próxima da casa da família, ela sabia quem era o público que frequentava o local e se assustou com a novidade de que o filho estudaria lá. Quando começou a entender, a preocupação virou orgulho. Alex lembra que sempre buscou autonomia e independência, um reflexo de uma pessoa que precisou amadurecer cedo.
Como primeiro membro da família na faculdade, Alex observa que foi muito assustador começar o Ensino Superior sem referências próximas. Hoje, com bom humor, ele lembra do período e conclui: haja terapia! Isso porque já no primeiro semestre da graduação, passou por episódios de preconceito por ser bolsista. Ele se recorda de quando a universidade juntou a turma de calouros com as anteriores para falar sobre o Prouni, que estava em pauta nos jornais e gerando debates. Na época, a discussão era de que os alunos bolsistas, oriundos de escolas públicas, abaixariam o bom nível do curso, um dos mais bem avaliados na área de Educação. Com esse pensamento e dúvidas em relação ao novo programa, a universidade concedeu bolsas para um aluno por turma em alguns cursos. Alex era o único bolsista do curso pelo Prouni e por isso tinha exigências diferentes dos outros alunos, que pagavam mensalidade, como a obrigatoriedade em apresentar uma média maior. Fora isso, a cada seis meses o estudante tinha que levar na central de atendimento da universidade uma carta que dizia que ele estava estudando. Durante a fala dos colegas, que incluíam declarações como “nosso diploma não vai valer nada”, ele ouvia calado e pensava: eles estão falando de mim. Até que uma professora se manifestou.
— Eu lembro que uma professora foi muito sensível e falou assim “olha, a média do Enem desses alunos que estão entrando é maior que a de vocês”. Eu fico até arrepiado lembrando disso, ela falou “vocês são ingênuos de pensar que essas pessoas que estão chegando têm menos conhecimento que vocês, muito pelo contrário”. Aí eu fui bem corajoso, levantei e dei um depoimento lá, falei: olha eu sou esse aluno e acho que vocês não sabem nada do que vocês tão falando, não é assim — relembra.

Fora do ambiente acadêmico, Alex manteve o trabalho que começou ainda no Ensino Médio, na área de marketing de uma rede de fastfood, onde começou como atendente e saiu somente quando estava prestes a se formar. A rede de fast food foi importante para seu crescimento profissional e também pessoal. Foi lá, que ele se entendeu como um homem gay.
— Eu sempre achava que as pessoas estavam fazendo mais por mim do que elas deveriam. Nunca achei que eu era responsabilidade da minha tia. Todo mundo que fazia algo por mim eu via meio como uma caridade. Quando você tem essa sensação, de que alguém está fazendo muito por você, você acha que nunca pode decepcionar, nunca pode fazer nada errado. Então, assim, eu era ótimo na escola, eu não podia dar problema... imagina se eu ia contar que estava começando a me descobrir gay.
Sem falar em casa sobre sua sexualidade, assim como a maioria dos amigos na época, ele foi vivendo e tendo suas experiências. Já formado, ele se mudou para o próprio apartamento, que havia financiado na planta alguns anos antes. Foi aí que começou a se sentir seguro em contar para a mãe que era gay. A decisão de fato ocorreu quando Alex começou a se envolver com um rapaz que havia conhecido no trabalho, em São Paulo, mas que morava em outro estado. Um ano depois de se conhecerem, o namorado decidiu que iria se mudar para tentar a vida de vez no estado paulista. Alex não queria colocá-lo na posição de amigo para apresentar a família, então começou a se preparar para o momento que ele lembra claramente.
Com receio de não conseguir contar para a mãe, escreveu uma carta de cinco páginas dizendo que era gay, pedindo desculpa caso tivesse decepcionado e contando sobre a relação com o namorado. A ideia era ter a carta como plano B, caso não conseguisse falar. Antes de ir dar aula, foi almoçar na casa da mãe como de costume e pensava em como falar. Sem conseguir colocar as palavras para fora, o jeito foi entregar a carta e sair para o trabalho, sem ver a reação dela. Na escola, contou sobre a situação para uma amiga, que o orientou a ligar para casa. Ao ouvir a voz da mãe, constatou que ela estava bem e depois conversou com a irmã, que disse que os pais queriam conhecer seu companheiro.
Mesmo com o entendimento tardio, como classifica, sobre sua sexualidade, ele lembra que desde muito cedo sofreu bullying por ser gay. Alex conta que dos oito anos em diante ouviu todo o tipo de piada. Sem conseguir ter uma reação, sofria calado. Quando se tornou professor, percebeu que o ambiente da sala dos professores também era problemático, com reprodução de preconceitos e piadas com os alunos, o mesmo tipo de situação que vivenciou como estudante. Ele queria ser um profissional diferente e se recordou que na faculdade de Pedagogia não teve nenhum preparo para situações de acolhimento ou discussões sobre uma educação mais humanizada. A partir disso, ele foi tentar entender as violências na escola, o que resultou na sua pesquisa de mestrado, defendida em 2013. No programa de pós-graduação Gestão e Avaliação da Educação Pública da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ele desenvolveu a dissertação que analisa a implantação do programa Convivência Escolar em uma escola de São Paulo, discutindo o convívio escolar e a violência.
O título de mestre foi uma das realizações em meio a uma vida dedicada a estudar e ensinar. O currículo conta com especializações complementares como a de orientação educacional do Ensino Fundamental e Médio, o de história, sociedade e cultura, e o de liderança, inovação e gestão. Com uma carreira dedicada à educação pública, com passagens por escolas paulistas nos municípios de São Paulo, Suzano e Itaquaquecetuba, em 2014, ele deixou a docência de lado para trabalhar em organizações do 3º setor e com instituições privadas. Em uma empresa de consultoria, que trabalha na formação de professores e equipes gestoras, ele passou a atuar como coordenador geral de projetos, prestando serviços para secretarias de Educação do Brasil inteiro. Mais ou menos na mesma época, teve a oportunidade de viajar para países como Singapura e Moçambique para desenvolver temas ligados à Educação. Do trabalho com as secretarias, ele estruturou um projeto e enviou para o Congresso Internacional de Liderança e Melhoria Escolar, que ocorreria no Chile. A partir daí, veio a chance de voltar à academia para um doutorado internacional.
Doutorado em terras chilenas

A vontade de retornar ao ambiente acadêmico surgiu em meados de 2019. A oportunidade veio na viagem para o Congresso Internacional sobre Liderazgo y Mejora Escolar. Era julho, sua primeira vez no país e ele participava do evento, na Universidade Diego Portales (UDP), onde apresentou o trabalho que desenvolvia na formação de lideranças em secretarias de educação. Ao chegar no campus, Alex logo se encantou pelo local e em conversa com a diretora da faculdade de Educação começou a considerar fazer um doutorado na instituição.
— Ela me disse: “Alex, nós temos um doutorado aqui super pequeno, só entram 4 estudantes por ano. Tem uma bolsa. É super concorrido, temos poucos alunos estrangeiros, e se você se preparar, começar a ver, eu acho que você tem grandes chances, porque a sua trajetória tem tudo a ver com o perfil de alunos que buscamos.”
De volta ao Brasil, ele foi semeando a sugestão da profissional e decidiu aplicar para o programa de pós-graduação da UDP, ministrado em conjunto com a Universidade Alberto Hurtado. Na primeira fase do processo seletivo, Alex precisou criar um projeto de pesquisa, enviar duas cartas de recomendação e juntar "um monte" de documentos. Depois, fez uma prova em inglês e passou por uma entrevista virtual com os coordenadores do programa até finalmente ser aprovado. Com o resultado positivo, teve a difícil missão de escolher entre permanecer em São Paulo, onde levava uma vida confortável com companheiro, ou se mudar para outro país como bolsista, sem nem entender o idioma local. Motivado e com o apoio do marido, embarcou para Santiago para desenvolver a pesquisa sobre o papel do diretor de escola como um líder, além de aproveitar a oportunidade de estudar em um país referência em educação pública na América Latina.
— A minha pesquisa está na área de melhoria escolar. Então é uma linha que diz assim: a escola tem capacidade de melhorar a vida das pessoas. Esse é o grande tema, entender que a escola pode criar condições para mudar a vida das pessoas e fazer com que elas tenham uma melhora. Dentro dessa área tem algumas sub-linhas. Uma das coisas que mais faz a escola melhorar é o papel do diretor da escola, que é o que nós chamamos de liderança escolar no Chile. Eu tenho olhado como a gente pode ter bons diretores de escola pública no Brasil.
A mudança para a capital chilena ocorreu em janeiro de 2020. Alex já chegou ciente de que tinha muita coisa para resolver. A começar pela procura de uma moradia no país até então desconhecido. Hospedado inicialmente em um Airbnb, passou algumas semanas buscando um lugar para ficar, sem referências de bairros e com a barreira do idioma. Com a ajuda de um amigo que conheceu lá, encontrou um apartamento e pela primeira vez passou a dividir a casa com uma pessoa que não conhecia. Apesar de gostar do colega de casa, confessa que no começo ficava um pouco constrangido em usar as áreas compartilhadas da casa, como a cozinha. Ainda assim, ele foi se adaptando à rotina e ao lugar, que era bacana e cabia dentro do seu novo orçamento, menor do que o que tinha quando estava no Brasil. Para se manter com a bolsa de 650 mil pesos chilenos — pouco mais de R$ 5 mil na cotação de abril de 2021 —, Alex precisou mudar o padrão de vida que tinha conquistado em São Paulo. Baseado em suas pesquisas por preços de aluguel e idas ao supermercado, ele concluiu que, em comparação com sua cidade, o custo de vida em Santiago é muito maior. De acordo com o banco de dados Numbeo, em 2021, a capital chilena tem o terceiro maior custo de vida da América do Sul, já o município brasileiro aparece em 10º.
Pelo alto custo na cidade, Alex observa que o lazer por lá geralmente é mais caseiro. Se no Brasil é comum ir a bares e sair à noite, em Santiago a reunião com os amigos costuma ser em casa, regada a vinhos e pães. Ele se adaptou bem ao novo estilo e lembra de uma situação engraçada que passou quando foi ao mercado comprar bebida alcoólica para consumir em casa.
— Uma vez eu estava no mercado e na hora em que eu estava pegando a bebida o rapaz falou “não pode, tem a lei municipal, senhor.” Aí eu pensei comigo: a lei municipal é [proibido vender para] menor de 18 anos. Nossa, fiquei me achando, tava passando por 17. Peguei um fardo de cerveja, coloquei no carrinho e fui. Quando eu tava no caixa, me achando, a mulher “senhor, não pode, tem a lei municipal”. Aí eu já tava pegando o documento, todo orgulhoso e ela riu da minha cara. A mulher falou “não, meu querido, eu sei que você tem mais de 18, é que não pode comprar bebida alcoólica antes do meio-dia."
Além da nova forma de lazer, foi se adequando também à rotina intensa de estudos no doutorado, em um estilo diferente da base que tinha de pós-graduação no Brasil. Os alunos da turma do ano anterior, nas apresentações do primeiro dia, já "tocaram o terror" falando que a dedicação ali no doutorado era tanta que casamentos chegavam ao fim e os estudos iam das 8h às 22h. Alex até pensou em desistir, não pelos comentários dos veteranos, mas por se sentir uma fraude e reviver as inseguranças que o faziam se questionar se tinha mérito para chegar onde chegou.
Antes de estar chorando na calçada de casa, trancado para fora, no que classifica como o pior dia no país, o doutorando se viu perdido na primeira aula. Depois das apresentações com os outros estudantes do programa, a classe começou e ele, ainda aprendendo o espanhol, não entendeu uma palavra dita pelo professor. Com uma turma de apenas quatro alunos, Alex via os colegas fazendo anotações e conta que "por dentro queria chorar". Lembrava de tudo o que tinha deixado para trás para poder estar ali e pensava que não aguentaria os quatro anos de estudos. Para tentar driblar a situação, seguiu a pose dos colegas e abriu o notebook para escrever. Enquanto a aula rolava, sem pensar muito ele digitava uma carta para si mesmo.
— Eu nunca esqueço desse dia. Eu comecei a digitar meio que por osmose. Tá todo mundo digitando vou digitar pra fingir que estou entendendo, para não passar como o estrangeiro que não entende nada. Aí comecei a escrever coisas para mim mesmo, falava assim: “Alex, calma! Tudo isso vai passar, é o primeiro dia, tenha paciência. Você não está entendendo agora, mas vai entender.”
De fato, a sensação de estar para trás foi passando. Conhecendo mais o programa e os colegas, viu que alguns tentavam por anos ingressar naquele doutorado, só então se deu conta de como era concorrido e que não estava ali por sorte. Nos poucos meses em que teve atividades presenciais, caminhava até a faculdade para assistir às aulas de manhã e depois do almoço passava boa parte do dia na biblioteca estudando. Em casa, tentava ter momentos de descanso, mas com leituras de cerca de 300 páginas por semana, acabava estudando por lá também. Em meio àqueles dias cheios, já ambientado na universidade, a notícia da pandemia de covid-19 exigiu novas adaptações.

Alex em passeio pelo Chile. Foto: arquivo pessoal
Alex em passeio pelo Chile. Foto: arquivo pessoal

Em 2020, Alex se mudou para o Chile para o doutorado de quatro anos. Foto: arquivo pessoal
Em 2020, Alex se mudou para o Chile para o doutorado de quatro anos. Foto: arquivo pessoal

No doutorado em Educação, ele faz parte de uma turma de quatro estudantes e pesquisadores. Foto: Universidad Diego Portales
No doutorado em Educação, ele faz parte de uma turma de quatro estudantes e pesquisadores. Foto: Universidad Diego Portales

Vista aérea da universidade em que Alex faz o doutorado. Foto: Universidad Diego Portales
Vista aérea da universidade em que Alex faz o doutorado. Foto: Universidad Diego Portales

Entrada da faculdade de Educação da UDP. Foto: Universidad Diego Portales
Entrada da faculdade de Educação da UDP. Foto: Universidad Diego Portales
A volta ao Brasil e o
até logo ao Chile

