
Michele Lopes, de 37 anos, nunca imaginou que uma visita ao cemitério mudaria sua vida. Tudo começou no fim do ano de 2014, quando as férias que planejava com a amiga do trabalho acabaram não acontecendo porque elas não conseguiram marcar o período de recesso no mesmo mês. Sozinha e um pouco insegura, decidiu não ir para muito longe de Porto Alegre, onde vivia, “caso desse alguma coisa errado”. O destino escolhido então foi a Argentina. Naquela tarde de dezembro, ela circulava pelas ruas da Recoleta, em Buenos Aires, em busca de um dos vários pontos turísticos do bairro argentino: o Cemitério da Recoleta. Patrimônio histórico nacional construído em 1822, o local é conhecido pelos mausoléus arquitetônicos e até artísticos, que abrigam figuras importantes como presidentes, escritores e vencedores do Prêmio Nobel. Um dos mais visitados é o da ex primeira-dama e líder política Eva Perón, que morreu em 1952. Seu corpo, no entanto, só chegou ao local em 1974, após ser roubado e ter passado por Espanha e Itália. Muitas histórias envolvem o cemitério e atraem turistas como Michele. Perdida, ela parou um grupo de amigas na rua para pedir orientação de como chegar lá e a visita ao cemitério gerou curiosidade.
– [O cemitério de Recoleta] é bem famoso aqui, principalmente pra turista, mas pra eles [argentinos] não é tão turístico, é mais pra quem é de fora. Naquele dia eu passei por um grupo de pessoas, tinham umas meninas e eu fui perguntar pra elas o caminho, porque eu não tava achando. Como elas viram que eu não era argentina me perguntaram o que eu tava fazendo ali, porque que eu queria ir no cemitério, bem curiosas – conta rindo.

Os mausoléus arquitetônicos do famoso cemitério de Recoleta. Foto por Camila Ferrari on Unsplash
Os mausoléus arquitetônicos do famoso cemitério de Recoleta. Foto por Camila Ferrari on Unsplash
Foi naquela interação que as coisas começaram a mudar. O papo foi fluindo e os amigos que estavam com o grupo de meninas que ajudou Michele entraram na conversa. As argentinas logo falaram que tinham vontade de conhecer o Brasil e Michele se colocou à disposição para ajudar, afinal ela era aeromoça e já havia passado por muitas cidades brasileiras. Papo vai, papo vem, no final, a brasileira e o grupo de amigos argentinos se adicionaram no Facebook. Um deles era Matias, estudante de Nutrição que vivia em Buenos Aires. Naquele primeiro encontro, lembra que ele foi gentil, mas não reparou muito, já que estava focada no passeio. O sentimento mudou mesmo quando ele a adicionou na rede social. Como no dia seguinte ela já voltaria ao Brasil, as conversas e o interesse foram se desenvolvendo pela internet e até por torpedos. “Não tinha essa facilidade de comunicação que a gente tem agora, apesar de não fazer tanto tempo”, comenta para explicar que não utilizavam o hoje popular WhatsApp. O reencontro ocorreu dois meses depois daquela visita ao cemitério em 2014.
– A gente se encontrou, ele me apresentou pra família já naquele dia mesmo e a partir daí a gente… tava namorando… tava num relacionamento, digamos – explica com uma certa timidez. A oficialização, no entanto, ocorreu um mês depois, quando Matias preparou um jantar e um vídeo com o pedido de namoro.
E assim, a distância, o relacionamento foi se desenvolvendo. O amado foi a Porto Alegre e conheceu a família dela no começo de 2018. Foi a única visita, já que ele tem medo de andar de avião. “E eu ainda tive que ir buscar”, complementa tirando sarro da situação. As visitas à capital argentina eram rápidas, de dois a três dias, e aconteciam nos eventuais voos do trabalho ou em viagens planejadas, primeiro uma vez a cada dois meses e depois uma vez por mês. Fora isso, o namoro a distância era alimentado pelos bate-papos virtuais. As conversas diárias se encaixavam na rotina intensa de trabalho. Entre os céus, aeroportos e hotéis, o trabalho como comissária de bordo a levou a muitos lugares ao longo de quase 12 anos.
A carreira na aviação começou aos 24 anos, em 2007. Dois anos antes, decidiu sair de casa e começar a vida adulta. Criada desde os 14 anos pelo tio materno, depois que sua mãe faleceu, ela conta que nunca lhe faltou nada e sempre viveu muito bem, mas aos 22 quis buscar sua independência. “Foi bem difícil no começo, passei uns perrengues mas no fim deu certo e a partir daí só foi, fui vivendo”, conta sempre sorrindo. Além de morar sozinha e trabalhar desde cedo, Michele buscou sua autonomia por meio dos estudos. Começou com cursos de estética – aprendeu a fazer depilação, cílios e serviços relacionados à pele – e chegou até a ter um pequeno salão com a irmã. Em seguida, foi para a graduação em Enfermagem. O interesse pela área não era novo, alguns anos antes, nem se lembra quando exatamente, ela se formou como técnica em Enfermagem. Por conta das demandas do trabalho, trancou e retomou o curso em diferentes ocasiões e instituições. No total, foram três anos estudando na graduação, que geralmente tem duração mínima de quatro a cinco anos.
– Eu sempre quis trabalhar na área da saúde, mas eu não tinha muito tempo pelo trabalho né, fiquei trabalhando praticamente 12 anos como aeromoça. Nesse meio tempo tentei fazer a faculdade, só que a área da saúde demanda um tempo que eu não tinha. Então eu começava a faculdade só que eu não conseguia terminar nunca, então acabei desistindo.
Voltar a estudar, no entanto, nunca saiu dos seus planos de vida e ela conseguiu retomar o sonho quando se mudou para o país vizinho. Antes do romance internacional, morar fora do Brasil nunca havia passado por sua cabeça. Só a ideia de viajar sozinha para o exterior já assustava. Lembra de uma situação similar a da sua viagem à Argentina, quando planejava viajar com uma amiga do trabalho, mas acabaram não conseguindo as férias no mesmo período. Com tudo pago para turistar pela Espanha, se viu sem alternativa a não ser ir sozinha. O principal receio era não conseguir se comunicar, mas quando chegou lá tudo correu bem. Já a decisão de partir para morar em Buenos Aires não foi nem um pouco difícil, ela enfatiza. A família aceitou bem, afinal, mesmo apegados, já estavam acostumados com a distância por conta do trabalho dela. Ainda assim, quando a ficha começou a cair, passou por momentos de nervosismo, principalmente quando pediu demissão em outubro de 2018.
– Então, a decisão [de mudar para a Argentina] foi bem fácil porque realmente eu acho que não pensei no que poderia enfrentar. Pensei que tudo ia ser super fácil, que tudo ia ser super bom, porque é aqui pertinho, essas coisas. Mas depois, caindo em si, é bem difícil. Quando eu decidi, eu pensei: “eu quero realmente voltar aos meus estudos, à área da saúde que eu amo, e se eu não fizer isso agora talvez seja tarde mais pra frente”. Aí falei na empresa e até sair, tudo bem, mas depois começou a me bater uma coisa assim dizendo “nossa, eu não vou mais trabalhar com isso e agora eu tô fora, não vou mais poder voltar”. E aí, quando bateu aquela coisa de realmente agora vou ter que dar andamento no resto dos meus projetos que eu fiquei meio assustada.
Próxima parada: Buenos Aires

Em dezembro de 2018, Michele chegou à Argentina e em fevereiro do ano seguinte se casou com Matias. Casar não era um sonho, mas em conversas ambos decidiram que queriam isso. A preparação foi corrida, fizeram tudo em dois meses, por isso, a família dela não conseguiu participar da cerimônia. O casamento no civil ocorreu em uma quinta-feira e a festa para 100 convidados, familiares e amigos de Matias, foi no sábado, na casa deles. No dia, ela usava um tradicional vestido branco que ia até os pés, enquanto o marido usava camisa social em azul escuro, além de calça e sapatos sociais. Foi o primeiro passo para começar a realizar seus projetos pessoais no novo lar. A Cidade Autônoma de Buenos Aires, capital argentina, já era bem conhecida das visitas nos anos de relacionamento a distância. Naquela altura, Michele já estava adaptada ao castelhano e a convivência com os sogros, ela faz questão de destacar, continuou boa como era antes dela se mudar para perto.
– Me tratam da melhor maneira possível, fazem de tudo pra que eu me sinta bem aqui. Fazem até mais pra mim do que pra ele [o marido]. Ele diz que eu sou muito mimada e realmente sou (ri). Eu moro numa casa em cima da casa dos meus sogros, é uma casa separada, mas eu posso ter contato com eles todos os dias. Com isso eu até me sinto mais protegida, eu sinto que tem pessoas ao meu redor, que me “defendem”, me sinto acolhida.
O acolhimento foi fundamental para ela se sentir em casa e, no geral, Michele enxerga o povo argentino como acolhedor e muito simpático. Entretanto, algumas situações destoam dessas características. A brasileira usa como exemplo o atendimento nos estabelecimentos para pontuar uma diferença cultural que observa entre Brasil e Argentina. Falante e sorridente, conta que chega a ficar de mau humor quando entra em uma loja para ser atendida.
– A gente chega em algum lugar e eles não tem uma simpatia pra atender, sabe? Eu sinto um pouco de falta disso porque eu sou bem brincalhona e sou muito sorridente, pra alguma coisa me incomodar realmente tem que ser uma coisa muito séria, tô sempre muito de boa. Só que eu entro nos lugares e aí até eu fico de mau humor com o atendimento, eles não dão um sorriso, nada. É bem diferente – ri.
Outras questões que ainda causam estranhamento são a inflação – “o pãozinho que hoje tá um preço, amanhã pode tá com outro” – e os assentos preferenciais dos ônibus. Lá, ela observa que há uma cultura em que as mães são muito protetoras com as crianças, por isso no transporte público é comum que os passageiros cedam o banco para uma criança, o que não ocorre necessariamente com um idoso. No Brasil, um idoso teria prioridade no assento, uma criança não. Ela pontua que é uma coisa pequena, mas que é possível observar a diferença de criação cultural de um brasileiro e um argentino. Fora isso, Michele diz que não sabe identificar com certeza o que é a cultura argentina, já que observa que há uma grande mistura de povos.
– A questão cultural eu não sei dizer exatamente… Tem uma mistura muito grande de outros países, tem bastante peruano, boliviano, venezuelano... Eles falam quase o mesmo idioma, mas não é o mesmo, então se juntou tanto que às vezes eu não consigo identificar qual é a cultura realmente argentina aqui. Às vezes comento alguma coisa com meu marido e ele diz ‘é, mas a gente não faz isso’, mas eu tô na rua andando e vejo pessoas fazendo isso, então eu fico meio confusa.
Ainda se adaptando à nova vida, ela deu seguimento a outros projetos. Fez um curso de extracionista, para trabalhar com coleta de sangue, mas não teve oportunidades na área. Decidiu então atualizar alguns cursos na área da beleza e passou a trabalhar com isso. Em um salão comandado por um argentino, mas com funcionários de diversas nacionalidades – a maioria do Paraguai – Michele passou a executar serviços de depilação, cílios e limpeza de pele. Já o desejo de retomar os estudos no curso de Enfermagem logo foi concretizado e ela começou a estudar na Universidad Aberta Interamericana (UAI), mesma instituição em que o marido estuda Nutrição. A faculdade particular lá é mais em conta que no Brasil, avalia Michele. A mensalidade é de cerca de $ 5.000 pesos argentinos, o que equivale a R$ 305 na cotação de 22 de fevereiro de 2021. Nas universidades privadas brasileiras, lembra que pagava em torno de R$ 600 a R$ 1.000, dependendo de quantas matérias faria no semestre. No primeiro quadrimestre (período de quatro meses) letivo na Argentina, ela participou de aulas teóricas. Lembra rindo que chamava atenção na aula por suas características físicas e por não falar o idioma local.
– Eu sou alta, tenho 1,72m, negra, brasileira, então assim, às vezes eu me sentia o centro das atenções. Vou fazer uma pergunta, todo mundo olha, sabe? Não me incomoda hoje em dia, mas já me incomodou.

Michele e Matias no dia do casamento. Foto: arquivo pessoal
Michele e Matias no dia do casamento. Foto: arquivo pessoal

Em 2018, Michele se mudou para Buenos Aires. Foto: arquivo pessoal
Em 2018, Michele se mudou para Buenos Aires. Foto: arquivo pessoal

Ela não associa a questão ao racismo, apenas à curiosidade dos colegas. Em relação ao tema racial, Michele comenta que nunca ouviu nada, entretanto observa olhares pelas ruas, como quando pega um ônibus ou quando saiu para passear com um amigo brasileiro e negro, mas não sabe identificar o que esses olhares significam. O marido brinca e diz que são de inveja, ao que ela ironiza “ah claro, porque eu sou a mais bonita de todas”. Imagina que pode ter a ver com o fato de que a Argentina tem poucos negros, mas não tem certeza.
– Na verdade, quando se fala nisso [racismo] eu não sei nem te dizer exatamente. As minhas amigas dizem que eu vivo no mundo da lua, até no Brasil eu não dava bola pra esse tipo de coisa. Eu sei que existe, sei exatamente do que vocês tão falando, só que eu não dou muita oportunidade pras pessoas fazerem esse tipo de coisa... ou eu realmente não percebo. Mas assim, aqui o que eu já percebi são olhares, só que eu não sei identificar se é porque eles acham bonito, se é por preconceito… São olhares somente, as pessoas não falam nada, mas elas olham com uma cara assim meio estranha, alguns olham parece que com espanto, outros com uma cara de curiosos.
Apesar da boa relação com os colegas, no segundo quadrimestre da faculdade, percebeu que o curso não era bem o que esperava. Não se sentia à vontade e notava uma certa barreira na relação com os pacientes, possivelmente gerada pela língua. No fim das contas, as práticas no hospital foram as culpadas pela desistência, como ela conta às gargalhadas.
– Eu sempre amei muito a Enfermagem… no Brasil. Mas ela é muito diferente aqui. Acabou que eu não me senti à vontade, sabe? Com os pacientes, talvez… não me sentia à vontade com o paciente que não falava o meu idioma. Eu chegava pra ter contato com os pacientes, eles eram simpáticos e tudo, mas eu não consegui levar adiante. No Brasil, a gente olha a cara da pessoa e a gente já sabe mais ou menos o que ela quer dizer, aqui parece que não. Às vezes a pessoa fazia uma cara feia e eu não sabia interpretar e eu ficava pensando naquilo. Tinha alguma barreira ali que eu não consegui passar, sabe? Eu achei que ali eu tinha que desistir.

Entrada da Universidad Abierta Interamericana. Foto: Google Street View
Entrada da Universidad Abierta Interamericana. Foto: Google Street View

Visão do prédio da universidade. Foto: Google Street View
Visão do prédio da universidade. Foto: Google Street View
Recalculando rota:
novos planos no isolamento

Desistir da Enfermagem não foi um peso e logo Michele seguiu em frente. Em abril de 2020, já começou um novo curso, na mesma instituição e também na área da saúde: Instrumentación Quirúrgica, em que terá mais interações com colegas do que pacientes. A graduação é voltada, como o nome sugere, ao estudo dos instrumentos utilizados em procedimentos cirúrgicos humanos. O curso abre um leque de opções de carreiras, como ser professora (o curso tem habilitação em licenciatura), pesquisadora, atuar em secretaria de saúde ou ser instrumentadora em hospitais e clínicas. A parte de dar aulas já é descartada, uma vez que ela sabe que não tem paciência de “ensinar pra quem não quer aprender”, como observa no comportamento de alguns colegas. O plano é atuar como instrumentadora.
– Agora eu tô fazendo duas matérias muito legais. Uma se chama práctica quirúrgica. Então eu tô vendo como se faz a cirurgia exatamente desde o início, desde que abre o paciente, o que precisa pra segurar a pele, o que precisa pra abrir... tudo. Porque o médico não vai ficar me pedindo, eu tenho que saber o que ele vai precisar. A outra matéria é a parte instrumental, tudo que é usado na cirurgia. Essas duas matérias se complementam.
Ainda que uma das disciplinas seja “prática”, a prática de fato não acontece, já que as aulas ocorrem de forma remota. Desde que começou o novo curso, aliás, Michele nunca voltou presencialmente ao prédio branco com janelas verdes da universidade na Avenida San Juan, nem conheceu pessoalmente os colegas, o que até acha bom. Mesmo não sendo tímida, se sente mais à vontade estando por trás da câmera, sem chamar tanta atenção pela cor, sotaque, altura ou qualquer outra coisa. No segundo curso de graduação na Argentina, ela nota a diferença do ensino de lá para o do Brasil. Na visão dela, os alunos de universidades argentinas precisam ser mais pró-ativos e ir atrás dos conteúdos, tendo o professor como uma figura para tirar dúvidas. Já nas brasileiras, os professores teriam um papel mais central, sempre lembrando e dizendo o que o aluno deve estudar.
– No Brasil parece que a gente é aquele aluno carregado pela mão e aqui não. Eles te dizem o que tu tem que estudar e aí tu tem que ir atrás. Os professores são atenciosos e a educação aqui é muito boa, mas eles não ficam em cima do aluno – mesmo aprendendo bastante lá, ela escolhe o estilo de ensino brasileiro, afinal gosta de ser “mimada”, como conta às gargalhadas.
As aulas virtuais, assim como o curso, foram uma novidade em meio a tantas mudanças no mundo. Isso porque em março, a Argentina, como outros países, determinou o lockdown para conter o avanço da covid-19, com o funcionamento apenas de serviços essenciais e com a restrição de circulação, em que era necessário ter autorização para sair. Nas primeiras notícias sobre o vírus, Michele admite que não acreditava ser tão grave, mas aos poucos a ficha foi caindo.
O lockdown, em princípio, não foi um problema. Até ficou feliz, achou que seria bom ficar mais tempo em casa para descansar e estudar. Passada a euforia inicial, ela deu uma “surtadinha”, como descreve, e ficou um pouco estressada com a situação. Aos poucos, as coisas foram ficando mais tranquilas, ainda que haja preocupação por conta do vírus, o que ela lida tendo os cuidados devidos. As restrições também foram diminuindo com o passar do tempo.
Em chamada de vídeo em uma noite de agosto de 2020, Michele conta que ainda estava se adaptando à volta ao trabalho no salão, que tinha ocorrido no dia anterior. Os atendimentos passaram a ser em dois dias na semana com horário estendido, revezando com colegas, diferente do período pré-pandemia quando trabalhava à tarde em cinco dias da semana. Como autônoma, ficou sem receber nos meses em que não trabalhou, o que gerou uma certa preocupação, mas não causou tanto impacto na vida financeira em casa. Ela explica que o dinheiro que ganha serve para comprar algumas coisas por fora e os gastos principais da casa são pagos com o salário do marido, vendedor em uma loja de cama, mesa e banho, que continuou recebendo nos três meses que precisou ficar em isolamento.
Os dias de quarentena foram tranquilos, regados a vinhos, filmes e banhos de sol no quintal. Isolados do vírus, o maior conflito dentro de casa talvez tenha sido a escolha do repertório das maratonas de séries e filmes. Michele e Matias não compartilham o mesmo gosto para o audiovisual. Mais que isso, ela descreve que o marido tem um péssimo gosto.
– A gente não gosta muito do mesmo gênero. Eu e meu marido pra gente conseguir ver alguma coisa juntos é difícil porque o gênero dele é péssimo. Gente, ele gosta de ver Rambo. Quem vê Rambo? Eu não vi nem quando era o filme do ano quem dirá agora. Eu gosto de filmes com mais suspense, coisas a ver com médico. Quando a gente encontra alguma coisa que a gente gosta de ver junto a gente vai até o final.
Assim, alguns dos eleitos foram Grey’s Anatomy, Elite, La Casa de Papel e uma série baseada em Karate Kid, Cobra Kai. Fora as maratonas de séries, o tempo em casa serviu para Michele cozinhar mais e tentar fazer exercícios físicos, o que não deu muito certo. Para o lazer, que ela chama de “meu momento”, os estudos dominaram a maior parte dos dias. Ela conta que gosta muito do que está estudando no curso e aproveitou ainda para voltar a estudar inglês, até comprou um curso online.

A quarentena reforçou os laços com o marido e com os sogros. Para lidar com as restrições, o casal se reúne de vez em quando com os pais de Matias para fazerem jantares e tornar o isolamento menos solitário. Ainda que comunicativa, ela considera que na Argentina tem mais colegas que amigos, convivendo mais com a família do marido. O melhor amigo dela lá é um brasileiro, que conheceu quando foi fazer as unhas no salão em que ele é cabeleireiro. Com ele, além de desenferrujar o português, conseguiu ter o tipo de amizade que não tem com colegas. Em tempos sem pandemia, ele dormia na casa dela, se visitavam e saíam juntos nos rolês pela cidade. Ela considera que Buenos Aires não tem tanto lugar pra sair e curtir quanto Porto Alegre, como baladas, mas há mais opções gastronômicas. Como boa taurina, que “passa a metade do dia pensando em comida”, ela gosta de sair para comer e não dispensa as tradicionais empanadas e medialunas. Aliás, fora a saudade da família, conta que o que mais sente falta no Brasil é da comida, basicamente de tudo, mas especialmente do pastel.
Os familiares do Brasil ainda não conseguiram visitá-la em Buenos Aires. Quando planejavam a viagem, uma irmã ficou doente e adiaram para 2020, quando então foram impedidos pela pandemia. Michele espera que, em algum momento de 2021, dê tudo certo e consiga ver os parentes, já que a ideia de ir a Porto Alegre em janeiro não pôde ser realizada pelos altos números da pandemia no Brasil. Para o futuro, ela também espera conseguir trabalhar na área da saúde. Até já preparou e distribuiu currículos, mas sente que faltam oportunidades. Comenta com o marido que é difícil, que não retornam contato e acredita que possa ter relação com o fato de ser estrangeira.
– Meu maior desafio aqui é não poder mostrar o meu valor. Por exemplo, agora eu tô querendo entrar no mercado de trabalho pra outra oportunidade e parece que por mais que eu seja boa no que eu faço eu nunca vou ser tão boa quanto um argentino. Eu posso até trabalhar melhor que ele, mas eu não consigo mostrar isso. Eu acredito que isso aconteceria em qualquer outro país, sempre o cidadão [nativo] vai ser mais valorizado. Eu sinto a barreira de não conseguir... não ter a oportunidade de mostrar que o meu trabalho pode ser melhor ou bom igual.
Além de uma chance para mostrar seu potencial, Michele espera continuar apaixonada pela carreira que escolheu, principalmente quando começar o ensino presencial e a interação com professores e colegas for maior. Com o fim de 2020, ela avalia que a pandemia trouxe uma vida mais chata e o medo por não se sentir seguro nos lugares. Entretanto, trouxe também melhores hábitos de higiene e convivência entre as pessoas.
Em 2021, Michele segue saindo apenas para o trabalho e concluiu o primeiro ano do curso com aprovação nas disciplinas. Para o novo ano, espera pela vacina e que as aulas sejam presenciais. O maior desejo, no entanto, é conseguir concretizar um sonho: engravidar e se aventurar na maternidade.
