
Lendo pelo celular, hein? Para uma melhor experiência, utilize o dispositivo na horizontal (modo paisagem). Boa leitura! 🤓
Suli e sua língua apresentam-se juntas. Ela é uma das duas mil e duzentas pessoas do mundo que falam xokleng. “O idioma” é citado por ela sempre assim, com artigo definido, enfatizando sua singularidade. É em Santa Catarina, às margens do rio Itajaí do Norte, que resistem os membros dessa gente do sol, como se denominam os Laklanõ — o último grupo existente dessa nação indígena.
— A gente é uma etnia única no Brasil e no mundo. Os Xokleng somos únicos — firma Sulihana Laionda Juvei — Daqui mais alguns anos, só vai existir o nome do Xokleng, não vai mais existir a cultura, a língua. Isso é o que mais me preocupa.
Mal saiu dos 18 anos e teme por saberes séculos mais velhos que ela. Vê as rugas se multiplicando nos rostos dos anciões — nativos do idioma — enquanto ouve os mais novos papeando em sons trazidos pelas caravelas.
Sua pátria é a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, espalhada pelos municípios de Vitor Meireles, José Boiteux, Itaiópolis e Doutor Pedrinho no norte catarinense. Por causa da graduação em Odontologia, a estudante divide-se entre sua terra-natal e Blumenau. Da sua casa à colônia alemã, Suli e sua língua vão juntas fazendo o que julgam ser mais importante do que qualquer outra coisa: fortalecer as origens indígenas.
Nesta reportagem, escutaremos Suli algumas vezes. Como as gravações foram feitas a distância, eventualmente os áudios apresentam pequenos problemas técnicos. O conteúdo, no entanto, continua interessante para a melhor compreensão desta história.
A quem não puder ouvir: abaixo de cada áudio há um botão que levará você a uma página com todas as transcrições.
De uma forma ou outra, fica o convite para conhecer as palavras de Sulihana Laionda Juvei.
Árvores da aldeira Figueira, na Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. |Foto: João Voia
Árvores da aldeira Figueira, na Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. |Foto: João Voia
Com um número crescente de famílias mestiças, formadas por indígenas e não-indígenas, a língua xokleng foi ficando em segundo plano. Hoje, um projeto de revitalização do idioma está em andamento, proposto pelo doutor Nanblá Gakran, que criou um dicionário xokleng-português e participou da integração da língua ao currículo escolar.
Suli aprendeu as duas línguas em casa e na sala de aula. Estudou na Escola La Klãnõ, na aldeia Figueira. O ensino é quase o mesmo do de fora da reserva, mas “um pouquinho diferente”. Dentro da terra indígena, as crianças têm aula com professores também indígenas e sua cultura — amplamente ignorada para além dos limites da reserva — perpassa todos os aprendizados. Além das diferenças nas aulas de língua e História, Suli lembra de aprender certas operações matemáticas enquanto calculava as medidas para um arco e flecha.
— O que eu mais gostava era aula de Geografia! Em Geografia, a gente fazia tudo aqui na aldeia: via o relevo, a fauna e flora da reserva. Tudo aqui dentro.
Nas aulas práticas, os alunos desbravam os 14 mil hectares da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. Deixam a Figueira, fazem trilhas, passam por cachoeiras e exploram as outras oito aldeias da reserva. O povo Xokleng vive nas aldeias Bugio, Coqueiro, Figueira, Palmeira, Pavão, Pli Pa Tól e Sede. Na mesma reserva, há ainda as aldeias Takuaty, dos Guaranis, e a Toldo, onde moram os Kaingangs. Ao todo, são quase 900 famílias. São dez caciques na Laklãnõ: um para cada aldeia mais o (ou a) cacique-presidente.
A família de Suli é uma das 186 que vivem na maior aldeia da reserva, a Coqueiro. Há um posto de saúde que a menina descreve como um “mini-hospital”, uma escola desativada e, ao lado de sua casa, uma das congregações evangélicas da reserva, frequentada por seu pai. Hoje, a maior parte da comunidade Xokleng é membro da Igreja Pentecostal. Até os hinos de louvor são traduzidos para o idioma.
Não muito longe, vê-se o campo de futebol onde Suli joga desde pequena — “Pequena, não! Desde criança, porque eu não cheguei nem no 1,50 m de altura”, conta rindo. Em campo, no lado direito do ataque, já participou de campeonatos municipais com os times da reserva. Antes parte da equipe Laklaño, hoje ela joga pelo Duque de Caxias — primeiro nome dado ao Posto Indígena, no início do aldeamento dos Xokleng.
De todos os lugares que descreve da reserva, o sorriso é maior quando fala das várias cachoeiras, todas muito bonitas. Gosta de ir, olhar a paisagem, tirar fotos… Já conheceu Floripa, já foi a praias e pondera que é diferente a experiência com o mar, interessante a água salgada, mas prefere mesmo suas cachoeiras.
Em um dia de sol forte, com o suor quase escorrendo da testa, os olhos brilham quando pensa em aliviar o calor em uma das quedas d’água. Mas, assim como milhares de brasileiros, ela e a família Juvei evitam sair de casa por conta da pandemia de coronavírus. Suli deixou o apartamento em Blumenau e retornou à casa dos pais, Zilá Namblá e Patté Juvei.
São nove filhos ao todo: seis gurias e três guris, especifica nossa protagonista — a quinta da linhagem. A primogênita tem 28 anos e o segundo mais velho, 27. Depois, forma-se uma “escadinha” na qual cada degrau equivale a dois anos de diferença, dos 23 aos 15 anos — Suli encontra-se bem no meio. Abaixo, um menino de dez anos e uma menina de seis, a “neném”.
Na casa vivem Suli, seus pais, seis irmãos e dois sobrinhos.
— A cultura do indígena é assim, de ficar a família toda reunida ali. Isso é bom porque a gente tem os indígenas. Eles têm mais esse jeito de ficar tudo junto, rindo, conversando. Isso é bom até pro nosso psicológico! Já pensou um indígena desolado? Isso fica um pouquinho mais difícil...
Seu pai é uma das lideranças Xokleng e deixou há pouco o posto de cacique da aldeia Coqueiro. Nas leis internas da reserva, é preciso que o cacique afaste-se antes do fim do mandato para que possa se candidatar à reeleição. Foi pensando nos próximos quatro anos que Patté Juvei renunciou. Durante a pandemia, os povos da Terra Laklãnõ estudavam como realizar uma eleição sem provocar aglomerações e garantindo a saúde de sua comunidade durante a pandemia.
Junto à esposa Zilá Namblá, Patté Juvei é também agricultor. A família planta aipim, pepino, alface e outras verduras mais. Suli gosta de mexer com a terra e ajuda na plantação. A parte de colher, porém, deixa para o pai e os irmãos.
A família é toda de sangue indígena. O pai é Xokleng e a mãe, mestiça de índio com índio — filha de uma Kaingang e um Xokleng. De Candinha Namblá, a avó materna que mora ali por perto, Sulihana puxou a teimosia. Com a avó paterna, que não chegou a conhecer, compartilha o nome índigena: Laionda Juvei.
Por alguns anos, Patté Juvei viveu com o pai “no mato”, como se referem ao interior das florestas, à beira do rio Itajaí. Isso antes da reserva ser delimitada e da nação ser dividida em aldeias. Antes dos alagamentos, antes dos Xokleng perderem suas terras. Antes das consequências desastrosas da Barragem Norte.
“Por causa da barragem que foi construída aqui, a gente perdeu muitas coisas, muita terra, muitos lugares que eram essenciais pra nós”
A chuva anuncia a tormenta dos Laklãnõ, os descendentes do Sol. Em cima da Terra Indígena, em José Boiteux, foi construída a maior estrutura de controle de cheias do Brasil. A Barragem Norte suporta até 357 milhões de metros cúbicos de água — mais de cinco vezes o volume da Lagoa da Conceição inteirinha, localizada em Florianópolis. A edificação ficou a cargo do Departamento Nacional de Obras e Saneamento, a partir de 1972, depois de acordo com a Fundação Nacional do Índio, a Funai.
O vale do rio Itajaí sofre com alagamentos constantes. São três barragens ao todo, sendo a de José Boiteux construída para proteger as cidades de Ibirama, Indaial, Blumenau e Gaspar. Quem a projetou se esqueceu (ou não se importou) de proteger também os indígenas.
Dos 14 mil hectares oficialmente pertencentes à reserva indígena, quase mil foram destinados a abrigar a bacia de contenção. São 856 hectares de terras produtivas inundadas, submergindo plantações, bem-estar e História. O prejuízo, além de ecológico, é cultural. Durante os períodos de cheia, quando se fecham as comportas, estradas ficam submersas e crianças não têm como chegar à escola.
Com os efeitos catastróficos da barragem, a luta pelo direito básico à terra pelos indígenas Xokleng, Guarani e Kaingang atinge outras proporções. Oficialmente demarcada em 1965 e homologada quase 30 anos depois, a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ tem 14.156 hectares de terra regularizados. Em agosto de 2003, o Ministério da Justiça reconheceu no Diário Oficial da União que, na verdade, pertencem aos indígenas 37.108 hectares de terra. Cadastrada na Funai como Terra Indígena Ibirama-La Klãnô, além dos quatro municípios que atualmente ocupa, a reserva se espalharia até Rio Negrinho.
Apesar de já declaradas aos indígenas, as terras precisam ainda ter seus limites materializados e registradas para enfim estarem regularizadas. Enquanto o processo caminha na Justiça, os 23 mil hectares de terras indígenas tradicionalmente ocupadas são espaços de disputas travadas entre os povos originários e os agricultores que vivem na região.
Morro da Serra Verde, a mais alta da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. | Foto: João Voia
Morro da Serra Verde, a mais alta da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. | Foto: João Voia
Em março de 2014, Suli — então com 15 anos — foi uma dos mais de 200 indígenas que acamparam nas passarelas da barragem. À época, a cacique-presidente Cintia Nubia Machado disse à imprensa que sete aldeias foram inundadas, uma delas ficou isolada por 40 dias.
Por quase três anos, a família Juvei ali ficou, ao lado de várias outras, à espera das casas prometidas através de um acordo firmado, no final de 2015, entre Funai, Ministério Público Federal, Defesa Civil do Estado e governo federal.
A casa conquistada, onde agora Suli dorme com os irmãos, tem dois quartos, um banheiro e mais um cômodo. Fica ao lado da casa principal, que soma quatro quartos, um banheiro, sala e cozinha, onde ficam os pais, uma irmã de Suli e todas as crianças. É na casa maior, branca de porta verde-escura, que todos fazem as refeições juntos.
Aos 19 anos, nossa menina Xokleng já perdeu as contas de quantos atos e manifestações participou.
A Barragem Norte fica no rio Itajaí do Norte, no município de José Boiteaux. | Foto: João Voia | Colaborou na edição do áudio: Giovanni Velozo
A Barragem Norte fica no rio Itajaí do Norte, no município de José Boiteaux. | Foto: João Voia | Colaborou na edição do áudio: Giovanni Velozo
Suli tinha uns três ou quatro anos de idade quando foi a um protesto pela primeira vez. Não lembra qual era a causa. Desde então, vai a todos que consegue. Diverte-se com meninos, meninas, adolescentes e anciãos vestidos de índio, como diz ela, dos pés à cabeça — um suspiro enquanto lutam por terras, educação, saúde, e pelo que mais for preciso para garantir a vida e a cultura de seu povo.
Por onde vai Suli, o orgulho de suas origens a acompanha. Quando ultrapassou os limites da reserva, valorizou ainda mais o que aprende com sua família, professores e anciãos. No último 8 de março, pouco depois de se mudar para Blumenau, desfilou pelo centro da cidade com outras mulheres indígenas. Festejou e protestou endossando seu traje xokleng no meio da colônia alemã.
Na mesma época, em 2019, Sulihana participou do manifesto que mais a marcou até agora. Em março, mais de 400 indígenas interditaram a rodovia BR-470, na altura de Ibirama. O protesto foi contra a municipalização da saúde indígena: o atendimento que acontece em distritos, na asa do governo federal, passaria a ser de responsabilidade das prefeituras municipais. Com manifestações nacionais da comunidade indígena e profissionais de saúde, os povos originários venceram essa batalha.
Da infância, Suli se lembra com muito gosto das coisas: comia pêra, pêssego, goiaba, jabuticaba, laranja, tangerina… Tudo das árvores do quintal de sua mãe, nas quais ia trepando até apanhar as frutas do alto. Acha graça dos seus pés hoje (número 34), mas eram seus pezinhos que a levavam correndo de uma aldeia a outra, para brincar no barro ou pescar no rio. Juntava-se aos primos e parentes para fazerem arco e flecha ou atirarem uns nos outros com estilingue.
— Eu sinto falta disso, porque hoje em dia não é o mesmo. A gente brincava, a gente inventava brincadeiras. Hoje a tecnologia tá bem mais avançada. É difícil tu encontrar uma criança brincando saudável, né, correndo como a gente fazia antes.
Quando era criança, todos os dias de Suli eram especiais. Pergunto se tem algum do qual se lembra com mais carinho. “O Dia do Índio!”, diz ela, roubando um pouquinho na resposta ao escolher não uma única data, mas todos os 19 de abril. É nesse dia que Suli e sua aldeia celebram sua cultura e diversidade juntos. Assistem às apresentações musicais e encenações de momentos importantes na história da nação Xokleng. Aproveitam as rodas com danças: todos com os trajes tradicionais, o chocalho em uma mão e a lança na outra, dando batidas ritmadas no chão.
Suli adora usar seu traje: enfeita-se com colares e pulseiras, veste sua tanga e cobre os seios nus com suas longas madeixas de cabelo, que alcançam os joelhos. Em 2017, foi vestida assim que ela venceu o desfile anual, sendo eleita a indígena mais bonita da aldeia Coqueiro.
Em 2020, o ano pandêmico, a festa não aconteceu. Ainda assim, Suli vestiu o modelito e caminhou pela aldeia, em um desfile sem júri algum. Além das danças e cantorias, ficaram de lado as comidas típicas, como o totol (uma espécie de cuscuz à base de farinha de milho) e a carne na taquara. O prato favorito de Suli é o peixe cozido em folha de caeté no fogo de chão, o pag de peixe.
Ao lado de um bom churrasco, o pag foi parte do jantar que marcou a comemoração dos seus 18 anos em janeiro passado. Em um mundo pré-pandêmico, ela, a família e amigos somaram 100 pessoas ao redor de uma fogueira, tocando violão e cantando (em português, caso haja dúvidas).
Na Festa do Índio, dia favorito de Suli, ela veste seus trajes típicos e celebra a cultura Xokleng com toda a aldeia. | Fotos: Arquivo pessoal
Na Festa do Índio, dia favorito de Suli, ela veste seus trajes típicos e celebra a cultura Xokleng com toda a aldeia. | Fotos: Arquivo pessoal
Nas festas de 19 de abril, Suli faz o contorno de um círculo preto em cada bochecha. A marca, que imita as pintas de uma onça, mostra que seus antecedentes vêm da família Mẽ Vin (○○). Tradicionalmente, ao lado dos Vĩ mẽ tó pamke (●●), Mẽ Kalem (║) e Vãnh mẽ Kukẽn (●), as pinturas indicavam um sistema de casamentos. Hoje, a mistura entre os indígenas é tanta que cada um escolhe o que leva no rosto.
Muito se perdeu entre o tempo do mato e o agora. Além de imitar a onça pintada, os ancestrais tinham uma relação distinta com os animais. Crentes em espíritos, justificavam a cada bicho fadado à morte o porquê de seu sacrifício. “Eles acreditavam que se matasse um animal sem conversar com o espírito deles, aquele animal ia atormentar eles pro resto da vida”, narra Suli.
A cerimônia mais importante dos antigos Xokleng envolvia tatuar as pernas das meninas e perfurar os lábios dos garotos para inserir um círculo de madeira. O botoque, como é chamado o adereço, fez com que os Xokleng ficassem conhecidos como Botocudos.
As casas na Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ têm diferentes estruturas e materiais. | Foto: João Voia
As casas na Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ têm diferentes estruturas e materiais. | Foto: João Voia
Diferente das mulheres de gerações passadas, Suli não tem qualquer tatuagem, nem precisou ficar isolada quando teve a primeira menstruação. No ritual Xokleng, quando a menina “vira mocinha” tem de se separar do restante da família, dormir e comer em outra casa.
Já na gravidez, mantém-se certa tradição. Quando sentem dor, as grávidas têm a árvore “pau-de-mulher” como aliada. Se o sofrimento é pouco, bebem alguns goles do chá feito com uma lasca do tronco. Se é muito, banham-se nele de corpo todo. Não descobri o nome científico da “pau-de-mulher”, mas Suli e outros indígenas Xokleng consultados garantem que o nome “em branco” é o mesmo.
Para o preparo, Suli reforça: é necessário conhecer a árvore. Não basta tirar uma pedaço do tronco, é preciso entendê-lo. Como antes faziam os ancestrais, ainda hoje os indígenas têm práticas ritualísticas para preparar o chá.
— Não é uma pessoa ir lá, tirar a casca dela e pronto. Não! Ela tem que saber… — enfatiza arqueando as sobrancelhas e abrindo mais os olhos na última palavra.
A árvore pau-de-mulher garante o chá para aliviar a dor das grávidas. | Foto: João Voia | Colaborou na edição do áudio: Giovanni Velozo
A árvore pau-de-mulher garante o chá para aliviar a dor das grávidas. | Foto: João Voia | Colaborou na edição do áudio: Giovanni Velozo
As ervas medicinais são parte importante da cultura Xokleng. Suli de vez em quando recorre a um paracetamol ou uma dipirona, mas prefere seus chás e xaropes.
— Agora, no caso do coronavírus que entrou aqui, a minha mãe e meu pai fizeram um chá, tipo um xarope, mas com ervas medicinais mesmo daqui. Deram pras pessoas que tavam contaminadas, e eles foram curados.
Para a faculdade de Odontologia, que cursa a distância durante a pandemia, Suli criou um projeto de extensão em sua comunidade. Com o apoio das lideranças e demais indígenas, organizou oficinas sobre ervas medicinais, a partir das quais irão produzir chás e xaropes para serem distribuídos na reserva. A estudante vem com o conhecimento da Academia, e os demais, com os das ervas. A “folha de machucadura” ou “gelol do mato” deve ser a mais usada nesse caso.
A pandemia de covid-19 mudou a rotina de Suli e acentuou certas necessidades da comunidade indígena. Em março, quando tiveram início as medidas de isolamento social, todas as aldeias da Terra Indígena Laklanõ foram fechadas. A família Juvei ficou recolhida na Coqueiro. Além de não circular pela reserva, aceleraram a construção de uma cerca em frente à casa: na altura da cintura, a estrutura de madeira ajuda a manter as visitas do lado de fora.
Dentro das casas, porém, não há o que ser feito. Suli e seu irmão, Charles, os únicos que cursam o Ensino Superior na família, retornaram de Blumenau para a reserva e tiveram de fazer quarentena. Isolaram-se do restante da comunidade, mas não dos outros nove membros com quem dividem a casa. Foram monitorados por dias por uma equipe de saúde que fazia exames e verificava a presença de qualquer sintoma.
Foi uma semana apreensiva, pois com a família é “um pouquinho complicado”. Seu Patté Juvei tem bronquite e encontra-se no grupo de risco, enquanto alguns de seus irmãos têm baixa imunidade. A menina teme especialmente contrair o vírus e passá-lo ao cacique. “Perder um pai não dá, perder um irmão também não. Ninguém merece isso.”
E Suli fala com propriedade sobre a dor de perder um parente para o coronavírus. Seu tio, o pastor Pedro dos Santos Lemos, foi o terceiro indígena Xokleng a falecer por covid-19. Depois de esperar por um leito em uma Unidade de Terapia Intensiva, o senhor de 75 anos foi levado a Timbó. Apesar do tratamento, não resistiu.
— É triste, né? Além da gente perder um ente querido da nossa família, a gente não tem oportunidade de ir lá se despedir.
Para além da emergência global, a filha do líder indígena preocupa-se com a saúde dos Xokleng como um todo. Cada aldeia tem um posto de saúde e a comunidade conta com o apoio do Polo Base em José Boiteux. Suli lamenta, porém, pela falta de profissionais indígenas. Há uma ou outra técnica de enfermagem da reserva, mas médicos, enfermeiros e dentistas são todos não-indígenas, enviados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, a SESAI.
Quando chegam à Terra Laklãnõ, eles precisam antes aprender sobre como vivem os Xokleng, Guaranis e Kaingang que serão seus pacientes. Suli elogia o atendimento, mas lastima que não sejam nativos: “O bom seria se fosse um indígena, porque ele conhece como é. Com um ancião, ele conhece de chegar, conversar, falar no idioma.”
É para ajudar sua comunidade que ela estuda Odontologia na Universidade Regional de Blumenau. Tem esse sonho desde criança: gostava de cuidar dos dentes, pela saúde e pela aparência. Lembra do dia em que, lá pelos cinco anos de idade, foi muito bem atendida por um dentista particular. Admirou aquela roupa toda branca, decidiu que seria dentista e assim foi.
Inspira-se em primos da área da Saúde e tios professores. Apesar dos pais não terem feito graduação, é constantemente incentivada por eles a continuar estudando. Ela muda o tom quando menciona seu tio Marcondes Namblá. Professor “da língua” na comunidade Xokleng, passou a vida dizendo aos sobrinhos que estudassem, que “fossem alguém na vida”. A lição ficou, mas o tio Namblá se foi.
Há alguns verões, em 2018, o professor trabalhava vendendo picolés no Litoral Norte de Santa Catarina para complementar a renda. Em 1º de janeiro, o tio de Suli foi brutalmente assassinado com mais de 20 pauladas, dadas especialmente na cabeça. O assassino foi sentenciado a 21 anos de prisão. “A versão do homem foi por causa [de desentendimento com o] cachorro, mas a gente conhece como é na cidade. A gente vê que, da forma como aconteceu, foi por racismo”. Outros 134 indígenas foram mortos no Brasil naquele ano, conforme dados sistematizados pelo Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, no relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil.
A discriminação étnico-racial marca desde cedo a vida dos indígenas. É quase com naturalidade que, aos 19 anos, Suli conta que já foi vítima de ataques por ser quem é, pela cor de sua pele e pela cultura da qual tanto se orgulha.
— Já me falaram muita coisa e é difícil. É difícil porque... tanto nós indígenas, quanto os negros e outros que sofrem isso, é como se tipo.. A gente não fosse gente, sabe? Quando eles falam isso pra gente.
A fatalidade enfim domina a fala da Xokleng Sulihana:
— A gente sofre, né. Sempre falam [ofensas]. Isso aí a gente sempre vai sofrer, por mais que a gente não quer, isso sempre vai acontecer. Eu acho que as pessoas deveriam olhar tanto pra nós, quanto pros negros, e ver a gente como gente também, como ser humano. Não como tipo um “bicho”, que eles falam né — diz ela desenhando as aspas no ar.
Sair da casa dos pais implica para qualquer pessoa um processo de adaptação. Para Suli, envolveu ainda viver fora da aldeia com pessoas não-indígenas. Deixou a casa e foi viver com o irmão, também estudante, em Blumenau. Charles lhe indicou em quais esquinas virar e Suli foi dando um passo atrás do outro, percorrendo sozinha o caminho até a Universidade, rumo ao sonho de ser cirurgiã-dentista em sua comunidade. Nesse dia, Suli sentiu-se adulta pela primeira vez na vida.
Depois de alguns meses, a Xokleng se acostumou a viver na cidade das casas que imitam o enxaimel, à beira do rio Itajaí-Açu. Quando está na reserva, às vezes ela sente falta da cidade blumenauense.
O mundo lá fora é diferente. Na Terra Indígena, Suli conhece as árvores, os vizinhos e a comida. Ali, seu arroz leva apenas alho e salsinha — nada de temperos prontos comprados em mercado — e a carne na mesa da família às vezes é de caça, não de qualquer açougue.
Porco-do-mato e tatu são os bichos que eles mais comem. “De vez em quando desce um veado pra baixo no meio da estrada”, conta Suli, “Eu gosto da carne, é muito boa, mais saborosa. A carne do veado é um pouquinho mais forte que a do frango, do porco”. A caça fica a cargo dos homens da família e é feita com espingarda ou até facão. Com as armadilhas de antigamente, Suli até teria vontade de caçar, mas da forma como acontece hoje, o máximo que fez foi matar passarinho com estilingue quando criança.
Suli e a Terra Índigena Laklãnõ pertencem uma à outra. Não importa aonde vá, a menina garante que volta ao rio Itajaí do Norte. Olha o pedaço de chão ao lado da casa de sua mãe e imagina a sua própria: um sobrado azul ou verde clarinho com grama extensa na frente, garagem e piscina nos fundos e portão baixo ao redor.
Ela deixa claro que, antes de qualquer outra coisa, seu objetivo é estudar e se formar na faculdade. Assim que o fizer, Suli parte para o sonho que acredita ser o de toda mulher: entrar na igreja vestida de branco com véu e grinalda. Quer ter dois casais de filhos e um marido, preferencialmente indígena. A quinta filha dos Juvei não quer casar com um mestiço e explica: “Tem dias que eles têm jeito dos não-indígena, aí tem dia que tem jeito dos índio, e aí tudo fica… a gente não sabe o que pensar.”
Hoje, ela namora com um Xokleng. Seu primeiro namorado foi um não-indígena, aos 14 anos, quando ela ainda brincava de boneca. Dona Zilá teve a primeira filha aos 19, idade de Suli, que se acha nova demais para casar. Os tios, que sempre a aconselharam a se cuidar e usar camisinha, hoje dizem que ela está “ficando para titia” e que está na hora de “fazer filho”.
Mas Suli aproveita cada parte da vida com calma. Foi criança, adolescente, agora é jovem e vai sem pressa tornando-se mulher adulta.
Na reserva indígena, há camisinhas e anticoncepcionais nos postos de saúde. Tanto profissionais da Educação, quando da Saúde falam sobre como prevenir a gravidez, caso seja essa a vontade da pessoa. Além disso, chamam a atenção para proteção às doenças sexualmente transmissíveis. O povo Xokleng foi o primeiro grupo indígena do Brasil a ter registros de casos de HIV/AIDS, em 1988.
“A gente tem uma cultura totalmente diferente do não-indígena”, lembra Suli, “Como diz o meu pai, o índio não namora igual branco, que fica um ano, dois anos, namorando daqui (aponta para a cintura) pra cima”. Da sua turma no Ensino Básico, ela acredita ser a única que não está casada, nem tem filhos. São planos para depois dos estudos.
Suli e sua família são dessa e daquela outra forma. Assim como um blumenauense não é igual a outro, nem todos os Xokleng — muito menos todos os indígenas — compartilham das mesmas ideias e posicionamentos.
Nossas conversas aconteceram através de videochamadas, interrompidas por problemas na conexão ou falta de bateria. Como Suli está assistindo às aulas de Odontologia durante a manhã pelo celular, nem sempre o aparelho aguentou nossas longas conversas pela tarde. Conheci a distância seu sorriso largo e roupas coloridas — ora um tomara que caia azul com um bolerinho cor-de-rosa, ora uma regata listrada intercalando cinza e verde neon.
Com o telefone nas mãos, andou comigo por seu quintal e fui apresentada à gata Mia, aos quatro bezerros, à galinha e ao galo (que vez ou outra também respondia minhas perguntas de longe). O cachorro ouvi, mas não o vi.
Ao longo das conversas, passava sempre alguém por trás. A língua xokleng só escutei uma vez por alto. Um dia, o irmão de dez anos e eu trocamos algumas palavras.
— Meu nome é Adrian, mas pode me chamar de Lauro — disse, apresentando-se em sua língua-mãe e depois na minha.
Lauro ia e voltava ao longo da conversa, espiando a tela por cima do ombro da irmã ou pendurando-se em um galho logo atrás dela. Em um dos momentos quando o pequeno sumiu, Suli virou a câmera e mudou o enquadramento:
— Óia lá, consegue ver? Assim que a gente ficava, ó! Consegue ver? — aperto os olhos e encontro o Lauro se balançando em uma árvore — Hoje em dia é difícil ver as crianças assim — repete.
