Turismo impacta a alimentação de famílias rurais no interior de Santa Catarina

Professor da UFSC coordena pesquisa que fornece subsídios para políticas públicas sobre segurança alimentar

“Artesanal”, “típico” ou “gourmet”. Na tentativa de atrair consumidores, diferentes adjetivos contam histórias e agregam conteúdo simbólico aos alimentos, mas também aumentam seu preço. O custo pode ser elevado a ponto de torná-los inacessíveis até mesmo para quem tradicionalmente os produz. É o caso de Timbé do Sul, município do sul de Santa Catarina, cujos agricultores não conseguem reter para o consumo doméstico o próprio queijo produzido devido à alta demanda do setor turístico.

“A substituição da agricultura pelo turismo traz consequências importantes na dieta das famílias rurais”, explica Clécio Azevedo da Silva, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador sobre o tema dos regimes alimentares. “Elas acabam se tornando compradoras de alimentos [apesar de produzi-los]”.

Os resultados do estudo coordenado por Clécio fornecem subsídios para o fortalecimento de políticas públicas voltadas à alimentação, como a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) – além de reforçar a necessidade de aplicá-las, já que não há um sistema de fiscalização sobre elas.

A criação de espaços de segurança alimentar e nutricional é especialmente importante para contextos mais propensos a vulnerabilidades, como os pequenos municípios, afirma a estudante Tainara de Souza, do curso de Graduação em Geografia da UFSC. Timbé do Sul é vizinha de Praia Grande, a “capital dos cânions” famosa pelo destino turístico dos geoparques. Situados na mesma região sul de Santa Catarina, somam pouco mais de 12 mil habitantes.

De acordo com os pesquisadores, o município de Praia Grande deixou de ter a agricultura como principal atividade econômica desde os anos 1990, optando por desenvolver o setor de turismo. A cidade vizinha tenta replicar esse fenômeno. “Os administradores públicos já declararam a intenção de converter a base agrária do município para a turística”.

O exemplo de Timbé do Sul evidencia as transformações dos regimes alimentares ocasionadas pela modernização e diminuição da população rural. Motivados pelo caso, Clécio e sua equipe entrevistaram famílias rurais e urbanas do município entre 2022 e 2023 para identificar elementos desse fenômeno. Além do professor e de Tainara, participam do projeto o professor titular do Departamento de Geociências, Nazareno José de Campos, e a estudante Beatriz Vitorino, do curso de Graduação em Nutrição

Para agradar turista

“Não é ‘só um queijo’. É um queijo ‘artesanal’ e ‘produzido no pé da serra’”. O exemplo de Tainara traz características que agregam valor ao produto – para atender a demanda turística, comerciantes locais são estimulados a vender alimentos que tenham alguma relação com a tradição regional.

Este valor, por outro lado, “desloca o produto da realidade”, afirma a estudante. “Com o aumento da procura e do preço, ele passa por um processo de elitização. Intermediários que vêm de um centro urbano, por exemplo, muitas vezes compram todo o queijo disponível, usando até mesmo de acertos prévios com os produtores. É comum não sobrar nada para a comunidade”. 

Nas visitas a Timbé do Sul, os pesquisadores identificaram uma forte dependência das famílias rurais à expansão do turismo, especialmente na criação de cafés coloniais, restaurantes e pousadas. Alguns dos alimentos que compõem estes cardápios, explica Clécio, até já foram esquecidos pela comunidade – mas ainda são vendidos como “típicos” ou “tradicionais”. “É uma diversidade montada para atender as expectativas dos turistas”, resume o professor. “Mas ela nem sempre representa a realidade das famílias que os produzem”.

Além do queijo, outros insumos correm o risco de inflacionar e se tornar inacessíveis aos produtores locais em detrimento do consumo dos turistas. O salame é um deles, diz Clécio. Já a manteiga retorna à dieta das famílias, mas também encarece à medida que é revalorizada. “Passamos por uma série de aconselhamentos no Brasil que demonizaram a manteiga em prol da margarina”, observa Tainara. “Mas agora vemos a volta dela como um alimento tradicional desejado”.

Agrotóxicos aprofundam quadro de vulnerabilidade alimentar

As histórias ouvidas pelos pesquisadores em Timbé do Sul e Praia Grande têm origem semelhante: costumam ser famílias cujas dietas eram baseadas nos próprios alimentos que produziam; agora, estão em contato com uma oferta muito mais ampla de escalas do sistema alimentar, o que altera suas comidas do dia a dia.

Segundo Clécio, os regimes alimentares são “a ponta final do sistema alimentar no qual as suas escalas se encontram”. Em outras palavras, diferentes regimes coexistem sob o guarda-chuva de um sistema global e multiescalar. “Há regimes que respondem mais às influências da região e do estado, e existem outros que desprezam essas influências e são (re)formados a partir das escalas superiores, por exemplo”. Uma delas é a renda e a capacidade de acesso das pessoas.

No caso de Timbé do Sul, a economia do turismo é o fator preponderante no rearranjo dos regimes alimentares. Mas a escolha pelos alimentos que compõem nosso cardápio também sofre interferência de variáveis culturais, regionais, ideológicas e de classe social, para citar algumas.

Alguns fatores também contribuem para o estado de vulnerabilidade alimentar — conceito que engloba desde a ingestão inadequada ou excessiva de nutrientes até situações mais extremas de fome crônica. O uso de agrotóxicos é um deles. O Brasil é o maior consumidor do mundo: só em 2023, aprovou 505 registros de pesticidas, informa o Ministério da Agricultura e Pesca.

Os números podem aumentar graças ao Pacote do Veneno. O projeto de lei aprovado pelo Senado apresenta riscos para a contaminação de água e comida, facilita o uso de substâncias cancerígenas causadoras de doenças e flexibiliza regras para a licença e venda de novos agrotóxicos, entre outros pontos. Em dezembro de 2023, o presidente Lula vetou trechos do texto. Em especial, pontos que fragilizam o trabalho de fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

“No mundo do trabalho, o tempo de cozinha é cada vez menor”

Outro elemento que impacta a vulnerabilidade alimentar é o tempo de trabalho. O cultivo do fumo, por exemplo, requer dedicação quase exclusiva dos agricultores durante o período de safra, a ponto de não conseguirem manter uma horta doméstica. “Uma das famílias de Timbé do Sul nos disse que não tinha tempo nem para plantar a cebolinha, que não exige maiores cuidados. A dependência com o mercado é muito intensa”, diz Tainara.

No Brasil, os processos de modernização dos regimes alimentares acontecem de forma lenta e gradual ao longo do século XX, em paralelo à transição para modos de vida mais urbanos. O tempo de deslocamento ao trabalho e as longas jornadas contribuem para incorporar à dieta das famílias alimentos industrializados e pré-prontos.

A fumicultura é um exemplo dos impactos da modernização. Segundo Tainara, “todo o espaço de cultivo e o tempo de trabalho é voltado à produção de fumo para uma indústria que é oligopólio de capital mundial. As famílias param temporariamente ou até permanentemente de produzir alimentos que compunham suas dietas, o que as coloca em situação de vulnerabilidade alimentar”.

E se “no mundo do trabalho, o tempo de cozinha é cada vez menor”, como afirma Clécio, algumas alternativas surgem em resposta aos processos de modernização dos regimes. Uma delas é a alimentação de origem orgânica e base agroecológica, na contramão do uso intensivo de agrotóxicos.

O turismo também pode ser aproveitado como qualificador dos regimes alimentares, desde que feito de forma sustentável. “A questão são os critérios sócio-ambientais”, reitera o professor. Para Clécio, é de interesse do turista que o manejo dos recursos naturais pelos agricultores não tenha insumo de venenos. Com o estímulo dos administradores públicos, pode-se forçar o avanço de uma agricultura mais benéfica ao meio ambiente nas regiões turísticas.


Pesquisa contribui para fortalecer políticas públicas sobre alimentação

No caso de Timbé do Sul e Praia Grande, os regimes resultam de uma integração das produções locais e regionais com o sistema alimentar. “O que chega nessas localidades também é o que circula em escala nacional”, afirma Clécio. Famílias de municípios rurais podem estar mais voltadas ao autoconsumo alimentar, mas os regimes estão cada vez mais integrados ao contexto urbano.

É a multiplicidade de escalas que explica a falta de tempo da produtora de fumo para plantar a cebolinha, ou a produtora de queijo que não consegue atender a demanda interna de sua comunidade. “Todos estes são elementos importantes para pensar a merenda escolar, por exemplo”, reflete o professor. “Como vamos botar produtos para a merenda se não há produtores locais?”.

O fortalecimento de cardápios variados e nutritivos cria espaços de segurança alimentar e nutricional; uma política relevante para os 20 milhões de brasileiros que ainda passam fome, segundo estudo divulgado em 2023.

Para Tainara, os dados colhidos na pesquisa de campo demonstram a necessidade de articular organizações locais para fornecer subsídios às prefeituras. “Até para não ficar somente em propriedades isoladas, sem uma produção diversificada em quantidade. É preciso um esforço do poder público para dialogar com as associações de produtores orgânicos”.

Atualmente, o grupo dá continuidade ao projeto com novas discussões teóricas sobre o tema dos regimes alimentares. Os resultados da primeira etapa, que envolveu as visitas a Timbé do Sul e Praia Grande, devem ser publicados em breve no formato de artigos acadêmicos.

Clécio Azevedo da Silva é professor titular do departamento de Geociências da UFSC e doutor em Geografia Humana pela Universidad de Barcelona. Dedica-se aos seguintes temas de pesquisa: geografia rural e econômica, organização do sistema agroalimentar, desenvolvimento rural em áreas periféricas.
Contato: clecio.silva@ufsc.br

Tainara de Souza é graduanda em Geografia da UFSC e atua como bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica e Tecnológica (PIBIC) no projeto Modernização dos regimes alimentares em pequenos municípios: os casos de Timbé do Sul e Praia Grande (SC), coordenado pelo prof. Clécio.
Contato: tai.souzza@gmail.com