
Era madrugada na rodoviária popular de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, quando o rondoniense André Neves Bohler desembarcou com seu pai. Na avenida Intermodal, em frente ao local, acomodaram-se em um hotel para passar a noite. Assim que amanheceu voltaram à estação para avisar a matriarca da família que a viagem estava ocorrendo bem. Antes que pudessem fazer a ligação para o Brasil, André e seu pai foram abordados pela Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal). Entregaram seus documentos e foram encaminhados para o escritório dos agentes. Proibidos de conversarem entre si, tiveram seus pertences revistados individualmente.
— Pegaram as nossas carteiras, tanto a do meu pai quanto a minha, e por baixo da mesa ele (policial) tirou o dinheiro, contou e perguntou: quanto vocês têm? Eu estava na época com 1500 reais e meu pai estava com 900. Sumiu duzentos reais naquele dia. Cem de cada um.
Aos 26 anos, o estudante relembra a primeira vez que pisou no país onde viria a morar. Após serem liberados, ainda assustados com a recepção, tomaram um táxi e disseram ao motorista: “leva a gente para a faculdade mais próxima”. O fato ocorreu em 2013, ano em que André saiu de sua cidade natal, Vilhena (RO), para viver na Bolívia em busca da realização de um sonho: se tornar médico.
Em sete anos e nos mais de mil quilômetros de distância entre Vilhena e Santa Cruz de la Sierra coube de tudo. No caminho que percorreu até o momento atual, André sentiu e vivenciou inseguranças, desafios, solidão, descobertas e recomeços. Naquela tarde de agosto de 2020, enquanto ainda estava na Bolívia, ele compartilhou a sua trajetória e vivências no país estrangeiro.
O começo da história de André com a área da saúde tem origem em sua família. Foi no tempo em que cuidava do avô em casa que descobriu a vontade de trabalhar cuidando de outras pessoas. Assim, ingressou na época no curso técnico em Enfermagem e durante a graduação aprendeu diferentes técnicas de assistência do cuidar. Gradualmente foi entendendo sobre a importância do apoio emocional e acolhimento psicológico ao paciente para além de um diagnóstico e tratamento de doença física.
Ao concluir o curso em 2011, começou a trabalhar em um hospital de Vilhena e por um ano destinou atenção dobrada aos seus pacientes. E colocou em prática aquilo que aprendeu no curso.
– Naquela época, a coisa que eu mais fazia era isso. Conversar com o paciente, brincar, descontrair – conta em entrevista feita por chamada de vídeo.
Nesse período, se aproximou de um colega de trabalho que era médico. Dessa amizade surgiu a oferta de cursar medicina na Bolívia, com a faculdade sendo custeada pelo profissional. André recusou o convite, mas depois cogitou a possibilidade de realmente ir sem depender da ajuda dele. Enquanto alimentava a ideia, começou a pesquisar informações sobre o país e resolveu tentar a sorte lá.
Entre a decisão de ir para a Bolívia e a efetiva mudança houve a tentativa de permanecer no Brasil. Em 2012, chegou a fazer vestibular para Medicina, na cidade de Cacoal, cerca de três horas de distância de seu município natal. A intenção naquele ano era se manter em solo brasileiro, o mais próximo de onde morava. Porém, ele explica que não conseguiu passar na prova e então desistiu de tentar fazer a graduação no Brasil. Além disso, considerou outros fatores. Sabia que seria inviável arcar com os custos do curso e que teria dificuldade em ingressar em uma instituição por aqui.
O processo de migração estudantil no qual André está inserido reflete uma realidade que dezenas de brasileiros enfrentam. Tais deslocamentos são motivados majoritariamente por questões financeiras e pelo fácil acesso aos cursos superiores em outros países da América Latina. Muitos encontram no outro lado da fronteira oportunidades que o Brasil não oferece a toda população. Com um sistema sobrecarregado na procura pelo curso de Medicina, seja em instituições públicas ou privadas — fato que eleva a concorrência de candidatos por vagas — e com altas mensalidades — que podem variar de R$ 3 mil a R$ 9 mil —, o caminho encontrado, muitas vezes, é o da mudança temporária de país.
Rumo à Bolívia: “Eu vim com a cara e a coragem”

De colonização predominantemente espanhola, Santa Cruz de la Sierra está localizada no centro da Bolívia, no planalto leste, e é a capital do Departamento de Santa Cruz. É nas margens do rio Piraí que se encontra a maior e mais populosa cidade do país, fundada em 1561. É lá que vive e estuda André. Migrar rumo ao desconhecido e colocar os pés em solo boliviano exigiu muita coragem, já que nem o idioma local ele falava. Sem um planejamento de onde iria estudar e morar, descobriu inicialmente que a permanência não seria fácil. Com um visto de turista de 90 dias — que dava a permissão de percorrer o país inteiro livremente, mas o impedia de estudar — foi atrás de outro visto dentro desse prazo, inicialmente de um ano e postergado para tempo indeterminado depois, com o intuito de residir no país.
Próximo a rodoviária, na Avenida Marcelo Terceros Bánzer, encontrou a Universidad de Aquino Bolívia (Udabol). Com o slogan “Tu futuro está con nosotros”, a universidade privada é considerada uma das maiores da Bolívia e conta com mais de 20 mil alunos.
— Cheguei lá com mala e tudo, que coisa mais incrível sabe… Ela fica perto de tudo. Então era muito mais cômodo — justifica sobre a escolha.
Sem enfrentar burocracias e sem passar por um processo seletivo, conseguiu realizar a matrícula, pagando apenas uma taxa de inscrição, e podendo já iniciar o semestre. Desde o primeiro período, André paga cerca de R$ 1.000 de mensalidade, valor que varia conforme o câmbio, mas bem abaixo do que pagaria no Brasil. Com uma comunidade brasileira expressiva, conheceu um estudante que o ajudou nas primeiras semanas, enquanto ainda não tinha onde morar. Foi no apartamento dele que ficou nas primeiras semanas até encontrar um local adequado e se mudar. Ao relembrar da ajuda, comenta que os brasileiros lá são bastante unidos e dão suporte uns aos outros, e que esse aspecto foi fundamental naquele período.
Com o tempo, o idioma hispânico deixou de ser um problema. No período de adaptação, depois que seu pai voltou para Vilhena, aproveitava os passeios nas ruas da cidade para treinar o espanhol. Arranhando um “portunhol”, perguntava a quem passava por perto informações sobre horários de ônibus, como voltar de determinado local, quais eram os nomes das ruas onde estava, e assim por diante. Conforme praticava o hábito, foi entendendo a geografia urbana da cidade e se adaptando às mudanças. O fato de ser comunicativo também contribuiu para que ele aprendesse rápido o espanhol.
Antes de conhecer a Bolívia, carregava uma visão estereotipada sobre o território, como muitos brasileiros. “Aquelas cidadezinhas feias, pura terra, entendeu? Que vende muamba... esses trens”, revela. Hoje, morador, já não pensa da mesma forma. Aos poucos, foi tomando consciência sobre as riquezas culturais e geográficas da cidade. Descreve que Santa Cruz de la Sierra é bem arborizada, com muitos parques e onde tem acesso a um pouco de tudo.
— “Mais para cima [tem] La Paes, Costa Bamba, que tem a cordilheira que neva... É um país bonito, com cidades bonitas — diz, fazendo referência às regiões, que são divididas em nove departamentos.
Conforme foi se acostumando com o país vizinho, descobriu algumas diferenças culturais em comparação ao Brasil. Alguns hábitos comuns aos brasileiros são incomuns para os bolivianos. "É diferente. Você, por exemplo, não pode sair na rua sem camisa”, alerta. Outro comportamento proibido, segundo ele, é o consumo de bebidas alcoólicas nas ruas. “Aqui não pode beber na rua, igual a gente toma cerveja na calçada”. André também guarda lembranças engraçadas de quando ainda era um recém-chegado. Gargalhando, relata algumas gafes que cometeu.
— Algumas palavras que para a gente são normais, tipo, você vai cumprimentar alguém e fala “opá”, aqui "opá" é uma ofensa. É tipo "seu burro", "seu idiota". Eu caí muito nisso, porque quando eu cheguei eu não sabia e cumprimentava todo mundo assim: "Opá, ¿Cómo estás?". Eles às vezes viravam a cara e iam embora, nem falavam comigo. E eu sem entender, aí depois me falaram que isso é errado. Correr também é ofensa. Aqui quando a gente fala "vamos correr", de correr mesmo é “corer” e quando é "correr" é sexo. Muitas vezes eu entrava no táxi e falava que tinha pressa para ir para a faculdade, às vezes pra fazer uma prova, pra ele correr, e ele (taxista) começava a rir. Eu já passei por várias situações assim, só que é legal você lembrar e dar risada.
Quando fala da relação com os bolivianos, diz que “alguns são gente boa”, já outros nem tanto. A justificativa estaria num certo receio por parte da população local em relação aos brasileiros, segundo o estudante. Muitos preferem não alugar residências ou até aumentam o valor de produtos e serviços para os estrangeiros. No entanto, enfatiza que nunca passou por nenhuma forma de discriminação ou preconceito. Mais uma vez, atribui o fato ao seu jeito comunicativo de ser.
— As pessoas prezam muito pelo respeito e educação. Quando descemos do ônibus, pedimos: "pare, por favor!", e toda vez que o motorista para, agradecemos. Eu nunca fui discriminado por ser brasileiro. Às vezes a gente escuta eles falando de brasileiros, que não gostam, e não sei o que... Mas nada diretamente a mim.
Mesmo depois de tantos anos vivendo em Santa Cruz de la Sierra , André ainda tem algumas inseguranças relacionadas a sua estadia. Procura deixar os documentos sempre em dia. Tem medo de ser abordado novamente pela polícia, como aconteceu quando chegou na cidade. Segundo o brasileiro, é comum ouvir relatos de estudantes que foram parados próximo à faculdade pelos policiais. Do que ouve, sabe que os agentes tendem a pedir os documentos, e mesmo que esteja tudo certo com a documentação muitos precisam pagar para serem liberados. O famoso suborno, alerta.
— Eu já tive amigos brasileiros que já tiveram que pagar suborno. Amigo que tem, por exemplo, moto. Se ele é parado pela polícia militar ele tem que pagar ali uns 50 bolivianos [R$ 39,21] para ser liberado, mesmo ele estando certo. Então, isso acontece bastante. Eu tomo muito cuidado, eu não fico rodando à toa na rua.
Contudo, André considera a cidade segura. Observa, por exemplo, que grande parte das casas não têm cerca elétrica ou muro alto. Também não vê e não tem conhecimento sobre casos de violência e criminalidade na região. Mesmo assim, ele não dá sorte ao azar e reforça a segurança para não correr riscos. A título de exemplo, quando vai até o banco sacar dinheiro para as contas prefere voltar de táxi para casa. Assim evita o risco de pegar um ônibus, e eventualmente sofrer um assalto.
Desde que começou a estudar na Udabol, André identifica algumas diferenças entre o sistema de ensino superior do país e do Brasil. A começar pela forma de ingresso. Ele não precisou fazer nenhuma prova para entrar na instituição boliviana, mas para receber o diploma deve obrigatoriamente prestar o Exame de Grado — teste aplicado no final do curso para avaliar a prática clínica dos futuros profissionais da área médica — bem comum entre as faculdades privadas de lá. Por outro lado, existem também semelhanças. Assim como na maioria das instituições brasileiras, o ano letivo é separado por semestre. Cada período conta com matérias específicas. No primeiro semestre de 2020, por exemplo, o estudante estava cursando oito disciplinas, entre elas, epidemiologia e dermatologia. Na fase final do curso, as práticas são predominantes na grade curricular, e o aluno monta sua própria grade de horários, podendo escolher quais matérias cursar.
— Você escolhe os seus doutores [professores], e os seus horários. Tem dias que eu tenho aula de manhã, mas não tenho nem à tarde, nem à noite, e assim varia. Fora as aulas práticas. Antes da pandemia tinha aula prática hospitalar e em laboratório e isso compromete o dia inteiro, praticamente.
Com uma rotina dedicada exclusivamente aos estudos, não consegue tempo para trabalhar. Explica que muitos bolivianos preferem também não contratar estudantes brasileiros por conta do pouco tempo que dispõem. “Não dá pra você conciliar a faculdade com o trabalho", acrescenta. Morando em uma kitnet com quarto, cozinha e banheiro, e pagando 1.500 bolivianos por mês, cerca de R$ 1.239 na cotação de 11 de abril de 2020, admite que o custo de vida não é tão acessível, pelo menos quanto à moradia. A residência fica próxima à faculdade e num bairro seguro. Além disso, a locatária o trata como um filho, porém o aluguel é salgado e pesa no bolso de André.
Dependendo dos pais para se manter, tentou complementar a renda vendendo feijoada e espetinho, porém as experiências não deram certo. Inicialmente, ele e a mãe chegaram a produzir as comidas por um dia, mas como não conseguiram um lugar para comercializar e as embalagens vazaram o produto, logo abandonaram a ideia e ela retornou para o Brasil. Filho caçula, André tem uma irmã mais velha que é farmacêutica. Seus pais são autônomos e trabalham de forma ambulante nas ruas de Vilhena, vendendo queijos, salames, carne de porco, entre outros produtos. É dessa maneira que conseguem enviar todo mês uma quantia para pagar a faculdade, aluguel, e as despesas básicas do filho, que chegam a R$ 3 mil por mês. Com as demandas essenciais, pouco sobra para o passatempo. No período de férias, quando vem ao Brasil, aproveita e leva nozes-da-índia da Bolívia para vender por lá com o objetivo de arrecadar algum dinheiro extra e quem sabe conseguir aproveitar um pouco da cidade que o acolheu.
— Eu fiquei aqui [Bolívia] de 2013 até 2017 sem nunca ter saído, porque não sobrava dinheiro. Não sobrava dinheiro para ir em uma boate, para sair e tomar uma cerveja. Nesse tempo todo que eu tô aqui só uma vez que fui em uma boate.
Com isso, há cerca de quatro anos, André enfrentou um dos momentos mais difíceis desde que chegou na Bolívia para estudar. Sem uma rede de apoio, com uma rotina sobrecarregada e sem condições de investir em momentos de lazer, ele teve episódios de ansiedade que ele descreve como depressivos. O rapaz falante e descontraído gradualmente foi perdendo a vontade de fazer coisas simples e foi se isolando cada vez mais. André conta que no ano seguinte conseguiu ignorar os sintomas da doença, mas com o passar dos meses ficou cada vez mais complicado lidar com as alterações no seu dia a dia. Ir para a faculdade tornou-se um pesadelo para o estudante, que enxergava na proximidade com as pessoas uma ameaça.
— Se existia um grupinho ali conversando, dando risadas entre eles, eu achava que era de mim, pensava em ir ao banheiro para ver se eu estava sujo, algo assim. Muitas vezes eu pegava, dava meia volta e voltava para casa e não ia assistir aula.
O conjunto de paredes dos três cômodos de sua kitnet foram abrigo para André, que durante um semestre ficou sem comparecer às aulas, saindo somente para o essencial. Tinha medo de reviver o sentimento de exclusão e angústia que sentia todas as vezes em que não estava no aconchego de seu lar. Com a perda de interesse nas atividades que antes gostava, fazer o mínimo se tornou uma tarefa quase impossível. Começou a ter crise existencial e pensava que nada do que estava vivendo era real. Ele relembra que somado ao desânimo persistente, pensamentos suicidas e autodepreciativos eram frequentes neste período.
— Graças a Deus, eu conversei com a minha mãe e falei: "Ó mãe, eu não tô aguentando, vamos resolver de alguma forma." Aí eu abandonei o curso em junho de 2018 e voltei para o Brasil.
Ao trancar a faculdade, de volta a sua cidade natal, André buscou ajuda com três especialistas até se sentir confortável com uma psiquiatra que o diagnosticou com ansiedade e orientou que ele tirasse um tempo para tratar a doença. A médica prescreveu remédios, incluindo alguns para ajudá-lo a dormir. Sem querer ficar dependente das substâncias, começou a fazer exercícios físicos para distrair a mente e ajudar na insônia, o que deu certo. Além disso, ele arrumou um emprego de frentista em um posto de gasolina próximo à casa de seus pais.
— No início foi muito difícil, porque é uma derrota você ter que abandonar o curso. Você se sente um fracassado. Falava isso para a minha mãe. Eu não gostava de falar isso para ninguém, sobre depressão e que eu estava depressivo. Preferia falar que meus pais não tinham dinheiro para me bancar aqui [Bolívia]. Depois que eu me recuperei, aí sim, eu falei que tive depressão e que foi muito difícil.
Em solo brasileiro permaneceu por um ano e meio até se sentir confortável para regressar à Bolívia, no início de 2020. Ao falar daquela época, reconhece que a pressão de viver em outro país, cursando Medicina e sem ter como se distrair foram os principais fatores que o levaram a adoecer.
— Você fica pensando naquela matéria que você foi mal, naquela matéria que você tem que estudar o dobro, e isso vai acumulando na cabeça e você acaba ficando depressivo.
Além de tudo, sentia-se também solitário. Sabia que tinha conquistado alguns “amigos” quando chegou no país estrangeiro, porém com o tempo foram se distanciando. Conforme foi ficando isolado e sozinho, decidiu excluir o grupo de suas redes sociais e do WhatsApp.
— Porque se eu estava no meu pior momento e eu não pude contar com os meus amigos, por que quando eu tiver no meu melhor momento eu vou contar com eles? — ressalta.
Ao fazer um balanço dos acontecimentos, o estudante admite que seguiria, hoje, a mesma decisão que tomou dois anos atrás. “Se eu ficasse aqui [Bolívia] teria sido pior”. Como uma pessoa que gosta de estar junto de outras pessoas, ele também avalia que a experiência de estudar fora seria melhor, caso tivesse condições de sair mais para espairecer a mente ou se estivesse na companhia da família e amigos.

André começou o curso de Medicina na Bolívia em 2013. Foto: arquivo pessoal
André começou o curso de Medicina na Bolívia em 2013. Foto: arquivo pessoal

Udabol, faculdade em que André estuda. Foto: arquivo pessoal
Udabol, faculdade em que André estuda. Foto: arquivo pessoal

Durante a aula de histologia com colegas. Foto: arquivo pessoal
Durante a aula de histologia com colegas. Foto: arquivo pessoal

Com colega na aula de cirurgia. Foto: arquivo pessoal
Com colega na aula de cirurgia. Foto: arquivo pessoal

"Essa foi a época que desisti da faculdade e virei frentista". Foto: arquivo pessoal
"Essa foi a época que desisti da faculdade e virei frentista". Foto: arquivo pessoal
O recomeço em meio a uma pandemia

Para muitos o ano de 2020 será lembrado como o ano pandêmico, em que milhares de pessoas mundo afora tiveram que readaptar suas vidas por conta do novo coronavírus. Para André não foi diferente, exceto por uma coisa: o ano também significa um recomeço para ele. Após concluir o tratamento médico, em março retornou para Santa Cruz de la Sierra, com objetivo de finalizar as últimas disciplinas pendentes e na sequência se preparar para o internato hospitalar — período do curso de Medicina no qual o aluno deve estagiar em um hospital escola. Seria a etapa final para a conclusão da graduação que começou lá em 2013.
Nem sequer teve tempo de frequentar as aulas normalmente. O estudante só conseguiu ir a um dia de aula presencial, e logo em seguida foi surpreendido pelo fechamento das instituições de ensino na Bolívia. Naquela época, ainda eram poucos os casos de pessoas infectadas pelo vírus tanto no Brasil, como no país vizinho. André não cogitou que a pandemia fosse se alastrar tão rapidamente, caso contrário, segundo ele, teria ficado em Vilhena.
— Eu continuaria trabalhando como frentista e juntando mais dinheiro e depois eu viria. Quando eu cheguei aqui (Bolívia) começaram a surgir os primeiros casos e o governo decidiu realmente fazer a quarentena. Você não podia sair de dentro da sua casa.
Ele pontua que somadas ao isolamento social outras medidas foram tomadas. De março até meados do início de junho, o governo boliviano determinou que só estabelecimentos essenciais permanecessem abertos. A população só poderia sair em dias específicos para ir ao mercado, farmácia ou posto de gasolina, de acordo com a numeração do documento de identidade. O 1 e o 2 eram na segunda-feira, 3 e 4 na terça, e assim por diante. Conforme ficou estabelecido por decreto, André só podia sair de casa nas quintas-feiras, já que seu número de identificação era o 8. De imediato, o lockdown pegou todo mundo de surpresa, relata o brasileiro.
Nos meses que se sucederam, o ensino virtual foi adotado pela Udabol para dar continuidade ao semestre. Apesar de compreender que a adoção da modalidade era a opção mais viável para o momento, ele avalia que o ensino a distância se mostrou uma experiência negativa.
— Eu acho muito ruim estudar em casa, eu prefiro ter um professor me explicando, me ensinando... que entra muito mais na fácil na minha cabeça do que estar estudando em casa — afirma.
Em agosto de 2020, pouca coisa havia mudado na rotina do estudante em comparação a 2018. Naquele mês, André já tinha concluído o primeiro semestre e estava de férias da faculdade. No período em que enfrentou um segundo isolamento, dessa vez não pelas crises de ansiedade, voltou a ter dificuldades para dormir. Os exercícios físicos que começou a praticar no Brasil, e que o ajudaram na insônia foram paralisados, já que as academias estavam fechadas.
Em seus primeiros anos na Bolívia, o brasileiro praticamente não tinha tempo para ficar em casa, já que ficava boa parte do dia na faculdade. Basicamente seus dias eram dedicados exclusivamente aos estudos. Geralmente acordava às seis horas da manhã para estar no hospital às 7h, onde fazia as aulas práticas e permanecia até o horário do almoço. No período da tarde, frequentava as aulas teóricas no campus. Às vezes não sobrava tempo nem para tirar a roupa do estágio e ele chegava de jaleco na Udabol. Com a quarentena, a rotina corrida foi substituída pela calmaria do ambiente doméstico e André até se permite dizer que os dias estão muito parados. Devido à suspensão das aulas presenciais, algumas disciplinas práticas do curso de André deixaram de ser ministradas. A prática hospitalar, por exemplo, teve que ser interrompida, o que aumentou a insegurança dele em relação a sua formação, já que as disciplinas são fundamentais para o internato.
Para André, as medidas adotadas pelo governo boliviano foram adequadas para controlar de imediato a disseminação do vírus. Segundo o Ministério da Saúde do país, até o dia 17 de agosto de 2020, a Bolívia tinha ultrapassado a marca de 100 mil casos do novo coronavírus. Assim como no Brasil, lá também foram distribuídos auxílios emergenciais à população carente. Na visão dele, o povo boliviano tem mais respeito à quarentena e leva a sério as recomendações sanitárias, como o uso de máscara e higienização das mãos. Comportamento que ele não identifica na maioria dos brasileiros.
— Para você ter uma noção, para você sair daqui para ir para o Brasil eles não estão exigindo que você faça o teste do covid, mas para você entrar na Bolívia, a Bolívia está exigindo. Aí você já tem uma noção do cuidado que o governo está tendo com os seus.
Mesmo elogiando as normas, André decidiu montar um grupo de repatriação para regressar ao Brasil. Organizando a viagem, em meio à pandemia de covid-19, outro fator preocupava o estudante: as tensões políticas pré-eleição presidencial. André conta que o adiamento da disputa eleitoral entre o partido Movimento Ao Socialismo (MAS) de Evo Morales e a oposição representada por Jeanine Añes, na época presidente interina, por conta da pandemia, levou dezenas de pessoas a participarem de manifestações violentas pelo país.
No dia 26 de agosto, André saiu de Santa Cruz de la Sierra rumo a Vilhena. Na nossa última conversa, contou que voltou a morar com os pais, e em dezembro finalizou o décimo semestre do curso remotamente. Enquanto espera pelo fim da pandemia para retornar à Bolívia e fazer o internato, segue trabalhando como motoboy.
Para 2021, as expectativas são voltadas para a vacinação e volta da normalidade. Além do desejo de conseguir terminar o ano com o diploma em mãos, mesmo que ainda não saiba em qual área irá se especializar.
— Eu tinha vontade de muita coisa. Eu tinha vontade de ser emergencista, trabalhar tipo na rede do SAMU, algo assim. Tenho vontade de ser cirurgião geral ou cirurgião plástico. Eu tô indeciso nessas três. — conta ele sobre os planos para o futuro.

Na travessia de San Ignacio, na Bolívia, para Pontes e Lacerda, no estado brasileiro do Mato Grosso. Foto: arquivo pessoal
Na travessia de San Ignacio, na Bolívia, para Pontes e Lacerda, no estado brasileiro do Mato Grosso. Foto: arquivo pessoal
