Quando se mudou para a Argentina, para viver com o namorado argentino, Michele, 37, aproveitou a nova rotina para voltar aos estudos em Enfermagem, curso que não conseguiu concluir no Brasil por conta da vida atarefada como aeromoça. Também na área da Saúde, André, 26, migrou para um país vizinho, a Bolívia, para se tornar médico, uma vez que no Brasil o curso é um dos mais caros e concorridos. Da mesma maneira, Fernanda, 32, partiu para o Paraguai com o marido e a filha em busca do diploma em Medicina. Karine, 23, foi para a Colômbia no último ano da graduação em Administração com a ideia de conhecer o país e enriquecer o currículo com uma dupla diplomação, uma brasileira e outra colombiana. Já Emanuela, 24, e Alex, 33, encontraram no exterior a oportunidade de realizar a pós-graduação em instituições prestigiadas com programas voltados para suas áreas de pesquisa, ela em Direitos Humanos, no México, e ele, em Educação, no Chile.

Michele, André, Fernanda, Karine, Emanuela e Alex fazem parte do grupo de brasileiros que deixaram o país para estudar fora. Até 2018, assim como eles, mais de 3,5 milhões migraram para nações estrangeiras, conforme o último levantamento do Ministério das Relações Exteriores. No ano passado, ao menos 20.924 pessoas com domicílios tributários no Brasil declararam saída definitiva do país, como aponta a Receita Federal. Desses números, não há uma estimativa exata de quantos foram para estudar.

Por questões afetivas e de interesses educacionais, os seis peregrinos que compõem esta reportagem migraram para países da América Latina em busca da oportunidade de estudar e, de quebra, ter uma experiência internacional. Em meio a um novo estilo de vida, com adaptações ao idioma e à nova cultura, eles foram surpreendidos com o surgimento de uma pandemia mundial. Em 2020, nada saiu como o planejado e, mais uma vez, tiveram que readaptar suas rotinas e planos, assim como o restante do mundo, devido ao isolamento e medidas sanitárias de segurança. Os efeitos da covid-19 e as vivências desses estudantes podem ser conferidos nas próximas páginas desta reportagem.

Mas antes disso, é importante entender: o que os leva para fora do país? As migrações têm diferentes motivações, como conflitos políticos no país de origem, crises econômicas, questões afetivas e busca por melhores condições de vida, de trabalho e também educacionais. Nas migrações estudantis, diferente dos casos de conflitos, a partida é pensada e planejada, fazendo parte de um processo de internacionalização da educação. No Ensino Superior e na América Latina,  esse movimento é impulsionado por políticas de integração cultural e econômica das últimas décadas, como ações do Mercosul por exemplo, além de contribuir para a cooperação científica. Essa internacionalização também aproxima o Brasil da América Latina, que historicamente se construiu distante dos países hispanohablantes.

Para além da experiência internacional do currículo, a migração por motivos educacionais ocorre também por falta de oportunidades no país de origem, como na procura pelo curso de Medicina. “Geralmente, o que motiva [a mudança] é a oportunidade de estudar que eles não encontraram no Brasil. O sistema educacional não comportou essas pessoas no estudo da Medicina, então elas buscaram essa oportunidade em outro lugar”, explica a pesquisadora Maria Aparecida Webber, que investiga o fluxo migratório de estudantes. 

Com processos seletivos simplificados (ou até inexistentes) e mensalidades mais em conta, os principais destinos são os vizinhos Argentina, Bolívia e Paraguai, que, em 2019, somavam 65 mil brasileiros estudando nas faculdades de Medicina, segundo números divulgados em reportagem do jornal O Estado de São Paulo. No cenário brasileiro, até outubro de 2020, o país tinha 357 escolas médicas com um total de 37.823 vagas na graduação, sendo 28.081 em instituições privadas e 9.742 públicas, de acordo com o documento Demografia Médica no Brasil. Na edição 2019/2 do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), em um cenário pré-pandêmico, Medicina teve 169.711 inscritos para 1.446 vagas. Já na última edição, de 2021, foram 286.373 inscrições para 4.220 vagas. Além dos vestibulares concorridos e da má distribuição das vagas (concentradas principalmente na região Sudeste), o valor das mensalidades em universidades particulares brasileiras é um fator que pesa para quem pensa em cursar a graduação. No ano passado, o custo mensal era em média de R$ 8.722, como aponta levantamento do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior de São Paulo (Semesp). 

Como nem só de realizações se constroem os sonhos, os infortúnios aparecem no meio do caminho. Em 2020, o mundo parou. Um vírus até então desconhecido, o Sars-Cov-19, se proliferava pelo mundo causando mortes, principalmente por complicações respiratórias. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em março, que o surto se caracterizava como uma pandemia e os países, então, se organizaram (ou desorganizaram) com medidas restritivas e de isolamento. 

No Brasil, mais de um ano depois do início da pandemia e ainda antes do fim de abril de 2021, o mês em questão já era o mais letal do vírus no país, com mais de 67 mil mortes. Na América Latina e Caribe como um todo, além dos elevados números de mortos pela doença – mais de 888 mil em 25 de abril, de acordo com a Reuters –, a pandemia ampliou as desigualdades na região, com 33,7% da população vivendo na pobreza, sendo 12,5% na extrema pobreza, segundo estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Com a pandemia, Fernanda voltou com a família para o Brasil pelas inseguranças financeiras, já que precisou fechar sua hamburgueria que pagava todas as contas. O curso, mesmo virtual, foi trancado por alguns meses, até que a estudante conseguisse se organizar e ter uma nova fonte de renda. Para André, o ano seria de recomeços. Depois de dois anos afastado da Bolívia e do curso, após episódios de ansiedade, ele havia retornado para as fases finais da graduação. No entanto, logo a rotina passou a ser solitária em casa com as aulas virtuais. Também preocupado com as questões financeiras, tentou voltar logo ao Brasil. Para isso, precisou criar um grupo de repatriação com outros brasileiros, já que a fronteira permanecia fechada para viagens normais.

Para Michele, no começo, o isolamento foi tranquilo, com mais tempo para se dedicar ao novo curso – ela trocou a Enfermagem pela Instrumentação Cirúrgica. Mas, com o passar dos meses, a situação foi gerando preocupação e uma sensação de sufocamento em meio a tantas informações. Karine mal teve tempo de conhecer sua cidade na Colômbia. Poucos meses depois de se mudar, precisou viver a experiência do intercâmbio entre quatro paredes, acompanhada do namorado. Abatida, aguardava ansiosamente pelo retorno para casa. Assim como ela, Alex mal viveu o Chile e logo entrou em quarentena. Preocupado com as incertezas do futuro da pandemia, voltou assim que pôde para o Brasil, ainda em abril de 2020. Já Emanuela continuou no México e por algum tempo optou por não ler notícias da pandemia no Brasil, o que lhe causava preocupação por estar longe da família.

Trabalho de Conclusão de Curso
Ana Caroliny Ritti e Emily Menezes Leão
Departamento e curso de Jornalismo
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Assim como eles, as autoras da presente reportagem, também estudantes do Ensino Superior, precisaram se adaptar às perdas e adversidades da pandemia. Se antes, a rotina incluía aulas, estágio, ônibus lotado, almoço no restaurante universitário e conversa jogada fora por aí, hoje tudo isso pode ser resumido a uma vida virtual. Enquanto a realidade lembra a todo momento da evidência da morte, aos trancos e barrancos tenta-se levar a vida com alguns resquícios da velha normalidade. Este trabalho surge nessa tentativa de “seguir a vida” no estilo da crise atual: pelas telas e a distância. A partir dos relatos por vídeo e mensagens do Alex, do André, da Emanuela, da Fernanda, da Karine e da Michele, a reportagem constrói os perfis de cada um para retratar as vivências cotidianas no Brasil e na América Latina, suas visões como migrantes, além dos efeitos de uma pandemia nesse processo de mudança. 

“En plena convalecencia, y con un sentimiento de nostalgia anticipada, nos fuimos del pueblo…” Gabriel García Márquez, em Doze Contos Peregrinos