TAINHA DE LABORATÓRIO

UFSC é pioneira na reprodução de espécie em cativeiro

Quando o mês de maio chega e o frio se intensifica, uma visitante assídua aparece nas águas do litoral catarinense: a tainha. Com a pesca artesanal, o peixe se mantém símbolo da tradição, mas ainda é subexplorado comercialmente. Pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no entanto, podem contribuir para o nascimento de alternativas economicamente viáveis, capazes de garantir a oferta da tainha durante o ano inteiro e agregar valor à sua produção.  

O Laboratório de Piscicultura Marinha (Lapmar) foi o primeiro do mundo a conseguir reproduzir todo o ciclo de vida da espécie Mugil liza em cativeiro. O projeto teve início em 2014, quando 14 exemplares adultos selvagens (quatro fêmeas e dez machos) foram capturados em Laguna, no Sul do estado, e transportados para a unidade de pesquisa da UFSC, instalada em Florianópolis. 

Coleta de sêmen para fecundação em cativeiro. Crédito: Acervo Lapmar

Coleta de sêmen para fecundação em cativeiro. Crédito: Acervo Lapmar

Esse primeiro lote de reprodutores foi mantido em um tanque de 12 m3, onde as fêmeas receberam indução hormonal para liberação dos ovos;  enquanto os machos liberaram sêmen quando submetidos a massagens abdominais. A fecundação dessa espécie ocorre na água e, no estudo pioneiro, a eclosão das primeiras larvas foi registrada 48 horas após a desova. Por cinco anos, todas as desovas realizadas no Lapmar utilizaram os exemplares selvagens. Somente no fim de 2019, alguns meses antes da pandemia, a experiência foi consumada com exemplares da primeira geração nascida em cativeiro, chamada F1.  

Crédito: Acervo Lapmar

Crédito: Acervo Lapmar

Crédito: Acervo Lapmar

Crédito: Acervo Lapmar

Registro de ovos embrionados. Cada fêmea da tainha pode liberar entre 500 mil a 2 milhões de óvulos para fecundação

Este é o momento da segunda divisão celular, que acontece entre 15 e 20 minutos após a fecundação, quando já são percebidas quatro células

Cada ovo fecundado possui uma gota de óleo, que garante a sua flutuação e dá o substrato energético para os primeiros dias da larva

Na continuação do desenvolvimento embrionário, passa a ser perceptível a evolução da cabeça e da cauda da larva

Larvas recém-nascidas, com saco vitelínico, em estágio rudimentar: a cabeça ainda na fase de formação dos olhos e sem a abertura da boca

A principal contribuição do trabalho concebido na UFSC foi o domínio do ciclo de vida da espécie. Com o desenvolvimento integral dessa geração no laboratório, os pesquisadores conseguiram acompanhar o processo de maturação sexual e constataram que os machos apresentavam espermatozoides viáveis por volta dos 11 meses de idade, quando atingiam em torno de 24 a 25 cm de comprimento. As fêmeas, por sua vez, estavam aptas à reprodução somente aos três anos, com cerca de 40 cm. 

A pesquisa demonstrou regularidade nos índices de desova e na qualidade dos ovos, permitindo um grande avanço no controle da reprodução da tainha fora do seu habitat natural. O domínio desta técnica torna possível produzir o peixe todos os meses do ano e escalonar sua produção. Neste mês de maio, a equipe do Lapmar iniciou o trabalho de preparação para a desova da segunda geração (F2). 

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2 dias após a eclosão (DAE) do ovo fecundado

2 dias após a eclosão (DAE) do ovo fecundado

7 dias após a eclosão

7 dias após a eclosão

11 dias após eclosão

11 dias após eclosão

13 dias após eclosão

13 dias após eclosão

17 dias após eclosão

17 dias após eclosão

20 dias após eclosão

20 dias após eclosão

29 dias após eclosão. Crédito: Acervo Lapmar

29 dias após eclosão. Crédito: Acervo Lapmar

O engenheiro de aquicultura Caio França Magnotti, supervisor do Laboratório de Piscicultura Marinha, começou a trabalhar na UFSC em 2013 e acompanhou todas as pesquisas desenvolvidas na instituição sobre a espécie desde então. Para ele, ainda que seja complexo garantir que os peixes fiquem aptos à desova no ambiente do laboratório, a parte mais crítica do processo são os primeiros 15 dias após a eclosão do ovo. “É uma fase praticamente microscópica. Você quase não vê a larva. Você não pode encostar nela, que ela morre. Então, qualquer deslize, uma temperatura diferente, um choque mecânico ou um choque de luz, como acender e apagar a luz, pode causar a morte. É muito delicado", pondera.

A origem do laboratório

O Lapmar foi criado em setembro de 1990 para atender uma demanda de produção de tecnologias e de difusão de conhecimentos sobre peixes marinhos em cativeiro, especialmente de espécies presentes no litoral catarinense. É hoje o mais antigo laboratório do gênero no país dedicado à pesquisa, ao ensino e à extensão. Instalado na Barra da Lagoa, leste da Ilha de Santa Catarina, ele faz parte da Estação de Maricultura Professor Elpídio Beltrame (EMEB) – unidade externa do Departamento de Aquicultura do Centro de Ciências Agrárias (CCA) da UFSC. 

O surgimento e a história do laboratório estão intimamente ligados à trajetória de um profissional: o professor Vinícius Ronzani Cerqueira. O docente se aposentou no último mês de abril, após dedicar mais de três décadas à UFSC e à supervisão do Lapmar. Ao cursar o doutorado na França, terra natal de seu ídolo, o oceanógrafo Jacques Cousteau, Vinícius já planejava que, quando retornasse ao Brasil, abriria uma linha de pesquisa nova, para estudar nossos peixes. O foco desde o princípio foi desbravar a piscicultura marinha brasileira. 

"Quando a gente começou não havia nenhum grupo de pesquisa com esse objetivo: estudar as espécies marinhas nativas. Foi difícil começar algo inovador. Já havia publicações sobre peixes marinhos, mas eram poucas. Por isso, insisti nessa área e peguei essa oportunidade para trabalhar"
Vinícius Ronzani Cerqueira

No início o serviço foi árduo e era executado por Vinícius com a colaboração do seu primeiro orientando, o estudante Aliro Bórquez Ramirez, engenheiro formado no Chile e hoje reitor da Universidad Católica de Temuco, cuja dissertação foi a primeira defendida no curso de Aquicultura da UFSC, em 1991.

Ao longo da carreira, o professor Vinícius se dividia entre as atividades no Lapmar e os compromissos como docente no CCA, onde chegou a ocupar as funções de chefe de Departamento e coordenador da graduação e pós-graduação. Em muitas oportunidades, levou a família ao local de trabalho nos fins de semana. "Era um trabalho que não podia parar. Além do meu ofício como professor de segunda a sexta-feira, aos sábados e domingos muitas vezes precisava visitar o laboratório. Dependendo da fase de desenvolvimento em que os peixes estavam, ficar dois dias sem ninguém verificá-los era muito arriscado”, recorda.

A Barra da Lagoa está localizada no lesta da Ilha de Santa Catarina. Crédito: Prefeitura Municipal de Florianópolis

A Barra da Lagoa está localizada no lesta da Ilha de Santa Catarina. Crédito: Prefeitura Municipal de Florianópolis

Em uma área de 9,8 mil m2, a EMEB agrega laboratórios que atuam no cultivo de camarões, peixes marinhos nativos, moluscos e algas marinhas. Crédito: Divulgação

Em uma área de 9,8 mil m2, a EMEB agrega laboratórios que atuam no cultivo de camarões, peixes marinhos nativos, moluscos e algas marinhas. Crédito: Divulgação

Professor Vinícius foi por mais de três décadas supervisor do Lapmar. Crédito: Acervo pessoal

Professor Vinícius foi por mais de três décadas supervisor do Lapmar. Crédito: Acervo pessoal

Vinícius com o filho nas instalações do Lapmar no ano de 1990. Crédito: Acervo pessoal

Vinícius com o filho nas instalações do Lapmar no ano de 1990. Crédito: Acervo pessoal

O projeto começou com o estudo da reprodução do robalo-peva (Centropomus parallelus), por meio da investigação acerca da criação de larvas e juvenis – esta última é uma fase da vida do peixe que se inicia a partir de 30 a 40 dias depois do nascimento, quando possui entre 2 e 3 cm, e termina com a maturação sexual. A experiência serviu de base para o trabalho com o robalo-flecha (Centropomus undecimalis) pouco tempo depois. 

Experiência com o robalo serviu de base para o trabalho com diversas outras espécies. Crédito: Acervo Lapmar

Experiência com o robalo serviu de base para o trabalho com diversas outras espécies. Crédito: Acervo Lapmar

Linguado, carapeva, badejo e bijupirá também já foram objeto de pesquisas pontuais da equipe do laboratório. Na última década, entretanto, iniciaram-se os estudos com espécies não-carnívoras, por um método conhecido como Aquicultura Multitrófica Integrada (AMTI), um sistema de produção que integra espécies diferentes em um mesmo ambiente de cultivo, resultando na conversão dos resíduos de uma delas em fonte de alimento ou em fertilizante para outra.

O primeiro peixe estudado nessa fase foi a sardinha-verdadeira (Sardinella brasiliensis), muito explorada comercialmente. Hoje as sardinhas estão totalmente aclimatadas às condições de confinamento, com desovas espontâneas (sem a necessidade de indução hormonal) durante o ano. Já a segunda espécie não-carnívora foi a tainha (Mugil liza), cujas pesquisas iniciadas na década de 1980 foram retomadas nos últimos anos. 

No momento, o Lapmar mantém dois projetos ativos: um deles é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc) e concentra-se no estudo sobre a intensificação do processo de reprodução da sardinha; e o outro, fruto de uma parceria entre a UFSC e a Universidade Federal do Rio Grande (FURG) com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), trata da eficiência de cultivo de tainha e miragaia (ou burriquete), peixe nativo que está em extinção e com a pesca proibida.

Parcerias para além dessas águas

Atualmente a infraestrutura do Lapmar é dividida em três grandes áreas: setor de reprodutores, setor de larvicultura e uma área de estufa para produção piloto em maior escala, contabilizando 20 tanques para o cultivo das espécies. Ainda completam a estrutura física o setor de microalgas e o depósito de ração comercial, para os casos em que a dieta não é desenvolvida dentro do próprio laboratório.

Com o fim da pandemia e o encerramento de algumas pesquisas, seis alunos e dois servidores se revezam na rotina do laboratório. São inúmeras as tarefas diárias: desde os cuidados com a oxigenação, salinidade e temperatura da água até o cálculo e preparação da alimentação dos animais. Normalmente, peixes adultos comem de 3 a 4 vezes por dia; porém, na fase de larvas, essa frequência pode saltar para 10 vezes em um período de apenas 24 horas. Fora isso, em determinadas fases de pesquisa, são promovidas avaliações para medição de parâmetros, checagem de aparência e análise de sangue. 

São realizadas avaliações periódicas nas espécies. Crédito: Acervo Lapmar

São realizadas avaliações periódicas nas espécies. Crédito: Acervo Lapmar

O Lapmar ocupa dois hectares da Estação de Maricultura da UFSC, possui uma ampla estrutura, mas carece de investimentos, conforme destacam Caio e Vinícius. A Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária (Fapeu) financia há duas décadas os insumos para a criação dos peixes e para a manutenção básica do laboratório. Contudo, o último grande aporte de recursos para a melhoria das condições físicas do local ocorreu em 2007, por meio do extinto Ministério da Pesca e Aquicultura. A partir de 2013, os investimentos caíram drasticamente e, nos últimos quatro anos, o laboratório recebeu somente R$ 60 mil ao todo e, ainda assim, conseguiu manter pesquisas de alto nível.  

Tanque na Estação de Maricultura da UFSC. Crédito: Acervo Lapmar

Tanque na Estação de Maricultura da UFSC. Crédito: Acervo Lapmar

Uma das fontes extras de recursos, embora tímida, é a comercialização do chamado "descarte de pesquisa", unidades excedentes das espécies cultivadas que interessam a produtores de todo o país. Além de Santa Catarina, exemplares dos peixes são enviados principalmente para o Rio Grande do Norte, Ceará, São Paulo e Rio de Janeiro. Os servidores e alunos do laboratório providenciam os procedimentos de transporte, acompanham o desenvolvimento e o manejo dos peixes, orientam da aclimatação até a engorda, segundo adequações para a realidade de cada região.

Mais da metade dos estados brasileiros já adquiriram espécies produzidas pela UFSC, seja para centros de pesquisa ou para produção comercial. Os casos mais bem-sucedidos foram a criação de robalo e tainha em larga escala no Rio Grande do Norte, em áreas de viveiros de camarão; e a experiência com o cultivo de sardinhas em tanques-rede pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), na enseada da Armação do Itapocorói, no município de Penha, litoral Norte de Santa Catarina.

Mais da metade dos estados brasileiros já adquiriram espécies produzidas na UFSC. Crédito: Acervo Lapmar

Mais da metade dos estados brasileiros já adquiriram espécies produzidas na UFSC. Crédito: Acervo Lapmar

Uma das parceiras mais recorrentes é a Aquarium Aquicultura do Brasil Ltda., uma unidade de produção de peixes e camarões marinhos, localizada em Mossoró (RN). O proprietário, Enox de Paiva Maia, é ex-pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e afirma ter uma estreita relação com a UFSC desde os anos 1970. "É um conhecimento de longa data pela relação de amizade e pela relação científica também, de publicação de papers e de participação em muitos eventos nacionais e internacionais juntos. É uma relação de conhecimento e amizade de mais de quatro décadas", diz Enox.

A empresa potiguar frequentemente efetua a compra de juvenis. De acordo com Enox, nos últimos cinco anos a Aquarium adquiriu espécies decorrentes de todas as desovas realizadas no Lapmar, totalizando cerca de 40 mil unidades. "Os peixes foram utilizados para pesquisa de crescimento, de produção, de produtividade, de sobrevivência aqui na região Nordeste desses exemplares oriundos do Sul. A tainha é uma espécie muito interessante, com resultados econômicos extremamente importantes. Inclusive, nossos desempenhos foram superiores aos obtidos nas regiões Sul e Sudeste", frisa o proprietário, explicando que a água quente do Nordeste diminuiu o tempo de espera para a maturação sexual da Mugil liza.

Crédito da imagem: Alexander Zvir | Unsplash

Berçário para pesquisas de alto nível

O intercâmbio não é apenas comercial, mas também de conhecimento científico. No decorrer de sua história, o Laboratório de Piscicultura Marinha colaborou com instituições de ensino de Portugal, Espanha, Chile, México, Canadá e Estados Unidos. No Brasil, as atividades são desenvolvidas com parcerias públicas ou privadas, e a produção de juvenis é planejada de acordo com a demanda dos experimentos realizados no laboratório.

Recentemente, uma doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Aquicultura (PPGAQI), a colombiana Esmeralda Chamorro Legarda, realizou parte de seu estudo na UFSC e a outra no Instituto de Investigaciones Oceanológicas da Universidad Autónoma de Baja California (UABC), no México. O trabalhou sagrou-se vencedor do Prêmio Capes de Tese do ano passado, na área de Zootecnia e Recursos Pesqueiros.

Engenheira em produção aquícola pela Universidad de Nariño, na Colômbia, Esmeralda fez sua pesquisa em estufas experimentais dentro do Laboratório de Camarões Marinhos (LCM), com juvenis de peixes fornecidos pelo Lapmar. O trabalho tratou da criação conjunta de camarão, tainha e macroalgas em um mesmo ambiente aquático, com uso da alimentação por bioflocos (partículas orgânicas nutritivas depositadas na superfície da água). "Um consórcio na piscicultura é a união de várias espécies que cumprem funções específicas. Nesse caso, eu tinha três espécies que fazem parte de diferentes níveis da cadeia, do triângulo alimentício, que é chamado de cadeia trófica", descreve.

A criação do camarão foi realizada simultaneamente à da tainha, de modo que o peixe consumisse os restos orgânicos deixados pelo crustáceo. A inserção de macroalgas aconteceu em seguida, aumentando a retenção de nitrogênio e fósforo presentes na água. Sob orientação dos professores Felipe do Nascimento Vieira e Marco Antonio de Lorenzo, a tese intitulada Aquicultura Multitrófica Integrada de camarão, tainha e macroalga em sistema de bioflocos aplicando conceitos de economia circular concluiu, entre outras descobertas, que a integração de camarão e tainha poupou em 17% a água utilizada e incrementou a produtividade em 11,9%.

"São avanços como esse que vão abrindo novas pesquisas e, ao mesmo tempo, inovando a realidade do cultivo atual. Hoje eu trabalho no Equador, moro aqui, e tenho contato direto com o cultivo de camarões. Então, tenho a possibilidade de aplicar na prática toda a metodologia que utilizei para alcançar bons resultados. É um tipo de pesquisa que não se aplica somente no Brasil, mas também no mundo inteiro, pois tem um alto impacto", salienta a doutora.

Outra pesquisa, conduzida pela pós-graduanda Vanessa Martins da Rocha, pode contribuir ainda mais para se agregar valor à tainha e ampliar seu mercado de consumo. A aluna, que cursa o doutorado no PPGAQI, desenvolveu um experimento sobre inversão sexual da espécie Mugil liza por meio de hormônio feminizante. O estudo trabalhou com diferentes concentrações de estradiol na dieta da tainha para inversão sexual em fêmeas, uma vez que elas apresentam maior valor agregado em relação aos machos devido às suas ovas. 

Considerada o 'caviar brasileiro', a ova é mais valorizada do que a carne da tainha. Crédito: Jolkesky | iStock

Considerada o 'caviar brasileiro', a ova é mais valorizada do que a carne da tainha. Crédito: Jolkesky | iStock

"As ovas das nossas tainhas são consideradas o caviar brasileiro, por serem muito saborosas e utilizadas em diversos pratos. No exterior, os mercados que mais importam do Brasil são Taiwan e China, e o preço pode chegar até U$ 20 dólares [cerca de R$ 103] o quilo. Ou seja, a ova é mais valorizada que a própria carne da tainha", informa Vanessa, que coloca Santa Catarina e São Paulo como os estados que mais se destacam nesta produção.

A pesquisa foi encerrada recentemente e a inversão sexual completa ainda não foi concluída. Entretanto, o experimento obteve animais intersexo, condição em que os sexos feminino e masculino estão presentes em uma mesma gônada. Segundo Vanessa, será preciso ajustar o tempo e o momento de exposição ao hormônio.

De acordo com o supervisor do Lapmar, Caio Magnotti, a bibliografia sobre o tema traz inúmeros métodos testados em outros peixes, com diversas variáveis, o que torna difícil obter êxito na primeira tentativa. "Cada espécie é diferente da outra, e esse foi o primeiro passo para conseguirmos descobrir como fazer. Podemos trabalhar com hormônios em fases diferentes, com doses e tempos de exposição distintos, de forma injetável ou alimentar. Até mesmo a temperatura influencia nesse processo. É algo muito complexo, muito amplo", justifica. 

Crédito: Damocean | iStock

Crédito: Damocean | iStock

A rainha das águas no inverno

Tainha é a designação de vários peixes da família dos mugilídeos, que engloba mais de 70 espécies, distribuídas em 20 gêneros. No Brasil, muitas espécies são conhecidas também pelos nomes de parati, saúna, curimã, tapiara, targana, cambira, muge, fataça, entre outros.

A tainha é um peixe com alimentação diurna e, essencialmente, herbívora e detritívora. Crédito: Acervo Lapmar

A tainha é um peixe com alimentação diurna e, essencialmente, herbívora e detritívora. Crédito: Acervo Lapmar

Em média, a tainha Mugil liza pesa de 2 a 4 kg e mede aproximadamente 50 cm. Apresenta um corpo robusto, alongado e fusiforme (com as extremidades mais estreitas que o centro), com a cabeça pontiaguda e achatada, a boca pequena, e os olhos grandes e amarelados – parcialmente recobertos por uma pele (pálpebra adiposa) muito desenvolvida nos adultos. 

São peixes com alimentação diurna e, essencialmente, herbívoros e detritívoros. Eles se alimentam de algas, zooplânctons e detritos. "Resumidamente, eles comem qualquer coisa. A tainha tem o estômago muito muscular, bem curtinho e pequeno, e o intestino bem longo. Assim, é um peixe adaptado para comer restos vegetais, tudo o que tiver no fundo de uma lagoa, de um estuário. No laboratório dá pra ver elas fazendo isso: vão ao fundo, pegam a matéria orgânica, mastigam e soltam. Elas ficam o dia inteiro comendo", informa o supervisor do Lapmar, Caio Magnotti. 

Caio Magnotti é engenheiro de aquicultura e cursou da graduação ao doutorado na UFSC. Crédito: Maykon Oliveira

Caio Magnotti é engenheiro de aquicultura e cursou da graduação ao doutorado na UFSC. Crédito: Maykon Oliveira

A espécie Mugil liza migra anualmente de estuários na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul até o norte do estado de São Paulo. Deslocam-se em grandes cardumes a partir da Lagoa dos Patos, no estado gaúcho, principalmente. Juntam-se aos indivíduos vindos do estuário do Rio da Prata e rumam ao oceano com o intuito de reproduzir. De acordo com seu tamanho, a tainha fêmea pode liberar no mar entre 500 mil a 2 milhões de óvulos, que se encontram ao acaso com o esperma do macho. Os óvulos fertilizados são abandonados à própria sorte, postos à deriva, servindo muitas vezes de alimento para outras espécies, sendo atirados à beira das praias pela força das correntes ou mortos pela mudança de temperatura. 

Com a chegada do frio, a tainha começa a aparecer na costa de Santa Catarina. É neste momento que os pescadores artesanais se preparam para a captura dos cardumes, dando início à temporada das safras, que vai de maio a julho. Por causa disso, é uma espécie considerada muito vulnerável à atividade pesqueira, uma vez que sua safra coincide com seu período reprodutivo. 

Crédito: Zontica | iStock

Crédito: Zontica | iStock

A tainha é pop!

Não dá pra negar, a tainha é popular: já foi por diversas vezes cardápio do Restaurante Universitário (RU), inspira reggae, estampa camisetas, é tema de sarau e, claro, gera memes. Quem não se recorda do senhor Sálvio, servidor aposentado da UFSC que ficou famoso na internet ao contar seus planos para uma noite do Dia dos Namorados? A verdade é que a tainha é uma figura muito conhecida – e prestigiada – na história do litoral catarinense, especialmente nas regiões de colonização açoriana. 

Sua pesca no Brasil remete a um tempo anterior à chegada dos europeus. Registros de historiadores e navegadores antigos indicam que a atividade já era praticada pelas tribos indígenas que habitavam o litoral brasileiro no século XVI. A primeira descrição da pesca da tainha foi narrada por Hans Staden (1525-1579), viajante alemão feito prisioneiro pelos Tupinambás em 1554, em seu livro Duas Viagens ao Brasil

"Em português chamam-se tainhas, em espanhol lisas e, na língua dos selvagens, piratis. Os selvagens chamam de piracema essa época da desova. Nessa época vão todos para a guerra, tanto os Tupinambás quanto seus inimigos, e durante os deslocamentos apanham e comem os peixes. (...) Com freqüência, também vem gente que mora longe do mar e que pesca muitos peixes, torra-os no fogo, tritura-os, faz farinha e a seca bem para que se conserve bastante"
Hans Staden

Figura do livro Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden. Crédito: Reprodução

Figura do livro Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden. Crédito: Reprodução

Os indígenas geralmente pescavam em baías, estuários e mangues, lugares onde se podia facilmente ir a pé, sem precisar de qualquer equipamento ou outro instrumento elaborado para fazer a captura dos peixes, conforme explica o historiador Francisco do Vale Pereira, museólogo da UFSC e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC). Em Santa Catarina, a tradição indígena foi então adaptada pelos colonizadores açorianos, que introduziram modificações técnicas e preservaram a pesca artesanal até os dias atuais.

> Ouça como a tradição da pesca artesanal foi transmitida por gerações: 

As comunidades pesqueiras se agrupam nos meses de outono e inverno, porque a pesca da tainha demanda trabalho coletivo. Cada turma fica responsável por uma etapa. Quem monitora a aproximação dos cardumes são os olheiros, o grupo que permanece de vigia no alto das dunas. Ao avistar a chegada das tainhas, eles avisam – geralmente por rádio – os companheiros, que se apressam em colocar as canoas na água e jogar a rede de arrasto. Já a última etapa envolve duas equipes, que ficam em pontas diferentes da rede e puxam-na até a areia. O número de integrantes varia de acordo com o tamanho da rede, mas é comum ver até crianças e turistas auxiliando nesse processo. 

Cada membro recebe uma boa quantidade de peixes denominada 'quinhão', que é proporcional à função ocupada no rancho de pesca. Existem os ajudantes, os remeiros, o patrão e o dono da canoa (este último, normalmente, recebe um quinhão mais generoso). Outra parte é separada para ser doada a todos que ajudaram a puxar a rede, e o restante das tainhas é vendido para visitantes e empresas de distribuição de pescados.

"A pesca da tainha simboliza muita partilha, porque todos sabem que durante essa época terão peixe para comer. Não é só quem foi lá capturar e que vai comercializar, mas quem participou dessa atividade tem sua parte também", reforça Francisco, que é também coordenador do Núcleo de Estudos Açorianos (Nea) da UFSC. "Dessa forma, a tainha representa, em primeiro lugar, fartura. Em segundo lugar, subsistência; mas também identidade cultural, associativismo, cooperativismo e, principalmente, vida comunitária", complementa.  

Além do 'quinhão' para os membros do rancho, parte dos peixes é doada a quem ajudou na puxada da rede. Crédito: Prefeitura Municipal de Florianópolis

Além do 'quinhão' para os membros do rancho, parte dos peixes é doada a quem ajudou na puxada da rede. Crédito: Prefeitura Municipal de Florianópolis

Para o historiador, o reconhecimento da atividade artesanal da pesca pelo poder público, como reflexo da tradição e identificação cultural, ocorreu tardiamente. Apenas em 2019, duas comunidades pesqueiras do litoral catarinense receberam o registro de patrimônio imaterial no estado: a praia do Campeche, em Florianópolis, e o município de Bombinhas. O processo de reconhecimento pela Fundação Catarinense de Cultura (FCC) teve início em 2017, em ambos os casos. Na Capital, a iniciativa envolveu uma equipe de pesquisadores do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e a Associação dos Pescadores Artesanais do Campeche; em Bombinhas, teve a participação da Fundação Municipal de Cultura.

Crédito da imagem: Pedro Kümmel | Unsplash

Photo by Pedro Kümmel on Unsplash

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Da rede para a mesa

Ícone da gastronomia regional, a tainha é protagonista de alguns festivais ao longo da costa catarinense. "Como sempre teve uma quantidade grande passando pela região, o povo aprendeu a consumir, a preparar e a conservar o peixe. E, quando acontece esse tipo de situação, na qual um alimento é muito abundante, a comunidade acaba se acostumando a usá-lo; ele começa a fazer parte da sua cultura", afirma a professora de Gastronomia do IFSC, Silvana Graudenz Müller, egressa do Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (PPGEGC) da UFSC. 

No inverno, a tainha chega a desbancar o salmão, a pescada e o linguado e assume o posto de prato do dia em diversos restaurantes. O jeito mais comum de consumi-la é assada ou grelhada, com suas ovas sendo usadas no acompanhamento como ingrediente da farofa. Mas o peixe aceita vários métodos de cocção e pode ser frito em postas, recheado, cozido, defumado... A tainha escalada, por exemplo, retrata a cultura de origem portuguesa. No preparo, o peixe é aberto pela espinha, salgado e levado a secar ao sol. Depois é temperado e assado, geralmente na brasa. 

Assada, grelhada, frita, em postas, recheada... a tainha vai bem com muitos métodos de cocção. Crédito: Acervo Lapmar

Assada, grelhada, frita, em postas, recheada... a tainha vai bem com muitos métodos de cocção. Crédito: Acervo Lapmar

Quase todas as partes do pescado também podem ser aproveitadas para a produção de um caldo. A professora Silvana, pesquisadora de cozinha regional e da gastronomia tradicional de Florianópolis, destaca as partes da tainha que usualmente não são empregadas na alimentação em nossa cultura. "Com a guelra, as vísceras, as escamas, a espinha dorsal, além das barbatanas e das nadadeiras laterais, não é possível fazer uma preparação, mas podem ter uso para outros fins", conta. Ela ressalta quais aspectos devem ser verificados na hora da compra do peixe para consumo: "É necessário conferir a firmeza da carne, se os olhos estão brilhantes, as guelras bem vermelhas, e se as escamas estão bem aderentes. Se tiver essas características, é um peixe fresco".  

Crédito: Odairson Antonello | iStock

Crédito: Odairson Antonello | iStock

O peixe é uma opção saudável para uma dieta balanceada, principalmente quando comparado à carne vermelha, conforme explica Ana Paula Gines Geraldo, docente do Departamento de Nutrição da UFSC e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições (Nupre). Segundo a professora, o nosso organismo consegue digerir de forma mais eficiente a proteína do peixe, o que nos permite tirar melhor proveito dos nutrientes.

As proteínas são importantes para a formação e o desenvolvimento de massa muscular, além de contribuírem para o fortalecimento da pele, dos cabelos e de células do sistema imunológico.  Mas peixes são também ricos em gorduras boas, o chamado ômega-3, nutriente presente nas águas do mar. Ele reduz o colesterol ruim e aumenta o bom, além de auxiliar no aspecto cognitivo. "Os estudos mostram que o ômega-3 seria capaz de melhorar a cognição. Isso é muito importante, principalmente em idosos, em fatores relacionados à doença de Alzheimer, por exemplo", diz Ana Paula.

O ômega-3 presente nos peixes contribui para a capacidade de cognição. Crédito: Acervo Lapmar

O ômega-3 presente nos peixes contribui para a capacidade de cognição. Crédito: Acervo Lapmar

Peixes como a tainha ainda possuem em sua composição a vitamina D, que fica armazenada na gordura do animal. Essa vitamina é benéfica ao nosso organismo, pois é capaz de ajudar a prevenir problemas cardíacos, diabetes e câncer. Para a professora Ana Paula, embora a tainha seja considerada um peixe gordo (é mais calórica que o atum e a cavala, mas menos que o salmão), ela se encaixa perfeitamente em uma dieta balanceada. "Não podemos esquecer que cerca de 50% dessa gordura [da tainha] é do tipo insaturada, que é um tipo de gordura que está relacionada com a saúde do coração, com prevenção de doenças cardiovasculares. Então, mesmo que ela apresente um valor calórico alto, pode entrar sim numa dieta equilibrada, só que não em grandes quantidades", considera.

Embora a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estabeleça a recomendação internacional de 12 kg de peixe por habitante ao ano, o brasileiro consome em média 9 kg, conforme dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, de 2016. Desta forma, a carne de peixe perde em consumo para o frango (42 kg por habitante ao ano), carne vermelha (40 kg) e carne suína (15 kg), ainda que seja uma opção mais saudável.

Para Ana Paula, apesar de o Brasil possuir uma enorme costa marítima e inúmeros rios de grande porte, o consumo pouco expressivo se deve ao valor cobrado.

"Na maior parte das regiões, a oferta é pequena e os preços acabam sendo, muitas vezes, relativamente altos, inclusive se comparados ao da carne vermelha. Até a carne que comumente chamamos 'de segunda' é bem mais barata do que o peixe, o que limita bastante o consumo"
Ana Paula Gines Geraldo

E, mesmo com a aceitação no Sul do país e um custo mais acessível, a tainha raramente ocupa as primeiras posições nos levantamentos dos pescados mais vendidos no Brasil. O salmão, o camarão e o bacalhau, embora tenham preços mais salgados, ainda assim são mais consumidos. 

Um mercado subexplorado

A tainha Mugil liza é um importante recurso pesqueiro na região Sul. Santa Catarina, com uma costa de 531 km (7% do litoral brasileiro), é o maior produtor do pescado, sendo responsável por 45% da captura. Em seguida, aparece o Rio Grande do Sul, com 30%. Ou seja, os dois estados respondem por 3/4 da produção no país.

A Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina (Fepesc) realiza a coleta de dados para levantamento das safras há mais de uma década. Segundo a entidade, foram capturadas 1.800 toneladas de tainha em 2021. Para este ano, a previsão é que sejam registradas 2.000 toneladas. "Tudo indica que vamos cumprir essa meta, os indicativos estão bons para este ano", afirma o presidente da Federação, Ivo da Silva.

O governo brasileiro adota, desde 2018, o sistema de cotas para pesca da tainha. De acordo com a Fepesc, em 2022, estão credenciadas 95 embarcações para pesca artesanal e autorizadas nove embarcações para pesca industrial. Apesar de alguns avanços, o presidente da entidade critica a falta de diálogo e de investimentos no setor. "A pesca artesanal apresenta uma realidade preocupante para os pescadores e suas famílias. A situação crítica ao longo da costa catarinense se agrava com falta de investimento do setor público e apoio social. A regulamentação é editada em Brasília, sem nenhum estudo técnico e socioeconômico", critica Ivo.

Já o supervisor do Laboratório de Piscicultura da UFSC, Caio Magnotti, avalia que o estado ainda não explora os nichos de mercado disponíveis. "É sempre a mesma coisa: o pescador vendendo a tainha inteira; a peixaria vendendo ova; e o restaurante vendendo tainha frita. Então, se você for ver, na economia de um estado, no PIB, não é um negócio interessante. Tivemos uma forte frente fria há uns anos e uma supersafra de tainha, e o mercado não absorveu isso: tinha tainha sendo vendida a R$ 1", lembra.

"Deveríamos criar produtos diferenciados, beneficiados, com alto valor econômico, e aí sim trazer benefício para comunidade, gerar emprego, imposto. Pode-se exportar as ovas. Assim, criamos um grande mercado, uma grande indústria, com maior expressividade econômica", propõe Caio. Para o pesquisador, a ampla tolerância à salinidade e à temperatura, a elevada robustez e o fácil manejo alimentar são características que qualificam a tainha para esta proposta, como uma ótima alternativa para a piscicultura.

Botarga - ova de tainha seca e dessalgada - faz sucesso na gastronomia de outros países. Crédito: Julien Viry | iStock

Botarga - ova de tainha seca e dessalgada - faz sucesso na gastronomia de outros países. Crédito: Julien Viry | iStock

A pesquisa com indução hormonal para inversão sexual dos peixes tornará possível o cultivo de uma geração de tainhas quase que inteiramente composta por fêmeas. Além da obtenção das ovas para comercialização in natura ou para produção de botarga (sua versão dessalgada e seca), isso resultaria em um rendimento 30% maior de carne, pois os machos são menores. Durante o ano inteiro poderia ainda se trabalhar com subprodutos provenientes do peixe, como óleos e farinhas, permitindo o uso de 100% do animal. Com a consolidação do ciclo de reprodução da tainha em cativeiro e o início das pesquisas com os hormônios feminizantes, o Lapmar pretende ser peça fundamental no que pode significar um valioso mercado para a economia catarinense.

Crédito da imagem: Andy Chilton | Unsplash

Texto e edição

Maykon Oliveira | maykon.oliveira@ufsc.br
Jornalista - Agência de Comunicação | UFSC