Por muitos dias da pandemia, Fernanda Waitman, de 32 anos, cultivou o hábito de sair de casa pela manhã para “ir à aula". Entre aspas mesmo, porque as classes da Faculdade de Medicina da Universidad Internacional Tres Fronteras (Uninter), assim como em outras instituições, ocorriam de forma online devido à pandemia da covid-19. Quase todo dia a maratona se repetia: dar tchau para a filha caçula, sair, dar uma volta no quarteirão e retornar para casa, onde ficava escondida em um cômodo. Foi o jeito encontrado para conseguir acompanhar as aulas virtuais sem se distrair com as demandas de atenção da pequena Isabela, de 1 ano. A estratégia, no entanto, às vezes não funciona e a classe ganha uma coleguinha que acompanha a mãe. 

– [Na pandemia], estudo da mesma maneira que eu estudaria no presencial. Talvez com algumas dificuldades, várias vezes eu tinha que dar de mamar, várias vezes a Isabela tava aqui aparecendo nas aulas, batendo no computador. O doutor ainda falava “tem aluna especial hoje” e eu “tem, doutor!”.

A vontade de ser médica é um sonho que vem desde a adolescência, mas ficou adormecido por anos. Com 17 anos, quando cursava o terceiro ano do Ensino Médio de manhã e o cursinho pré-vestibular à noite, Fernanda se via com medo de fracassar na tentativa de entrar na graduação mais disputada pelos vestibulandos. Ouvia das pessoas ao seu redor que ela era muito inteligente e conseguiria passar em Medicina. Ao mesmo tempo, observava colegas que estavam há anos tentando ingressar no curso. Em meio à pressão e à insegurança, optou pelo curso de Farmácia, incentivada por um professor de Química, que era formado na área e percebia a facilidade dela na disciplina. Foram algumas aprovações no curso escolhido e, com outros receios, Fernanda escolheu estudar em uma universidade particular perto da família, em sua cidade natal, Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo.

– Hoje eu sou essa pessoa desenrolada, eu me viro, mas eu não era assim. Com 18 anos eu era uma menina mega mimada, nojenta, não tinha noção de vida nenhuma e tinha um sério problema em perder, em aceitar que não conseguia alguma coisa. Hoje, a vida me mudou, me deu muito tapa na cara, sou uma outra pessoa.

O amadurecimento, naturalmente, veio com o tempo. A vida acadêmica no curso de Farmácia começou em 2006. Fez iniciação científica, estágios e começou a ter mais noção da vida adulta. Foi na faculdade também que conheceu quem viria a ser seu marido. O colega Fábio entrou no curso um semestre antes e eles se conheciam de vista. A aproximação só aconteceu lá pelo terceiro ano da graduação, quando ele precisou atrasar disciplinas por conta do trabalho. O namoro começou em setembro ou outubro de 2009 e em março do ano seguinte já foram morar juntos. Na época, ela conta, o namorado era “muito conhecido pelas meninas”, o que alimentou as conversas de corredor que apontavam que Fábio estava com ela para ter ajuda no TCC e logo o relacionamento acabaria. Fernanda confirma que, de fato, o ajudou entregando trabalhos quando ele trabalhava até tarde e também no TCC, que tinha um tema semelhante ao dela. O relacionamento, no entanto, não acabou com o fim da graduação.

Morando juntos, eles passaram a se considerar casados – ainda que a união oficial só tenha sido realizada em 2020 – e em janeiro de 2012, se tornaram pais da Manuela. Antes de se mudarem para Ciudad del Este, a família passou por Mogi das Cruzes, Guarulhos e Ubatuba. Nesta última, ficaram de 2016 a 2017 na casa do pai de Fábio, enquanto construíam a casa própria do casal na cidade, em busca de tranquilidade. Na época, compraram um terreno com as economias e rescisões de contrato de Fábio, em uma drogaria, e de Fernanda, em uma indústria de produção de elástico de borracha. No litoral paulista, ele conseguiu trabalho em uma farmácia, já Fernanda foi vender picolé na praia durante a temporada de verão, quando fez turnos de 12h. A opção surgiu em meio à falta de oportunidades em drogarias, trabalho que já não a satisfazia pela falta de reconhecimento. Nas farmácias, era mais vendedora do que farmacêutica, precisando incentivar a compra de outros produtos ou medicamentos, o que aumentava a decepção com a área.

– A questão da farmácia, hoje, ela virou comércio e eu era muito contra a ideia da gente ter que incentivar a compra de medicação, nunca foi a minha ética, não estudei pra isso. Nada contra quem trabalha dessa forma, cada um trabalha como acha melhor, mas eu não gosto. Não gosto de falar que o paciente tem que levar medicamento tal porque a farmácia me cobra que eu venda esse medicamento. Ou ele vai comprar um remédio pra dor e eu tenho que incentivar ele a comprar uma vitamina, não concordo com essa prática. Aquilo começou a me corroer, porque pra você crescer nesse ramo tem que seguir a política.

Em 2013, ela trocou os balcões das farmácias pela sala de aula. Foi plantonista de Química em um cursinho pré-vestibular e deu aula de disciplinas como farmacologia, química e microbiologia em um curso técnico. Se apaixonou por dar aula e pela troca que tinha com os alunos e chegou a conclusão: “é isso, é aqui!”, todo o reconhecimento que esperava na drogaria encontrou em meio aos alunos. Nesse período, ela ingressou no mestrado em Biotecnociência da Universidade Federal do ABC. A ideia de fazer uma pós-graduação foi plantada por Fábio e Fernanda foi regando, com receio pela questão financeira. Contemplada com uma bolsa, a decisão de se dedicar à pesquisa foi mais tranquila. Como mestranda, percebeu o baixo investimento em pesquisa no Brasil. Lembra das dificuldades em comprovar os estudos realizados porque faltava matéria-prima e estrutura para testes, o que prolongava processos já longos das pesquisas na área. A formação certamente foi muito importante em sua vida, mas ainda não era isso que ela buscava para se realizar profissionalmente.

Quando concluiu o mestrado, continuou no trabalho na indústria antes de se mudar para Ubatuba. Sem emprego fixo e em meio à desmotivação com a carreira, Fábio plantou aquela ideia antiga de cursar Medicina. A primeira reação com a sugestão foi: “com que dinheiro, meu amigo? ganhou na mega e não me avisou?”, conta. O plano dele era trabalhar e sustentar a casa, enquanto ela estudaria no cursinho para passar em uma universidade pública. Ainda assim, Fernanda desconsiderou a possibilidade, já que mesmo sem mensalidades o estudo envolveria muitos gastos em outra cidade, o que seria inviável. 

O tempo foi passando e ela foi pesquisando as opções. Descobriu que muitas pessoas iam para outros países para estudar. Junto com o marido, que também pensava em fazer o curso, foram construindo caminhos para realizar o sonho. Em princípio, a Argentina parecia o lugar ideal e o primeiro passo era juntar dinheiro. Para isso, alugaram a casa de Ubatuba, que sequer chegaram a morar, e se mudaram para a casa da mãe de Fernanda, em Mogi das Cruzes. Lá, ela foi trabalhar em uma drogaria menor, crente que dessa vez desenvolveria mais a função de farmacêutica, auxiliando os pacientes, do que de vendedora, oferecendo produtos. Foi uma “doce ilusão”, como descreve, e logo se viu precisando bater metas. 

O jeito foi continuar sonhando e trabalhando para juntar dinheiro em busca do objetivo de estudar fora. Aí o tema parecia estar em todos os lugares. Nos primeiros dias na drogaria, Fernanda ouviu uma colega contando que fez dois anos do curso na Argentina. Foi conversar com ela e ouviu que o país vizinho era caro, o Paraguai, então, seria a melhor opção. Ficou com o país na cabeça e, um dia no metrô, escutou um rapaz que falava ao telefone sobre a matrícula em uma universidade paraguaia. Logo foi conversar com ele, que se assustou com a abordagem repentina, mas a ajudou com informações e contatos.

O Paraguai passou a ser o foco das pesquisas. Em meio às informações de custo de vida e mensalidades veio a conclusão: apenas um deles poderia estudar fora. Fernanda queria que o marido fosse, ela ficaria no Brasil com a filha, trabalhando. Ele, no entanto, achou melhor que ela fosse, já que tinha mais experiência acadêmica. No fim, decidiram vender tudo o que tinham, como carro e móveis, ficaram apenas com a casa para gerar renda de aluguel. Assim, a tropa Fernanda, Fábio, Manu e a cachorrinha Belinha partiu rumo ao Paraguai.

Os Waitman em Ciudad del Este

– Não tô dizendo que é fácil, mas é possível. Então eu tô aqui com a minha família, estudando, trabalhando, me virando... Não sou mais capaz que ninguém, só tenho boa vontade e um marido doido. 

Com essas palavras Fernanda descreve a jornada e os perrengues em terras paraguaias. Já na chegada em Ciudad del Este, em janeiro de 2018, não foi possível ficar na casa que alugaram em passagem rápida pelo país no mês anterior. Sem conseguir visitar o local, não puderam ver que ela estava tomada de bolor. A solução veio no grupo de WhatsApp dos colegas da faculdade, que ela nem conhecia ainda. Os três foram dividir um cômodo cedido pelo primo de um colega. Um quarto sem ar condicionado para seis pessoas, em meio ao verão e calor que Fernanda descreve como infernal. Lá, ela repensou todo o plano, chorou, quis desistir, mas viu que não tinha como voltar atrás, sequer tinha começado a estudar. 

Depois do quarto comunitário, foram mais algumas aventuras na busca de um lar. Na lista, uma casa infestada de carrapatos, outra que chovia mais dentro do que fora e a que eles tiveram que ir embora porque o dono decidiu que não queria a cachorrinha no imóvel. Apesar dos contratempos, eles finalmente conseguiram se alocar e ela iniciou o curso, como planejado. Na metade do ano, quando tudo estava se ajeitando, veio a surpresa: Fernanda estava grávida.

A notícia foi um baque e fez ela pensar que era hora de voltar para o Brasil. Uma diabetes gestacional e uma pedra no rim fizeram a gestação ainda mais difícil. Mas ela seguiu no Paraguai, onde recebeu tratamento pelo plano de saúde e faz questão de rasgar elogios ao atendimento e acolhida da equipe médica. Em abril de 2019, ela deu à luz a Isabela. Morando na fronteira com Foz do Iguaçu, no Brasil, a família tem a opção de utilizar os serviços brasileiros, mas considera que o Paraguai tem uma qualidade de vida melhor. Em Ciudad del Este, os pais de Isabela e Manuela pagam para a família toda um plano de saúde que consideram barato e eficiente, cerca de $ 500 mil guaranis, que equivalem a pouco mais de R$ 400, na cotação de março de 2021. Fora isso, bancam uma escola particular para Manu, que custa aproximadamente R$ 150 – mais em conta que os mais de R$ 700 que pagavam no Brasil – e a mensalidade da faculdade particular, que hoje é de cerca de R$ 1.700 (o valor aumenta a cada ano e varia de acordo com o câmbio, no início do curso em 2018, por exemplo, pagava cerca de R$ 650 por mês). No orçamento, ainda cabe o tratamento para dislexia da filha mais velha, que apresentava problemas no aprendizado que iam além do novo idioma.

– Ela tinha muita dificuldade em ler e a justificativa era que ela não conhecia a língua e eu fiquei “não é”, sabe por quê? Ela não sabia o AEIOU, que é muito próximo em português e espanhol. A professora da escola recomendou mandar ela em um especialista, porque tinha alguma coisa diferente. Ela passou em uma psicopedagoga e em um neuropediatra, aí deu que ela é disléxica. Ela começou o tratamento e cara, exemplar o tratamento aqui. Muito mais barato e em um ano ela aprendeu a ler e escrever nos dois idiomas.

A vida mais confortável é possível em parte pelo aluguel da casa de Ubatuba, mas principalmente pelo empreendimento que iniciaram logo nos primeiros meses na cidade: uma hamburgueria. Mesmo com uma "cara brasileira", o negócio é cheio de referências ao universo de Harry Potter. As batatas fritas são as varinhas mágicas, as bebidas são as poções e os combos são batizados com nomes como Comensais da Morte e Potter x Malfoy: o duelo. 

– Eu sou fã de carteirinha assinada desde criança, desde que lançou o primeiro livro, eu estava na sétima série. Já li cada livro no mínimo umas vinte vezes, não gosto muito dos filmes. Todas as minhas férias eu lia toda a saga, até depois de ter as meninas. É uma maneira de relaxar, sair do mundo. E aí, [na hamburgueria] surgiu a ideia porque a gente achou que seria uma brincadeira, uma forma de descontrair. Aqui tá todo mundo numa mesma fase, é complicado sair do país com outra cultura, aí trazer essa brincadeira com essa temática pode divertir as pessoas, mesmo que seja pedindo um lanche, sai um pouco da realidade. 

A ideia de montar o negócio veio pela falta de opções de alimentação nas proximidades da faculdade. Começaram com as tapiocas que Fábio preparava e Fernanda oferecia no horário da aula. Logo, um colega sugeriu realizar as vendas também na parte da noite. Assim, eles decidiram ampliar o cardápio, passando a vender lanches incrementados, que não encontravam no Paraguai. O negócio cresceu e, além da universidade, passaram a fazer entregas pela cidade, por meio de aplicativos. Na época, Fernanda também se dedicava a dar aulas particulares de reforço para colegas brasileiros com dificuldades em Química, principalmente em entender o conteúdo em espanhol. A atividade chegou a custear as mensalidades da faculdade, mas precisou ser deixada de lado com o aumento das demandas do novo negócio.

Fábio é responsável por montar os lanches e organizar as coisas da hamburgueria logo no começo do dia para abrir à noite. Fernanda e Manu saem de manhã, a mãe vai para a faculdade e no caminho deixa a filha na escola. Busca ela ao meio-dia e vão para casa almoçar. De tarde, a acadêmica volta para mais um turno de aulas. De noite, além de cuidar de algumas coisas da casa, auxilia no atendimento da hamburgueria e, se necessário, assume o papel de motogirl, entregando os lanches pela cidade. Dirigir por lá é sempre um susto. Fernanda conta rindo dos cruzamentos sem sinalização, dos motociclistas sem capacete e das cenas comuns de passar por motos carregando mais de três pessoas. 

– Teve uma vez que eu tava descendo de carro pra ir no centro, uma moto veio passando e outro carro deu [bateu] nela. Eu só vi o tiozinho girar e cair no chão. Pensei: morreu. Aí o cara parou o carro e tranquilamente pegou a mão do tiozinho, levantou ele, ofereceu o tereré, deu uma olhada no carro e beleza, deu a volta e foi embora. Ninguém ficou buzinando, ninguém saiu do carro, a fila andou normalmente. Eu fiquei, gente, no Brasil no mínimo eles iam sair no soco. Aqui é: tá andando? ligou a moto? então beleza. 

A tranquilidade paraguaia destoa da agitação dos brasileiros, mas para ela o povo de lá já parece acostumado com o jeito dos que vêm do Brasil. Ainda assim, como brasileira no exterior, Fernanda busca se adaptar aos costumes locais. Um exemplo é a educação católica da filha em uma escola regrada, com horário para orar e cantar o hino. A rigidez se estende aos pais. Fernanda diz que se for de bermuda buscar a filha não pode entrar e cita a vez em que chamaram sua atenção porque Manu não sabia como usar a saia na hora de ir ao banheiro. Na hora ficou sem entender, mas imagina que a filha abaixou a saia para usar o assento, ao invés de subir. Não imaginou que aquilo poderia ser uma questão, mas não discute. Ela não acha coerente quem vem de fora querer impor suas visões, como já observou em alguns brasileiros. Lembra de outro acidente que presenciou, que ocorreu na frente da universidade durante a aula. O professor foi até lá, concluiu que os bombeiros deveriam ser chamados e retornou para continuar a aula. Aquilo gerou indignação nos colegas brasileiros, que diziam que no Brasil o médico é obrigado a prestar assistência nesses casos. A reação dela foi: “cara, você não tá no Brasil”. 

Quando o assunto é machismo, Fernanda conta que se sente mais segura lá do que no Brasil, inclusive quando precisa sair à noite para entregar os lanches. Para ela, o machismo não é tão forte como no Brasil, onde há um desrespeito maior. Ela observa que no Paraguai o tema se manifesta em pequenas coisas, como um julgamento não explícito pela roupa ou quando esperam uma “autorização” do marido dela para respondê-la.

–  Já senti que quando saio com meu marido e eu vou falar com um homem – eu falo muito e falo com todo mundo, não tem essa – eles ficam olhando pra mim e pro meu marido meio que “será que eu posso falar com ela? será que eu tenho que falar com ele primeiro?”. Na questão da roupa, eu acho que na rua eles não ligam tanto. Mas eu já vi, por exemplo, quando veio eletricista aqui em casa e aí eu tava de shorts. Eu acho que na cabeça deles eu teria que colocar uma roupa mais “apropriada”, entendeu? Não poderia estar assim com um homem estranho na minha casa ou eles não aceitariam que a mulher deles fizesse isso. 

Para entrar na faculdade, ela conta que não foi um processo difícil. Geralmente basta uma prova de conhecimentos básicos, o que pode incluir a língua guarani. Como Fernanda já tinha formação em curso superior, não precisou passar por testes. Apesar de ter um sistema de ingresso mais simples que o do Brasil, ela observa muitas desistências ao longo dos anos, já que o curso é puxado e exige dedicação.

Quando a rotina de estudos é mais intensa, como na época das temidas provas orais, ela nem volta pra casa, fica praticamente o dia inteiro na universidade e Fábio fica na função de cuidar da casa, das meninas e do negócio. Às vezes, a pequena Isa precisa ir junto com a mãe para as classes, ambiente que frequenta desde os primeiros dias de vida. No começo, a caçula só dormia e mamava, conforme foi crescendo passou a brincar com os colegas. Fernanda conta que sempre foi incentivada por colegas e professores e recebe muito apoio com a filha na universidade. Alguns ajudam a subir as escadas com o carrinho, outros tomam conta da criança quando ela precisa ir ao laboratório. Assim, ela consegue lidar com a maternidade e a vida acadêmica. O acolhimento e gentileza são características comuns aos paraguaios, que também são muito tranquilos, como ela observa.

No geral, a família se adaptou muito bem ao Paraguai e às mudanças culturais. Apesar dos perrengues, conseguiram construir uma vida confortável e crescer por meio do empreendimento, que possibilitou a compra de um carro e uma moto para a entrega de lanches. Com o foco no trabalho e nos estudos, o lazer acaba se resumindo a ir ao mercado. Costumam fazer compras em um estabelecimento de Foz de Iguaçu, sem um motivo específico já que os preços são similares, talvez por ser uma forma de estarem conectados ao país de origem. O objetivo deles, segundo Fernanda, é trabalhar muito durante o ano para poder descansar e curtir a praia nas férias. Em 2020, no entanto, nada saiu como planejado.

Fernanda e Fábio oficializaram a união durante o isolamento no Brasil. Foto: arquivo pessoal

Fernanda e Fábio oficializaram a união durante o isolamento no Brasil. Foto: arquivo pessoal

Fernanda posa com jaleco. Foto: arquivo pessoal

Fernanda posa com jaleco. Foto: arquivo pessoal

Durante uma apresentação de trabalho com colegas. Foto: arquivo pessoal

Durante uma apresentação de trabalho com colegas. Foto: arquivo pessoal

Acompanhada da pequena Isa na faculdade. Foto: arquivo pessoal

Acompanhada da pequena Isa na faculdade. Foto: arquivo pessoal

Uma temporada em
terras brasileiras

Foto: Canva

Foto: Canva

Fernanda estava no hospital para acompanhar cirurgias que ocorreriam naquela manhã de março. Logo percebeu uma agitação diferente. Pediam para usar mais de uma máscara e não deixavam entrar nos ambientes sem aferir a temperatura antes. Em conversa com colegas, ouviu que o país estava com 100 casos de covid-19 confirmados. À noite, mais uma notícia para sacudir: todos os serviços do país seriam suspensos por 15 dias. No dia seguinte, a queda nos pedidos da hamburgueria apontava para a seriedade da situação. Muitos dos clientes estavam voltando para o Brasil. Do dia para a noite, a família estava sem faculdade, sem escola, sem poder renovar a documentação que em breve expiraria e praticamente sem trabalho. Em meio à quarentena, informações desencontradas sobre possíveis fechamentos do câmbio e da Ponte da Amizade, que liga Paraguai e Brasil, preocuparam o casal. Com a fonte de renda principal no Paraguai comprometida e com pedidos de reembolso do aluguel da casa de Ubatuba, Fernanda conta que o sentimento foi de desespero. Planejaram então um retorno ao Brasil, onde ficariam com a família de Fábio por 20 dias... que acabaram virando sete meses. 

Estar na casa dos sogros era uma segurança de que “fome não iriam passar”. Ainda assim, a falta de renda preocupava a família. Pensaram em recorrer a serviços antigos como as aulas, o trabalho em drogaria, vender picolé na praia e até catar latinha. O cenário de pandemia impossibilitava tudo. No meio das incertezas, Fernanda ouviu a sugestão de um amigo para concluir o curso na Espanha, onde seria mais barato, e indicou uma pessoa que poderia falar sobre o assunto. Não levou muito em consideração, mas decidiu criar um perfil no Linkedin para procurar o indivíduo. Na rede profissional, recebeu uma mensagem de outra pessoa, oferecendo um trabalho. A oportunidade era para ser conteudista, criando materiais didáticos universitários. Nem sabia o que era aquilo e até desconfiou, mas sem outra opção, resolveu topar e realizar um teste. O primeiro conteúdo era sobre genética. Começou a produzir às 20h para entregar às 8h do outro dia. A madrugada se dividiu em escrever e dar de mamar para a filha. O resultado foi bom e poucos dias depois ela foi contratada, ainda no mês de abril. Mais tarde, ainda conseguiu o cargo de tutora em um grupo educacional. As novas fontes de renda salvaram a família no período crítico, mas quando ainda estava insegura com os trabalhos a distância e sem saber se realmente receberia, Fernanda decidiu trancar a faculdade.

Enquanto trabalhava, Fernanda ainda se revezava no auxílio das aulas online de Manu, que na pandemia precisou interromper o tratamento para a dislexia. Em julho, estabilizada financeiramente, retornou às aulas da faculdade. No meio da bagunça da vida, descobriram que a dona da casa do Paraguai havia desligado a energia deles, gerando mais um nervosismo para o casal. Perderam toda a comida armazenada em um congelador e precisaram realizar uma mudança de casa a distância. Contaram com a ajuda de amigos paraguaios, que recolheram mais de 25 sacos de lixo e realocaram os pertences da família em outro imóvel.

O retorno foi em outubro e eles já chegaram para organizar a reabertura da Potter Foods. Precisaram comprar comida, panelas e potes e então anunciaram nas páginas do Instagram e Facebook: “VOLTAMOS!!!!! Estamos em CDE! A partir de sábado dia 31/10/2020 voltaremos a entregar os lanches mais mágicos que o Paraguai já conheceu! Sempre com toda a segurança contra o mais novo e perigoso comensal da morte!! Já mande a sua coruja pra garantir o seu lanche!! Estamos com muita saudade!”


Além de alimentar a página do negócio, Fernanda decidiu compartilhar nas redes sociais conteúdos sobre farmacologia e sobre a vida no Paraguai. O objetivo é confrontar um velho estigma de que o médico formado no Brasil seria melhor que o do Paraguai, além de ajudar quem também pretende estudar ou já está estudando Medicina fora. Em um vídeo de poucos segundos, por exemplo, Fernanda explica o tema colágeno sem falar uma palavra. A cada batida da dança da mãozinha, do grupo Tchakabum, ela aponta para informações escritas. Um formato popular no Instagram e TikTok para falar dos mais variados assuntos. No stories, compartilha desde as burocracias com a documentação até o trânsito e o passeio em família no mercado.

– Eu conto da minha vida... A ideia é colocar conteúdo de Farmácia, tem muita gente que reprova no revalida por causa de medicação, e tirar um pouco desse estigma de que médico paraguaio é ruim ou que médico só prescreve dipirona. Também tem gente que me manda mensagem falando que quer se mudar para o Paraguai e eu vou ajudando.


Em dezembro de 2020, nos primeiros dias de verão do hemisfério sul, as notícias sobre a vacina contra a covid-19 pareciam animadoras. Fernanda já se preparava para regressar no mês seguinte de forma semipresencial para a faculdade, que considera um ambiente de refúgio. Naquele ponto, a exaustão com a pandemia se mostrava enorme e a vontade era voltar o máximo possível à normalidade. O temor pelo vírus foi dando lugar ao medo da instabilidade financeira novamente. 

–  Hoje eu tô um pouco mais tranquila, mas no começo eu tinha mais medo de morrer, não por mim, mas por deixar minhas filhas, acho que qualquer mãe independente de pandemia tem isso. Mas não me limito a isso, preciso trabalhar pra comer e dar o que comer pra elas. Fico feliz por quem pode ficar em casa e tem dinheiro pra isso. Eu não posso. Preciso sair pra entregar o lanche, preciso sair pra comprar as coisas... Pra mim é doloroso pensar “e se eu não tiver mais o trabalho online?”, não é fixo. Hoje eu só vendo o mínimo, não paga nem o aluguel.

A insegurança financeira é uma preocupação constante, já que o movimento é baixo e oscila com o abre e fecha das medidas de restrição. Ainda assim, Fernanda avalia que durante a pandemia foi capaz de lidar com problemas que não imaginava que conseguiria. Acredita que consegue ser resiliente por estar junto à família. Graças a isso, ela segue e em 2021 inicia o quarto ano da graduação, prevista para terminar em 2023. O futuro é incerto, mas Fernanda conta que com as coisas que tem vivido, teria coragem de ir para qualquer lugar do mundo se fosse a melhor opção para todos. 

O sonho hoje é continuar na fronteira, morando no Paraguai e trabalhando no Brasil. Para isso, planeja fazer o Revalida, exame para validar o diploma estrangeiro. Pensa em se especializar na área de radiologia e atuar em terras brasileiras, onde considera o trabalho do médico mais valorizado. Ainda assim, o plano é seguir vivendo em terras paraguaias, onde a família encontrou qualidade de vida e oportunidade para crescer sem estar longe do país de origem.

Fotos: Arquivo pessoal

Fotos: Arquivo pessoal