“Indicada para qualquer pessoa doente, em qualquer nível e qualquer idade”

A presença das Constelações Familiares no SUS e nas Universidades Públicas

Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Moradora há pouco tempo de Laguna (SC), segunda cidade, em números absolutos, que mais realizou sessões de Constelação pelo SUS no Brasil, Cleide de Lima nunca tinha ouvido falar na prática quando procurou uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para tratar um problema no lado direito do quadril. Da fisioterapia, seguiu para a yoga e foi atendida por Janaína Cardoso, enfermeira do SUS e consteladora, que apresentou a Constelação Familiar como mais uma ferramenta para seu tratamento.

Antes caminhando só com o auxílio de muleta, a contadora afirma que, depois da sessão do método alemão, começou a melhorar. “Ela [Janaína] foi falando que a parte direita era problema paterno e perguntou se eu tinha problema paterno. Aí eu fui falando e realmente, depois disso, melhorou”. Cleide conta que durante o atendimento sentiu as pernas ficarem pesadas: “Eu tentava puxar ela para cima e ela não vinha, como se tivesse puxando mesmo para baixo, como se aquela inflamação estivesse descendo”. Depois dessa experiência, ela continua participando de sessões de Constelação no SUS uma vez ao mês e ainda semanalmente pratica atividades de fisioterapia funcional, yoga e pilates.

Segundo dados apurados no Sisab/SUS, desde 2018, foram realizadas mais de 24,2 mil sessões de constelação no SUS no Brasil. Os estados com maior quantidade foram Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina, Goiás e Bahia, nessa ordem. Já em relação ao tamanho da população, o estado campeão é o Rio Grande do Norte.

Os municípios que mais realizaram constelação são Tomazina (PR), Laguna (SC), Itumbiara (GO) e Rodolfo Fernandes (RN). Proporcionalmente, o município com mais sessões de constelação em relação à população é Rodolfo Fernandes. Das 10 cidades com mais sessões de constelação proporcionais à população, nove têm menos de cinco mil habitantes, segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — a exceção é Tomazina, com pouco mais de oito mil moradores.

A técnica, indicada pelo SUS “para qualquer pessoa doente, em qualquer nível e qualquer idade”, começou a ser desenvolvida por Bert Hellinger nos anos 1980 e teve como inspiração diversas cosmologias e teorias em voga na época, incluindo - segundo seu criador - a filosofia familiar do povo Zulu e diferentes abordagens psicoterapêuticas. Algumas, como a dos campos mórficos do biólogo inglês Rupert Sheldrake, que obteve um sucesso polêmico e foi largamente rejeitada pela comunidade científica, também são tidas como fundamento das Constelações por adeptos à prática.

No que se baseia (ou não) a Constelação Familiar

Cristianismo: Apesar de ter deixado o sacerdócio e possuir críticas à Igreja Católica, Hellinger continuou sendo um expoente da fé cristã por toda a sua vida. Ainda que a Constelação Familiar seja proposta como uma prática sem laços religiosos, o criador frequentemente mesclava a moral cristã com seu próprio método em suas sessões e palestras, utilizando exemplos bíblicos e pregando o amor a Deus. Em suas obras, ele mostra que muitos dos princípios que embasam a Constelação Familiar, como a humildade, a fé e a devoção aos pais vêm dos ensinamentos cristãos.

Filosofia Familiar Zulu: Hellinger inspirou alguns dos conceitos de ancestralidade presentes na Constelação Familiar na cosmovisão do povo zulu. A professora e antropóloga Aina Guimarães Azevedo explica em sua tese de Doutorado que, para os zulu, os amadlozi [plural de idlozi, ancestral] são “uma classe de agentes que pode influenciar positiva ou negativamente a vida dos viventes”. Existe uma grande importância em se comunicar com esses ancestrais e celebrá-los. Para muitos antropólogos, como a professora Antonádia Borges, a visão tradicional de povos africanos incorporada por Hellinger reflete uma “ação missionária predatória e apropriação cultural indevida”. A Constelação Familiar é compreendida por ela como uma prática que adapta e embranquece os saberes do povo zulu para que se torne uma mercadoria consumida pela “branquitude civilizadora”.

Terapia Familiar Sistêmica: Na Constelação, sistemas são conjuntos de indivíduos interligados que se regulam por regras universais e imutáveis de hierarquia, pertencimento e equilíbrio. Apesar de geralmente se referirem a uma família biológica e seus ancestrais, esses sistemas também existem, por exemplo, entre colegas de trabalho. No entanto, o CFP não reconhece qualquer relação entre a Constelação Familiar e a Terapia Familiar Sistêmica. 

Embora utilizem nomenclaturas semelhantes, essa abordagem psicoterapêutica compreende que sistemas estão em constante mudança e interação com os múltiplos contextos da vida de cada um de seus membros. Dessa forma, não podem existir parâmetros e regras fixos ou naturais que se apliquem a todos os sistemas e indivíduos.

Virginia Satir e as Esculturas Familiares:
A psicóloga estadunidense Virginia Satir é conhecida como pioneira na área da terapia familiar e frequentemente citada como influência por Hellinger. Das diversas dinâmicas de terapia em grupo desenvolvidas por Satir, as Esculturas Familiares parecem ter tido maior impacto no desenvolvimento da técnica da Constelação Familiar. Nesse método, idealmente, dois ou mais membros de uma família realizam uma dinâmica que inclui o escultor – que apresenta sua visão da família –, os esculpidos – que formam a escultura –, o terapeuta e uma audiência. O terapeuta instrui o processo e ajusta a posição dos integrantes no espaço conforme as escolhas e a narrativa do escultor. Ao final, a família vê a escultura formada pelos próprios integrantes e manifesta o que cada um sentiu em sua posição

Embora o trabalho de Satir seja frequentemente apresentado como uma variação da Constelação Familiar, não foram encontradas evidências de que a terapeuta tenha se baseado em Hellinger para desenvolver sua técnica, e sim do contrário.

Psicodrama: Uma das principais influências da Constelação Familiar, o psicodrama é uma abordagem terapêutica da psicologia em que se utilizam técnicas de dramatização para explorar questões emocionais e psicológicas. A abordagem busca facilitar a expressão de sentimentos, o resgate da criatividade, espontaneidade e sensibilidade. Ela pode ser aplicada como terapia em grupo ou individual e tem como objetivo permitir que os participantes expressem suas emoções, revelem seus conflitos internos e explorem diferentes perspectivas, explica a psicóloga Márcia Bernardes.

Durante a sessão, os participantes são encorajados a representar papéis, como eles mesmos ou outras pessoas envolvidas na situação em questão. Também podem recriar eventos passados, imaginar situações futuras ou explorar aspectos de sua personalidade. No psicodrama, o terapeuta é conhecido como diretor e é responsável por facilitar a dramatização e guiar o processo. Ele pode intervir, fazendo perguntas, oferecendo insights ou sugerindo mudanças de papéis para facilitar a compreensão e a resolução dos problemas. Diferente da Constelação, no psicodrama não existem regras como as Ordens do Amor. Márcia Bernardes afirma que a abordagem trabalha com “o fenômeno como ele se apresenta”. Em sua biografia, Bert Hellinger diz ter frequentado cursos do criador do psicodrama, o médico, psicólogo, filósofo e dramaturgo Jacob Levy Moreno, que desenvolveu a abordagem em 1920.

Rupert Sheldrake e o campo morfogenético: Embora nunca tenha creditado Rupert Sheldrake diretamente como referência para as Constelações Familiares, Hellinger compreendia que ele e o biólogo teriam chegado às mesmas conclusões sobre o funcionamento da natureza de forma independente. No Brasil, a teoria de Sheldrake é tida pelos seguidores da Constelação Familiar como um dos pilares científicos da prática.

O conceito de campo morfogenético vem da teoria publicada em 1981 no livro A New Science of Life. Nele, o britânico Rupert Sheldrake afirma que as leis da natureza possuem um tipo de “memória” inerente e evoluem de acordo com o que já aconteceu. Essa memória seria “transmitida por um processo chamado ressonância mórfica, e funcionaria através de campos chamados "campos mórficos”. Os campos morfogenéticos seriam um tipo de campo mórfico que organizaria moléculas, cristais, células, tecidos e todos os sistemas biológicos em sua forma. Portanto, os “fenômenos” que a Constelação Familiar supostamente revela se tratariam de acontecimentos e sentimentos anteriores ligados à família ou ao grupo do constelado, que teriam sido armazenados e transmitidos pela ressonância mórfica. Através do campo morfogenético, então, a memória coletiva dos antepassados moldaria a vida de seus descendentes.

A teoria de Sheldrake foi amplamente criticada pela comunidade científica e categorizada como uma pseudociência. Seu livro foi descrito pelo físico e químico Sir John Maddox no artigo “A Book to Burn?” como “uma ilustração esplêndida da falsa concepção de ciência difundida no público”.

Fenomenologia: Hellinger denominava sua técnica de observar os sentimentos e as revelações da Constelação Familiar sem pretensão de comprovar suas causas como uma “abordagem fenomenológica”. Os fenômenos observados, então, não precisariam de explicação porque sua própria existência comprovaria sua veracidade.

Na Filosofia e na Psicologia, porém, a fenomenologia apresenta um significado diferente. Através desse método, se busca descrever com precisão como um fenômeno se manifesta na consciência de cada pessoa. Essa análise também leva em conta os elementos que foram ocultos, de forma consciente ou não. Por isso, a fenomenologia não se interessa em comprovar a veracidade dos fenômenos, porque o que importa é o que eles significam para o indivíduo. Ao contrário do “fenômeno” da Constelação Familiar, que é considerado, em termos simplificados, um fato que não carece de comprovação, o fenômeno da Psicologia é subjetivo, originado da interpretação de cada um, e nunca irá corresponder a uma verdade objetiva.

Esse leque de referências reflete a vida movimentada de Hellinger, que foi convocado para lutar pelo exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial, atuou como missionário na África do Sul por cerca de 16 anos, cursou Teologia e Psicologia, renunciou à batina e passou décadas desenvolvendo seu método. A partir dos anos 2000, consolidou com sua segunda esposa, Sophie Hellinger, especialista em terapias alternativas, a Constelação Familiar Original Hellinger®, cujo ensino é oferecido exclusivamente pelo instituto fundado pelo casal, Hellinger Schule, e escolas parceiras autorizadas.

Nem o ensino, nem a prática profissional da Constelação Familiar são regulamentados no Brasil. Não existe um protocolo para sua aplicação no sistema público de saúde e cada estado e município tem a autonomia para aderir e determinar as diretrizes de funcionamento do método, como ocorre com as demais práticas integrativas e complementares.

Em Laguna, foi a própria enfermeira do SUS Janaína Cardoso que teve a iniciativa de implementar a Constelação Familiar, em 2019. Depois de passar por um câncer, decidiu que não queria mais atuar na função de enfermeira da UBS. Como já trabalhava com Constelação e Reiki de forma voluntária na vida privada, propôs oferecer essas práticas também no sistema único de saúde. Ela conta que já testou algumas formas de trabalhar com as Constelações, mas hoje acaba associando várias técnicas durante os encontros: “No e-SUS, sempre preencho com Constelação, meditação e imposição de mãos, porque não tenho um único foco no atendimento”.

Algumas dessas sessões acontecem após as aulas de yoga na praia. Cleide confessa que às vezes “não sente tanto”, mas lembra de um episódio marcante. “Passei uns três dias sem conseguir dormir direito, uma confusão nos sonhos, tudo muito escuro, uma bagunça”. Então, decidiu procurar Janaína pra entender porque estava assim depois da Constelação. “Ela me disse que isso aí já era o movimento de cura.” 

Cleide acrescenta que depois desse tempo foi melhorando, mas que a prática mexeu tanto com ela que chegou a assinar um documento com o sobrenome do seu antigo casamento, de quase duas décadas atrás. “O que ela [Janaína] me explicou é que na Constelação tem a hierarquia. Você fala do seu marido, mas ele é o seu segundo marido. [Errar o nome] já é a hierarquia te cobrando isso, que ele tem um lugar. Isso foi bem marcante pra mim”.

O Ministério da Saúde (MS) não detalha nenhuma exigência específica de formação para trabalhar com as PICs no sistema público, apenas recomenda que sejam priorizados servidores que já atuem com esse serviço. Também aconselha, no caso de aplicação profissional da prática, “consultar o Conselho de Classe Profissional a que está vinculado, sobre as exigências definidas para o exercício da prática e, dessa forma, evitar o exercício irregular da profissão”.

Dos Conselhos Federais da saúde, apenas o de Psicologia elaborou uma nota técnica de orientação aos profissionais sobre a Constelação Familiar. No texto, o CFP conclui que a atividade é incompatível com o exercício profissional da Psicologia do ponto de vista ético, científico e epistemológico. O Conselho cita a falta de pesquisas que atestem a cientificidade da prática e alega que os métodos utilizados reproduzem “conceitos patologizantes” de gênero, sexualidade, masculinidade e feminilidade.

A entidade destaca que a concepção de casal adotada pela Constelação Familiar é “calcada na heterossexualidade compulsória”. A crítica se baseia na indispensabilidade que a Constelação Familiar frequentemente confere à união entre um homem e uma mulher na formação de uma família. Também aponta passagens nas obras de Hellinger que atribuem às mulheres e aos homens “papéis naturalizados e desiguais”, onde frequentemente o poder dado ao marido/pai é maior – numa relação, o homem teria precedência sobre a mulher, ou seja, estaria acima na hierarquia e precisaria ter sua posição respeitada. O conselho critica ainda o viés conservador com o qual a infância e juventude é tratada, naturalizando a ausência de direito desses cidadãos. Esses fatores, segundo o CFP, vão na contramão da prerrogativa de promover a saúde de indivíduos e coletividades fundamentais para a Psicologia.

De momento, prefiro permanecer no modelo tradicional. Nele, normalmente o homem vem primeiro, depois a mulher e então as crianças. Quando se dá o contrário, quando a mulher se coloca em primeiro lugar e o homem em segundo — por exemplo, quando ela o despreza —, então o homem faz de tudo para deixar a família e deixa a mulher sozinha. A mulher se sente então abandonada.

Nas constelações familiares, quando recoloco o marido à direita da mulher, no primeiro lugar, ele se sente responsável e a mulher se sente aliviada e apoiada.

Bert Hellinger, livro Constelações Familiares – O Reconhecimento das Ordens do Amor, 1996, edição de 2010, p. 80

Em resposta, a Associação Brasileira de Consteladores (ABC) divulgou uma declaração na qual argumenta que a Constelação Familiar não está vinculada à Psicologia, “ainda que desperte interesse dos profissionais desta área”. Também defende que "a validação científica de algo que é novo sempre vem a posteriori" e que "quem conhece com propriedade a Constelação Sistêmica/Familiar sabe que esta é uma ferramenta útil para alavancar processos estagnados".

Leia mais

Conferimos

Conferimos

De fato, em seu livro Gottesgedanken (Pensamentos sobre Deus), publicado pela primeira vez em 2004, Hellinger dedica um poema sobre amor ao próximo ao ex-chanceler alemão Adolf Hitler . No entanto, o texto do ex-padre não faz apologia direta ao nazismo, como mostra o trecho inicial abaixo, traduzido do original, em alemão:

“Hitler,

Alguns lhe consideram desumano,

como se alguma vez houvesse alguém digno de ser chamado assim.

Eu olho para você como uma pessoa como eu:

com pai e mãe e um destino especial.”



As passagens de Bert Hellinger em relação à homossexualidade são conflitantes. Embora o terapeuta entendesse que “afirmar sua orientação sexual” poderia ser o primeiro passo para construir uma vida feliz e afetuosa, suas ideias sobre a origem da homossexualidade são criticadas como estigmatizantes e prejudiciais.

Em A Simetria Oculta do Amor, Hellinger afirma que a homossexualidade costuma estar relacionada a padrões de “bloqueio sistêmico”, como quando uma criança é pressionada pela família para representar um parente do sexo oposto indisponível: “Por exemplo, um menino tinha de representar uma de suas irmãs mais velhas que havia morrido porque nenhuma menina sobrevivera. Outro menino tinha de representar a primeira noiva de seu pai, que fora tratada injustamente”. No mesmo livro, Hellinger enumera algumas observações sobre o comportamento de representantes e aconselha aos consteladores: “Quando a mãe escolhe uma mulher para representar seu filho, suspeite de uma pressão sistêmica em favor da homossexualidade”.

Ainda que esses pontos de vista não constituam discurso de ódio contra pessoas LGBTQIA+, afirmar sem evidências científicas que a homossexualidade pode ser causada por pressão familiar ou pela falta de um ente querido pode reforçar preconceitos e ignorar nuances, individualidades e contextos sociais.


Glossário

CFP: Conselho Federal de Psicologia

PICs: Práticas Integrativas e Complementares em Saúde oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS)

Reportagem produzida por Jullia Gouveia e Karol Bernardi como Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientação da professora Stefanie Carlan da Silveira.